domingo, 30 de setembro de 2018

[0225] Nuno Rebocho, viajante de mundos


Nuno Rebocho, viajante de mundos, nasceu “no ano da bomba atómica”: assim se explica para se explicar. Recusando cânones e paradigmas, preferiu dar sempre livre curso às inspirações de momento. Tem os seus preços e os seus custos.


BALADA PRÓXIMA DA DISTANTE BATALHA

1
esta é a guerra são as mandíbulas da tartaruga
sobre as águas dos suplícios. esta é a cena
as tenazes sofridas do tempo e da ciência.
este é o homem fuligem no périplo do esquecimento.
este é o ruído do silêncio deste tempo perante o tempo.
estas são as mãos das bagagens e as barragens.
estes são os filhos da tormenta os olhos da ausência
na terra queimada na dor lavrada
o bronze derretido que escorre na levada.

escutemos: os lobos chegam os corvos chegam
chegam as moscas e as larvas
chegam os roncos e as espingardas
os mucos da peste nos copos das espadas.
chegam os mísseis os alvos chegam
chagam os dorsos e os olhos chagam.
rosnam os uivos e as rochas rosnam
rasgam as casas e as carnes rasgam.
escutemos: que luz é esta? que noite é?

não dormem os rios nem dormem os mares
nem dormem os filhos destes teares.
drenam os sonhos por outros lugares
e as pústulas dançam e as feridas cansam.
se dissermos amanhã com os dentes de hoje
que luz é esta? que noite é?

2
roucos estamos entre os rochedos as valas sem segredos dos medos onde medram
os alambiques da vergonha e os tições que alumiam as atenções:
é tarde.
vamos com os dedos crestados das lições que desonram a memória quando os tecidos do tempo se esfiapam e as mãos doem
dos invernos consumidos: é
tarde. seguimos as rotas com as montanhas cercadas
de crepúsculos onde as caravanas
se perdem e se acham os rasgões. que luz é esta? que noite é?

3
não podemos dizer esperança
quando morre uma criança.

não podemos dizer vitória
quando enlutamos a história.

[0224] Ruy Belo, um poeta na Opus Dei

Rui de Moura Belo (verdadeiro nome do poeta) nasceu em S. João da Ribeira (Rio Maior) em 1933 e faleceu em 1978 em Queluz.

Também ensaísta, estudou na Universidade de S. Tomás de Aquino, em Roma. Foi director da Editorial Aster e chefe de redacção da revista “Rumo”, investigador da Faculdade de Letras de Lisboa.

Membro da Opus Dei, que abandonou e partiu para Madrid, onde leccionou.


O PORTUGAL FUTURO

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz

À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro


EMPREGO E DESEMPREGO DO POETA

Deixai que em suas mãos cresça o poema
como o som do avião no céu sem nuvens
ou no surdo verão as manhãs de domingo
Não lhe digais que é mão-de-obra a mais
que o tempo não está para a poesia

Publicar versos em jornais que tiram milhares
talvez até alguns milhões de exemplares
haverá coisa que se lhe compare?
Grandes mulheres como semiramis
públia hortênsia de castro ou vitória colonna
todas aquelas que mais íntimo morreram
não fizeram tanto por se imortalizar

Oh que agradável não é ver um poeta em exercício
chegar mesmo a fazer versos a pedido
versos que ao lê-los o mais arguto crítico em vão procuraria
quem evitasse a guerra maiúsculas-minúsculas melhor
Bem mais do que a harmonia entre os irmãos
o poeta em exercício é como azeite precioso derramado
na cabeça e na barba de aarão

Chorai profissionais da caridade
pelo pobre poeta aposentado
que já nem sabe onde ir buscar os versos
Abandonado pela poesia
oh como são compridos para ele os dias
nem mesmo sabe aonde pôr as mãos


QUANTO MORRE UM HOMEM

Quando eu um dia decisivamente voltar a face
daquelas coisas que só de perfil contemplei
quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
Quem dará o teu nome a todas as ruas
que encontrar no coração e na cidade?
Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
Quando toda a alegria for clandestina
alguém te dobrará em cada esquina?

[0223] MÚSICA PARA O DOMINGO (2). Hoje, "Canção tão simples", de Manuel Alegre (letra) e José Niza (música), por Adriano Correia de Oliveira

Manuel Alegre (ver AQUI); José Niza (ver AQUI) e Adriano Correia de Oliveira (ver AQUI)

[0222] Yolanda Morazzo


Nascida em Mindelo, ilha de S, Vicente, em 1927 e falecida em Lisboa em 2009, Yolanda Morazzo Lopes da Silva foi uma das importantes representantes da poesia cabo-verdiana. Viveu em Angola de 1958 a 1968, indo viver depois dessa data em Portugal. 


BARCOS
 
"Nha terra ê quel piquinino
        ê São Vicente ê quê di meu"


Nas praias
Da minha infância
Morrem barcos
Desmantelados.

Fantasmas
De pescadores
Contrabandistas
Desaparecidos
Em qualquer vaga
Nem eu sei onde.

E eu sou a mesma
Tenho dez anos
Brinco na areia
Empunho os remos...
Canto e sorrio...
A embarcação
Para o mar!
É para o mar!...

E o pobre barco
O barco triste
Cansado e frio
Não se moveu...


A UMA QUALQUER

Não foi por amor ao dinheiro
nem foi por jóias
nem sequer por um vestido de seda.

Nem foi também por teres casa
móveis decentes, melhor vida.
Não, não foi por nada disto.

Tu, só tu sabes por que sorriste
e o teu coração bateu um pouco mais forte
quando o barco americano entrou no porto...


COLHEITA

Mistério? Não rapazes
Nada de mistérios!
É tempo de aniquilar os enigmas
Todos os enigmas
E estrangular os soluços na garganta.
O Mundo move-se, Amigos,
A noite virou madrugada
A vida é mais do que um cântico
A vida é uma certeza.

É por isso rapazes
Que me apetece pegar numa enxada
Atirar para os ombros as pás e as picaretas
Todas as picaretas do mundo
E ir assim por esses campos fora.

Vamos, Amigos. Basta!
Tirem as mãos dos bolsos
E deixem esse ar de interrogar as núvens.
É tempo de começar
E eu preciso da vossa ajuda.
Camaradas! Venham comigo!
Tragam também as foices e o arado
E vamos.
          Olhai!
                    É tudo Nosso!...
A terra
Uma seara imensa...
O trigo a perder-se no longe
Amadurece.
Não o deixemos apodrecer.
É preciso ceifá-lo, Irmãos!

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

[0221] Antologia "Sete", a lançar amanhã na Nazaré, Portugal

Será lançada amanhã, 29 de Setembro, na Biblioteca Municipal da Nazaré, mais uma antologia reunindo um conjunto de poetas: Amadeu Baptista, Ana Horta, António de Miranda, Carlos Alberto Machado, Henrique Manuel Bento Fialho, Inês Dias, Jaime Rocha, Jorge Vicente, m. parissy, Manuel de Freitas, Nuno Rebocho, Rui Almeida, Rui Tinoco e Sandra Costa. Celebra o sétimo aniversário da editora “Volta d’Mar” (voltadmar@gmail.com) e é ilustrado por Alexandre Esgaio. Tem nome apropriado: “Sete”.



[0220] Pôr-do-sol poético em Alcochete, Portugal

Sábado, dia 30, a partir das 16h30, em Alcochete: um “poetry sunset party” (pôr-do-sol poético) no café-bar Alcach, com o apoio da Câmara Municipal local. Entre muitos convidados: Luisa Monteiro, Alberto Pereira, Cristina Ohana, Tito Livio, Urbano Oliveira, Elsa Wellenkamp, Victor Oliveira Mateus, Maria Sarmento, Everardo Norões, Virgínia do Carmo, Rogério Godinho, Raquel Serejo Martins, Maria Anadon, Vasco Catarino Soares, Margarida Mascarenhas, Amadeu Diniz da Fonseca, Ronaldo Cagiano, André Osório, Luís Osório e muitos mais. Uma festa numa das mais belas vilas de Portugal.

[0219] Fólio em Óbidos, Portugal: a não perder

Decorre desde quinta-feira e termina no sábado, 7 de Outubro, o Festival Literário Internacional em Óbidos, um importante ponto de encontro e escritores, leitores, músicos… e livros. Destaques para Poesia Vadia, nas tardes de sábado e domingo, também na tarde do dia 6 e o recital de poesia na tarde de terça-feira na Casa Saramago. Óbidos dá o exemplo.

[0218] Casimiro de Brito

Casimiro Cavaco Correia e Brito nasceu em Loulé em 1938. Poeta e divulgador de poesia, ficcionista e ensaísta, recebeu o Prémio de Poesia da APE de 1981, o Prémio Versília de 1985, o Prémio do PEN Clube Português em 1997, o Prémio Internacional de Poesia Léopold Senghor de 2002, o Prémio de Poesia Aleramo-Luzi de 2004 e o Prémio do Festival Poeteka, na Albânia, de 2008. Fundou e dirigiu com António Ramos Rosa os “Cadernos do Meio-Dia” e teve papal fundamental no lançamento do movimento Poesia 61. Emigrou para a Alemanha e 1960 e regressou a Portugal em 1971. Foi presidente do PEN Clube Português.


DO AMOR E DA MORTE

Temos lábios tenros para o amor
dentes afiados para a morte

Concebemos filhos para o amor
para a guerra os mandamos para a morte

Levantamos casas para o amor
cidades bombardeamos para a morte

Plantamos a seara para o amor
racionamos o trigo para a morte

Florimos atalhos para o amor
rasgamos fronteiras para a morte

Escrevemos poemas para o amor
lavramos escrituras para a morte

O amor e a morte
somos


NOITE POR TI DESPIDA

Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que se dá em troca dos meus ombros
cansados. Reflexos
                                  coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada
sem fim. Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho. A noite
por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.


PEÇO A PAZ

Peço a paz
e o silêncio

A paz dos frutos
e a música
de suas sementes
abertas ao vento

Peço a paz
e meus pulsos traçam na chuva
um rosto e um pão

Peço a paz
silenciosamente
a paz a madrugada em cada ovo aberto
aos passos leves da morte

A paz peço
a paz apenas
o repouso da luta no barro das mãos
uma língua sensível ao sabor do vinho
a paz clara
a paz quotidiana
dos actos que nos cobrem
de lama e sol

Peço a paz e o
silêncio

[0217] Eleutério Sanches

Artista plástico, poeta, actor, músico e professor, Eleutério Rodrigues de Sá e Sanches nasceu em Luanda em 1935 e faleceu naquela cidade em 2016. Estudou em Portugal, onde foi monitor de ergoterapia no Hospital Júlio de Matos. Foi um dos fundadores da UNAP, União Nacional dos Artistas Plásticos, e pertenceu ao Grupo de Teatro Jograis de Angola. A sua poesia, muito simples e directa, reflexo do vitalismo angolano serviu para suportes de canções que se tornaram célebres na voz do povo.


CANÇÃO PARA TIA CHICA COILÓ

Na quintinha da tia Chica Coiló
Tinha doce, doce docinha…
A quindumba da tia Chica Coiló
Era branca, branca, branquinha

Saudosa tia Chica Coiló
Com seus cabelos brancos de vóvó!

A moringa da tia Chica Coiló
Era nova, nova, novinha…
A cubata de tia Chica Coiló
Era velha, velha, velhinha…

Saudosa tia Chica Coiló
Com seus cabelos brancos de vóvó!

A quindumba da tia Chica Coiló
Era branca, branca, branquinha…
A mão grande da tia Chica Coiló
Era negra, negra, negrinha…

Saudosa tia Chica Coiló
Com seus cabelos brancos de vóvó!

Ai saudade! Saudadinha


CANÇÃO DO SUBÚRBIO

Cubatas velhas vermelhas
do solo velho vermelho
e a chva tamborilando
por cima do zinco velho

e a minha velha lavando
na velha celha cantando
já não há mais folhas secas
sobre o zinco  das cubatas,

umas o vento as levou
outras são velhas canoas
sobre as vermelhas lagoas
que a chuva improvisou

e onde o neto da ximinha
chapinha contente e nu


LUANDA 

Luanda
Da fortaleza em penhor
Na expressão de uma aguarela
Que o artista com fervor
Majestosa e bela Luanda
Debruçada sobre o mar
Onde as ondas uma a uma
Vêm desfazer-se em espuma
À tua ilha beijar Luanda
Do batuque pela noitinha
E as acácias em flor
És tu Luanda a Rainha
Senhora do meu amor

[0216] António Ramos Rosa


António Ramos Rosa nasceu em Faro em 1924 e faleceu em Lisboa em 2013. Poeta, tradutor e desenhador, Ramos Rosa recebeu o Prémio de Tradução de 1976, o Prémio do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários de 1980, o Prémio do PEN Clube Português de Poesia de 1981 e 2006, o Prémio Jacinto Prado Coelho de 1987, o Prémio Pessoa de 1988, o Grande Prémio de Poesia APE/CTT de 1989 e 2005, o Grande Prémio Sophia de Mello Breyner Andresen de 2005 e Prémio de Poesia Luís Miguel Nava de 2005. Um dos fundadores da revista “Árvore”


VISTE O CAVALO VARADO A UMA VARANDA?

Viste o cavalo varado a uma varanda?
Era verde, azul e negro e sobretudo negro.
Sem assombro, vivo da cor, arco-irís quase.
E o aroma do estábulo penetrando a noite.
Do outro lado da margem ascendia outro astro
como uma lua nua ou como um sol suave
e o cavalo varado abria a noite inteira
ao aroma de Junho, aos cravos e aos dentes.
Uma língua de sabor para ficar na sombra
de todo um verão feliz e de uma sombra de água.
Viste o cavalo varado e toda a noite ouviste
o tambor do silêncio marcar a tua força
e tudo em ti jazia na noite do cavalo.


SEM SEGREDO ALGUM

Rodeio-te de nomes, água, fogo, sombra,
vagueio dentro das tuas formas nebulosas.
Como um ladrão aproximo-me entre palavras e nuvens.
Não te encontrei ainda. Falo dentro do teu ouvido?
Entre pedras lentas, oiço o silêncio da água.
A obscuridade nasce. Tens tu um corpo de água
ou és o fogo azul das casas silenciosas?
Não te habito, não sou o teu lugar, talvez não sejas nada
ou és a evidência rápida, inacessível,
que sem rastro se perde no silêncio do silêncio.
O que és não és, não há segredo algum.
Selvagem e suave, entre miséria e música,
o coração por vezes nasce. As luzes acendem-se na margem.
Estou no interior da árvore, entre negros insectos.
Sinto o pulsar da terra no seu obscuro esplendor.


NA GRANDE CONFUSÃO

Na grande confusão
deste medo
deste não querer saber
na falta de coragem
ou na coragem de
me perder me afundar
perto de ti tão longe
tão nu
tão evidente
tão pobre  como tu
oh diz-me quem sou eu
quem és tu?

[0215] Jorge de Sena, um poeta livre

Nome por que ficou conhecido Jorge Cândido de Sena, nascido em Lisboa em 1919 e falecido em Santa Bárbara da Califórnia em 1978. Professor, poeta, escritor, ensaísta e tradutor, recebeu o Prémio PEN Clube Português de Ensaio a título póstumo, em 1981. Introspectivo e uma infância infeliz, estudou em Lisboa e preparou-se para oficial da marinha, de que foi excluído por falta de condições atléticas. Fez-se engenheiro e editor, entrando em choque com o salazarismo, o que o levou ao exílio no Brasil, onde viveu durante sete anos e exerceu magistratura. Naturalizou-se brasileiro em 1963 mas, desgostado com a ditadura varguista, transmudou-se para os Estados Unidos em 1964 onde igualmente leccionou. Regressou a Portugal com o 25 de Abril de 1974, mas nenhuma universidade o convidou para exercer o magistério Regressou desiludido aos Estados Unidos e aí faleceu. 


SONETO

Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,

tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.


SEM TÍTULO

Deixai que a vida sobre vós repouse
qual como só de vós é consentida
enquanto em vós o que não sois não ouse

erguê-la ao nada a que regressa a vida.
Que única seja, e uma vez mais aquela
que nunca veio e nunca foi perdida.

Deixai-a ser a que se não revela
senão no ardor de não supor iguais
seus olhos de pensá-la outra mais bela.

Deixai-a ser a que não volta mais,
a ansiosa, inadiável, insegura,
a que se esquece dos sinais fatais,

a que é do tempo a ideada formosura,
a que se encontra se se não procura.

Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.

Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.

E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.


BEIJO

Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no de abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mas beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
E dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja

[0214] Haroldo de Campos, o concretismo

Haroldo Eurico Browne de Campos nasceu em S. Paulo, Brasil, em 1929 e aí faleceu em 2003. 

Poeta e tradutor, recebeu o Prémio Jabuti em 1991 e o Prémio da Associação Paulista dos Críticos de Arte a título póstumo, em 2009. 

Confrontado com o conservadorismo brasileiro, forma com o seu irmão, Augusto, o Grupo Noigrandes, fundando posteriormente o movimento concretista, enveredando em 1963 pelos livros-poemas. Com vasta bibliografia, publicou "Auto dos Possesses", seu primeiro livro, em 1949. Deixou algumas obras inéditas que têm vindo a ser publicadas.


IDEOCABOGRAMA

se
nasce
morre   nasce
morre   nasce  morre
   renasce  remorre  renasce
                 remorre  renasce
        remorre
     re

re
desnasce
         desmorre  desnasce
    desmorre  desnasce  desmorre
       nascemorrenasce
morrenasce
morre
se

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

[0213] Um monumento, um poema (1) FERNANDO PESSOA. Lisboa

Hoje, Fernando Pessoa
A partir de hoje e com alguma regularidade, IM passa a apresentar estátuas ou monumentos escultóricos dedicados a poetas nacionais e estrangeiros. A etiqueta será a do título deste post. Embora tenhamos razável stock, solicitamos aos nossos visitantes que nos enviem (boas) fotografias de monumentos por si fotografados (para evitar problemas autorais), com a indicação do local onde se encontram as peças e se possível alguns dados sobre autoria, feitura, inauguração, mudança de local, etc. Fica desde já o nosso agradecimento. Começamos com o Fernando Pessoa de Lisboa - um bom começo, como se compreende.

A estátua fica situada junto ao Café Brasileira (do Chiado) e é motivo de incontáveis registos fotográficos com acompanhamento de figurantes nacionais e sobretudo turistas, pois a isso se presta e para isso foi feita. A mesa e as cadeiras são réplicas de mobiliário do café e a cadeira que se encontra vazia só foi "agarrada" ao solo depois de enquanto solta ter andado a vaguear pela Rua Garrett. 

A inauguração teve lugar a 13 de Junho de 1988, durante os mandatos de Krus Abecasis (presidente da Câmara Municipal de Lisboa) e de Mário Soares como Presidente da República.

Ver AQUI a biografia de Fernando Pessoa e  AQUI e AQUI a de Lagoa Henriques.

O gesso da estátua, na Faculdade de Belas Artes de Lisboa

A estátua, acompanhada de Fernando Frusoni, filho do grande poeta cabo-verdiano Sérgio Frusoni

O Presidente Mário Soares descerrando o monumento a Fernando Pessoa.

Excerto da notícia da inauguração no lisboeta "Diário de Notícias", de 14.Junho.1988. Onde se diz que a estátua de bronze situada em frente ao monumento representa o autor d'"Os Lusíadas", deveria dizer-se que é dedicada ao poeta António Ribeiro, dito "Chiado", por ter residido nessa zona da cidade. Foi contemporâneo e conhecido de Luís de Camões mas... mas... não é ele...

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho…)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

[0212] IV Prémio Literário UCCLA

IV PRÉMIO LITERÁRIO UCCLA
A decorrer, até 31 de Janeiro, a 4.ª edição do “Prémio Literário UCCLA - Novos Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa” que tem como objectivo estimular a produção de obras literárias em língua portuguesa nos domínios da prosa de ficção (romance, novela e conto) e da poesia por novos talentos escritores. É uma iniciativa conjunta da UCCLA, Editora A Bela e o Monstro e Movimento 2014, que conta com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa.
A participação na presente edição deverá ser para o endereço premiouccla.quartaedicao@gmail.com. Constituição do Júri: António Carlos Secchin, Brasil; Germano de Almeida, Cabo Verde; Inocência Mata, São Tomé e Príncipe; Isabel Pires de Lima, Portugal; José Luís Mendonça, Angola; José Pires Laranjeira, Portugal; Fátima Fernandes, curadora da Biblioteca Nacional de Cabo Verde; Rui Lourido, representante da UCCLA e João Pinto de Sousa, representante da Editora A Bela e o Monstro.

[0211] Tertúlias poéticas no Casino de Lisboa

Decorreu no passado 25 de Setembro, no Casino de Lisboa, a homenagem ao poeta guineense Ernesto Dabô, uma iniciativa da Associação de Moradores e Empresários do Parque das Nações, à qual se associaram as embaixadas da CPLP, a União das Cidades Capitais da Lusofonia (UCCLA) e o Casino de Lisboa. 
Tratou-se da primeira Tertúlia Poética no Casino que visa homenagear poetas africanos, brasileiros e timorenses.


[0210]


[0209] Helder Muteia, a nova poesia de Moçambique


De seu nome completo Helder dos Santos Martins Félix Monteiro Muteia, nasceu em Quelimane em 1960. Escritor, poeta e político, foi secretário-geral da Associação de Escritores Moçambicanos e Ministro da Agricultura. É deputado nacional.


PRESENÇA

Sou dos que ainda estão presentes
e bebem do amor a única ausência.
Quantos pedaços de mentiras
retenho na viscosidade do meu cuspo?

Quantas verdades apaixonadas
reclamam ansiosas o esperma das palavras?

Nenhumas, talvez, nenhumas...
escravizo o silêncio
e faço dele o meu mensageiro.

Estou presente em tudo ou mais
e aí onde me procurarem
será a minha próxima ausência.

[0208] Fernando Sylvan, cantando Timor em Portugal

Pseudónimo de Abílio Leopoldo Motta-Ferreira, nascido em Dili em 1917 e falecido em Cascais em 1993. 

Poeta, prosador a ensaísta, é um dos nomes da literatura timorense. 

Passou a maior parte da sua vida em Portugal, sempre invocando as suas origens. Presidiu à Sociedade de Língua Portuguesa e foi dirigente da Convergência Monárquica, que se opunha ao salazarismo.

"Meninas e meninos" é um dos seus poemas mais conhecidos, dentro de uma vastíssima bibliografia em prosa e verso.


NAVIO 

Tata-Mailau
É o pico-avô da minha Ilha.

Subi muitas vezes aos seus três mil metros.
E foi no seu alto
Que meu sonho-menino construiu um navio.

Antes.
Ninguém tinha compreendido
Que a ilha
Não é terra isolada pelo mar.


ROTA 

Não sei se o mar tem voz
Mas a sua voz
Desde pequeno me falava lento.

E eu via nele
O que não existia na memória.
Ninguém sabia
De meus avós e bisavós
Se era quadrado ou redondo
Se tinha vida ou não.

Mas sem saber se tinha voz o mar
Ouvia a sua voz.
E sem saber se tinha vida ou não
Sentia a sua vida.

Foi ele que me disse
Que havia Espaço e Tempo.

E comecei a viajar sem medo da viagem.

E nunca mais parei
Com medo da paragem.


MENINO GRANDE 

Papá,
Ressoa em todo eu
A minha voz primeira
Quando te chamava.
O menino que fui potenciou-se.
Não há menino grande,
Mas sou,
Papá,
Menino verdadeiro.

Já não fujo a gritar pelas ravinas,
Nem monto búfalos,
Nem subo a coqueiros,
Nem me escondo detrás de bananeiras.

Nascem-me já cabelos brancos,
Tenho um bigode
E sou feio e gordo.

E penso e escrevo e faço versos
E abro os braços ao mundo.

Começo a ser como querias.

Papá,
Se me visses agora
Reconhecer-me-ias!


MENSAGEM DO TERCEIRO MUNDO

Não tenhas medo de confessar que me sugaste o sangue
E engravataste chagas no meu corpo
E me tiraste o mar do peixe e o sal do mar
E a água pura e a terra boa
E levantaste a cruz contra os meus deuses
E me calasse nas palavras que eu pensava.

Não tenhas medo de confessar que te inventasse mau
Nas torturas em milhões de mim
E que me cavas só o chão que recusavas
E o fruto que te amargava
E o trabalho que não querias
E menos da metade do alfabeto.

Não tenhas medo de confessar o esforço
De silenciar os meus batuques
E de apagar as queimadas e as fogueiras
E desvendar os segredos e os mistérios
E destruir todos os meus jogos
E também os cantares dos meus avós.

Não tenhas medo, amigo, que te não odeio.
Foi essa a minha história e a tua história.
E eu sobrevivi
Para construir estradas e cidades a teu lado
E inventar fábricas e Ciência,
Que o mundo não pode ser feito só por ti.

[0207] Olinda Beja, a santomensidão na poesia

Olinda Beja, nasceu em Guadalupe, São Tomé e Príncipe em 1946. Estudou em Portugal onde reside, embora divida o seu tempo entre este país e São Tomé e Príncipe. Foi professora do ensino secundário em Portugal e de Língua e Cultura Portuguesas (e Lusófonas) na Suíça. Dedicou-se à escrita (poesia, contos e romances) desde muito jovem, tendo publicado diversos títulos. Entre outros prémios, recebeu em S. Tomé e Príncipe o Prémio Literário Francisco José Tenreiro de 2012-2013. Contadora de histórias, Olinda Beja tem divulgado, através de conferências e recitais de poesia, a cultura de S. Tomé e Príncipe por vários países nomeadamente Brasil, Austrália, Timor, Marrocos, França, Espanha, Suíça, Inglaterra, Luxemburgo, Cabo Verde. 


EIS-ME AQUI

Estou aqui
a contar-te dos caminhos que percorro
velhos   estreitos   esventrados
caminhos de sulcos e de cabras onde
nossos avós colheram pão de côdea dura
estou aqui
a contar-te dos cheiros doces e acres
dos frutos tropicais
cheiros que se foram confundindo no sangue
que se afundou em docas e mares mas emergiu
mais vermelho que o chão da nossa terra
estou aqui inteira   viva   irrequieta como pássaro
que acasala no equilíbrio de um ramo
e como tu quero ferir meus pés
no lençol de pedras que atapeta o ôbô
inundar de algas azuis o corpo reflectido
no espelho das calemas
estou aqui para escutar o vento no zinco dos casebres
e exorcisar os medos que vagueiam na linguagem do povo

estou aqui como tu
borboleta tricolor que pousa no eco das muralhas
e morre a ouvir histórias de um país calcinado.


SANTOMENSIDÃO

O poema está no ritmo
do nosso sangue cruzado. Na idade
da nossa santomensidão...

cheiros de terra quente
palmares de avó Sipinge
distância em distância entre
o leste e o oeste
o norte e o sul

o poema
é a única rota que deixa sulcos no cais
imensurável dos nossos atropelos


TRAVESSIA

pus a mesa no meio do quintal
Molembu se chamava a roça
regada com sangue de meus antepassados
invoquei os meus mortos
os espíritos todos que me antecederam
chegaram primeiro os oriundos do sul do Sahara
do Gabão, da Libéria, da Mina
outros vieram das ilhas áridas
outros das terras de D’Jinga
e outros ainda para lá do Ìndico
união de muitas raças e credos e danças
fado, marrabenta, puíta , manipuri
festa orgíaca que Sum Tômachi, o curandeiro
se comprometeu a montar
por fim vieram alguns do ocidente
lívidos e trémulos como a branca neve do seu longe
como o minuete das suas danças de salão
e o choro da guitarra e da viola
a mesa estava posta
iguarias atapetavam o robusto
tronco de mampiam que há muito alguém retangulou
e os espíritos todos provaram e se deliciaram
cozido de banana, molho no fogo
vuadô travessá, pescada com todos
angu, d’jogó, cozido à portuguesa
cachupa, funge, muamba,
arroz doce, canjica, paracuca
e os acepipes eram por todos sobejamente conhecidos
cafukas arderam até à exaustão da luz
tremelicaram vozes em cânticos hossânicos
em uníssonas línguas que se enovelaram felizes
e a torre de Babel ergueu-se una e majestosa
num pedaço de chão esquecido dos deuses
minha avó Dua espelhou seu rosto de água
em meu ombro anguloso e ressequido
e feliz adormeceu

[0206] António Nunes, o "poeta do quotidiano"


Nascido na Praia em 1917 e falecido em Lisboa e 1951, António Nunes foi “o poeta do quotidiano crioulo”. Fixou-se em Lisboa em 1940, relacionando-se com o grupo neo-realista, integrando-se na geração de “Certeza”.


POEMA DE AMANHà

- Mamãi!
sonho que, um dia,
em vez dos campos sem nada,
do êxodo das gentes nos anos de estiagem
deixando terras, deixando enxadas, deixando tudo,
das casas de pedra solta fumegando do alto,
dos meninos espantalhos atirando fundas,
das lágrimas vertidas por aqueles que partem
e dos sonhos, aflorando, quando um barco passa,
dos gritos e maldições, dos ódios e vinganças,
dos braços musculados que se quedam inertes,
dos que estendem as mãos,
dos que oham sem esperança o dia que há-de vir

- Mamãi!
sonho que um dia
essas leiras de terra que se estendem,
quer sejam Mato Engenho, Dacabelo ou Santana,
filhas do nosso esforço, frutos do nosso suor,
serão nossas.

E, então
o barulho das máquinas cortando,
águas correndo por levadas enormes,
plantas a apontar,
trapiches pilando
cheiro de melaço estonteando, quente,
revigorando os sonhos e remoçando as ânsias
novas seivas brotarão da terra dura e seca
vivificando os sonhos, vivificando as ânsias, vivificando a Vida.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

[0205] A memória dos povos

Uma exposição sobre as festividades tradicionais decorre na Galeria do Espírito Santo na alentejana vila de Moura, a partir de 30 de Setembro. É a memória cultural que faz a identidade da ridente localidade de à beira Alqueva, sublinhando o sagrado e o profano: a poesia e os contos populares não poderiam estar ausentes.

[0204] Luís Veiga Leitão, o poeta resistente

Luís Maria Leitão, mais conhecido pelo pseudónimo de Luís Veiga Leitão,  nasceu em Moimenta da Beira em 1912 e faleceu em Niterói, Brasil, em 1987. Poeta e artista plástico, destacou-se como militante antifascista pelo que, devido à perseguição salazarista, teve que se exilar no Brasil.


MANHÃ


-Bom dia. Diz-me um guarda.
Eu não ouço...apenas olho
das chaves o grande molho
parindo um riso na farda.

Vómito insuportável de ironia
Bom dia, porquê bom dia?

Olhe, senhor guarda
(no fundo a minha boca rugia)
aqui é noite, ninguém mora,
deite esse bom dia lá fora
porque lá fora é que é dia!



A UMA BICICLETA DESENHADA NA CELA

Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste.

Aqui,
onde o dia é mal nascido,
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido...

Bem haja a mão que te criou!

Olhos montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.

[0203] Manuel Curros Enriquez, um dos expoentes do "Rexurdimento galego"

Manuel Curros nasceu e Calenova (Ourense) em 1851 e faleceu Havana, Cuba, em 1908. Foi um dos principais poetas do “rexurdimento galego”. Filho de uma família fortemente tradicionalista, com ela rompeu ainda novo, fez-se jornalista (correspondente de guerra) republicano. Acompanhou a guerra carlista no País Basco onde foi ferido (1875). Anticlerical, foi perseguido pelo bispo de Ourense, excomungado, preso e condenado a dois anos de cadeia. Acabou por se exilar em Cuba, onde fundou a revista “Tierra Gallega” e defendeu a causa da independência cubana.


CANTIGA

No xardín unha noite sentada
ó refrexo do branco luar,
unha nena choraba sin trégolas
os desdés dun ingrato galán.
I a coitada entre queixas decía:
“Xa no mundo non teño ninguén,
vou morrer e non ven os meus ollos
os olliños do meu doce ben”.
Os seus ecos de malenconía
camiñaban nas alas do vento,
i o lamento repetía:


“¡Vou morrer e non ven ó meu ben!”

Lonxe dela, de pé sobre a popa
dun aleve negreiro vapor,
emigrado, camiño de América
vai o probe, infelís amador.
I ó mirar as xentís anduriñas
cara a terra que deixa cruzar:
“Quen pudera dar volta -pensaba-,
quen pudera convosco voar!…”
Mais as aves i o buque fuxían
sin ouír seus amargos lamentos;
sólo os ventos repetían:


“¡Quen pudera convosco voar!”

Noites craras, de aromas e lúa,
desde entón ¡que tristeza en vós hai
prós que viron chorar unha nena,
prós que viron un barco marchar!…
Dun amor celestial, verdadeiro,
quedou sólo, de bágoas a proba,
unha cova nun outeiro
i on cadavre no fondo do mar.

[0202] José Pascoal, a poesia refugiada


José Pascoal nasceu em 1953 em Cambelas, Torres Vedras. Poeta português pouco conhecido, vem publicando poesia desde 1972


CÓLERA

A palavra cólera
Tem dois significados,
Ambos doentios.

Deve ser a primeira vez
Que a escrevo num poema.

Há uma primeira vez para tudo,
Até para não voltar a escrever
A referida palavra.


LEITURA OBRIGATÓRIA

O gato passeia
Entre os livros de poesia
Espalhados sobre a mesa.

Acaba por se enroscar
Numa edição ilustrada
D`Os Lusíadas.

Não sei o que ele pensa das epopeias.
Eu também não penso nada
Das elegias.

Mal sabe ele que
Os livros de poesia estão cheios de gatos
Como os pratos da louça de Sacavém.


O LAGARTO PINTADO

Um lagarto pintado
No chão rosado
Vive ao sol sem perder
O sangue-frio,
Chama-se Onofre,
Nome de santo
Ou de catástrofe,
Ele não se aborrece
Com o nome que lhe dão
Os animais de sangue quente.


TÉCNICA DA TRISTEZA

Paradas,
As cadeiras esperam o convite
Para que nos sentemos nelas.
As cadeiras não têm coração.
São máquinas dispostas a tudo.
Sento-me numa e lembro-me
Como quem não respira.
Não tenho nenhuma palavra a deixar
Aos meus.

[0201] João Roiz de Castel-Branco, poeta português do século XV

João Rois (ou Rodrigues) de Castel-Branco do tempo de D. Manuel I (séc. XV), foi cavaleiro cortesão e poeta que terá falecido depois de 1515, celebrizado pelo seu poema inserido no “Cancioneiro Geral” de Garcia de Resende.

“Ibn Mucana” passará a publicar regularmente invocações históricas das literaturas lusófonas.


CANTIGA SUA PARTINDO-SE

Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém

tão tristes, tão saudosos
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida,

partem tão tristes os tristes
tão fora de esperar bem
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

[0200]


[0199] De novo, Ronaldo Cagiano

Ronaldo Cagiano Barbosa revisita-nos, o que nos honra. Nascido em Cataguases, Minas Gerais, em 1961, reside actualmente em Lisboa. Advogado, escritor, ensaísta, crítico, poeta, é uma das novas vozes brasileiras


ROTINA

O último trem vara meus
instintos – a vida segue como um tiro.
                        Tanussi Cardoso


Do pátio da velha estação
(esqueleto desativado onde hibernam morcegos)
procuro no tempo escuro e abissal
a histriônica locomotiva da infância
penetrando a cidade como um raio.

Fera metálica atravancando a avenida
beirava o córrego como uma centopeia arengueira
recolhendo os olhares de mulheres nas janelas
adestrando o galope dos  moleques
que, disputando com a máquina alucinada,
venciam a corrida contra alguma coisa que não sabiam

Aquele trem no vai e vem
com seu barulho contumaz
emerge - feito o passado latente -
dos escaninhos da noite

Animal sem metafísica
insistente como o presente
ainda impõe a melodia insolente
dos apitos
enquanto
desconheço a tirania do futuro.


MAÇÃS AO ENTARDECER

Aquela cesta solitária
         feito um alguidar de silêncios
exibe as três maçãs
         na cozinha que se despedia do sol.

Ainda a claridade baça
       configurando a tarde indisposta
       amadurecia o outro fruto escondido,

um coração esquartejado
pelos vermes
de miméticas angústias

Não há como devorar o passado
com a mesma sanha,
          a mesma fome
desses animaizinhos
que nos corroem por dentro


RUÍNAS

Cadáver de um prédio
corpo inconcluso
organismo em ruínas
apedrejado pela incúria pública

Contemplo o esqueleto de cimento
contrastando com a opulência da avenida feérica
com suas vísceras à mostra
como um cão faminto
sem força para rosnar

sem alma
sem nada

desossada estrutura, palavra

sem cal
nem mal

Lugar sem nome
vazio que se impõe

ovário vertical germinando indiferenças
túmulo de histórias

Apenas um espantalho inútil
na lavoura de espantos da metrópole

passam por ti os homens
não se movem
nem têm medo

terça-feira, 25 de setembro de 2018

[0198] Portugal: 1.º volume da obra poética de António Ramos Rosa é publicado na quinta-feira

Ver AQUI e AQUI

[0197] Ibn Mucana atinge 5000 visualizações no primeiro mês de vida. Um obrigado geral!!!

O top 10 dos países que mais nos visitaram desde o início do IM

[0196] Manuel Lopes, poeta e escritor cabo-verdiano


Um dos fundadores da moderna literatura cabo-verdiana, Manuel dos Santos Lopes nasceu em 1907 em Campinho, ilha de S. Nicolau, e faleceu em Lisboa, em 2005. Ficcionista, ensaísta e poeta, foi um dos responsáveis pela revista “Claridade”. Viveu em Coimbra e, desde 1944, nos Açores (ilha do Faial). Mais conhecido como romancista, foi igualmente um destacado poeta. Os dois poemas que Ibn Mucana hoje oferece são retirados de "Crioulo e outros poemas", edição do autor, Lisboa, 1964, com dedicatória ao jornalista, ensaísta e crítico literário Álvaro Salema, datada da altura da saída do livro. Ver imagens abaixo. Sobre Álvaro Salema, ver AQUI


A GARRAFA

Que importa o caminho
da garrafa que atirei ao mar?
Que importa o gesto que a colheu?
Que importa a mão que a tocou
— se foi a criança
ou o ladrão
ou filósofo
quem libertou a sua mensagem
e a leu para si ou para os outros.
Que se destrua contra os recifes
eu role no areal infindável
ou volte às minhas mãos
na mesma praia erma donde a lancei
ou jamais seja vista por olhos humanos
que importa?
… se só de atirá-la às ondas vagabundas
libertei meu destino
da sua prisão?…



CRIOULO

Há em ti a chama que arde com inquietação
e o lume íntimo, escondido, dos restolhos
- que é o calor que tem mais duração.
A terra onde nasceste deu-te a coragem e a resignação.
Deu-te a fome nas estiagens dolorosas.
Deu-te a dor para que nela,
sofrendo, fosses mais humano.
Deu-te a provar da sua taça o agridoce da compreensão,
e a humildade que nasce do desengano…

E deu-te esta esperança desenganada
em cada um dos dias que virão
e esta alegria guardada
para a manhã esperada
em vão…


[0195] Elias R. B. Chipalavela, a nova poesia de Angola


Usando o pseudónimo literário de Voz d’Aurora, Elias R. B. Chipalavela nasceu em Mavinga em 1992. Membro da Brigada Jovem da Literatura de Angola é uma das vozes da jovem poesia angolana. Estudante de Direito em Luanda, é co-fundador da Associação Grupo de Busca e Difusão do Saber.


NA SERRA DA LUA

Na serra da lua, o piscar do seu olhar
Milimetricamente actua
O silêncio de seus lábios para aventura
Insinua
Espero ver o rio descendo, correndo
Espero ver o rio, na serra da lua,
Na serra da lua!

Na serra da lua, o ópio de seu perfume
Ardiloso cativando
O ritmo da sua fala a saudade expurgando
Espero ver o rio descendo, correndo
Espero ver o rio, na serra da lua,
Na serra da lua!

Na serra da lua, frenética ânsia
Triste alma fustigando
Em nostálgica imagem belo sonho
Fumegando
Espero ver o rio descendo correndo
Espero ver o rio, na serra da lua,
Na serra da lua!


O GRITO DOS KANDENGUES

Entre sonhos e sonâmbulos, o grito dos kandengues
A noite cai em prantos, não há manjar no prato!

Queremos o manjar, sim, choramos por um manjar
Sem manjar no prato, mamã não dormiremos
Papá é bom de prosa, mas nossa fome já não cega

Queremos o manjar, sim, choramos por um manjar
Sem manjar no prato, mamã não dormiremos
Medo temos de dormir, medo temos de não mais acordar

Queremos o manjar, sim, choramos por um manjar
Não há manjar para acalentar a fome, a revolução do estômago
Nem palavras que possam nutrir talvez os nossos ânimos

Queremos o manjar, sim, choramos por um manjar
Entre sonhos e sonâmbulos, o grito dos kandengues
Não há manjar no prato: noite cai em prantos!

[0194] José Carlos Ary dos Santos, o "poeta do povo"

José Carlos Ary dos Santos nasceu em Lisboa em 1936 e aí faleceu em 1984. Poeta, declamador e dinamizador cultural, foi igualmente autor de letras de canções, quatro delas vencedoras do Festival RTP da Canção. Desde a clandestinidade militante do Partido Comunista Português, fez-se o “poeta do povo”.


POETA CASTRADO, NÃO!

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo   dromedário
fogueira de exibição
teorema   corolário
poema de mão em mão
lãzudo   publicitário
malabarista   cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado   não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura  como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
 a força que tem um verso
 reconhecem o que é seu
 quando lhes mostro o reverso:

 Da fome já não se fala
 é tão vulgar que nos cansa ---
 mas que dizer de uma bala
 num esqueleto de criança?

 Do frio não reza a história
 a morte é branda e letal ---
 mas que dizer da memória
 de uma bomba de napalm?

 E o resto que pode ser
 o poema dia a dia?
 Um bisturi a crescer
 nas coxas de uma judia;
 um filho que vai nascer
 parido por asfixia?!
 Ah não me venham dizer
 que é fonética a poesia!

 Serei tudo o que disserem
 por temor ou negação:
 Demagogo   mau profeta
 falso médico   ladrão
 prostituta   proxeneta
 espoleta   televisão.
 Serei tudo o que disserem:
 Poeta castrado   não!


AUTO-RETRATO

Poeta  é certo  mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.

Cozido à portuguesa  mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento  ambas partes
do meu caldo entornado na infância.

Nos olhos  uma folha de hortelã
que é verde  como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.

Poeta de combate  disparate
palavrão de machão no escaparate
porém  morrendo aos poucos de ternura.

[0193] Valentinous Velhinho, uma original poesia cabo-verdiana

Valdemar Valentino Velhinho Rodrigues nasceu em 1961 na Calheta de São Miguel, ilha de Santiago, Cabo Verde.

Editor do jornal cultural “Artiletra”, o único deste tipo existente naquele país. É um dos vultos da actual poesia cabo-verdiana. De linguagem rebuscada, com metáforas insólitas e surreais marcadas pela ironia, sobretudo debruça-se por uma temática metafísica. Caracterizado por só falar e crioulo, Valentinous Velhinho só escreve em português.


LIBERDADE

Porque teremos de soltar
O último sopro?
Porque não tem o último sopro
Liberdade bastante de se soltar?


MÁSCARAS

De que fingimos
Não se dão conta
As máscaras

Para coisas maiores
foram feitas.


E SÓ NESSE DIA OUTRO BORGES NÃO SERÁS

Nos teus deslumbrados olhos um tigre inteiramente doirado
E outro inteiramente preto disputam os anjos

De Blake. Frios, esperam os espelhos que acordes
Para que te nomeiem. Já não sabe o labirinto

Nem o sul e as pampas ou o degolado templo
De Dagon o sabem – do antigo e secreto caminho

Que a teus olhos de volta conduz. A mão dita-te
O epitáfio e lê-te a rosa o esquecimento qu’inda luz.

O caixão, que por Genebra ninguém viu passar, cru
Leva-o Muraña e, reconciliados, os irmãos Iberra

Um dia, quando do teu sono acordares, Georgie,
Banhado em êxtase e tango, terás defronte de ti, sob a Lua

Um infame, um vil, a limpar-te na glande o resto do sémen
Com uma navalha que a não mais nenhuma mão obedecerá.

[0192] João Rui de Sousa

Nascido em Lisboa em 1928, João Rui de Sousa é poeta, tradutor e ensaísta. 

Trabalhou como investigador nos espólios literários da Biblioteca Nacional de Lisboa e, com António Ramos Rosa e outros, fundou a revista “Cassiopeia”, de que foi director. 

Obteve o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários de 2002, o Prémio PEN Clube Português de Poesia de 2003 e o Grande Prémio Vida Literária da APE/CGD de 2012.


CORPO DE AMBIGUIDADE

posso e não posso ir-me noite fora
nestes pilares do medo desta dor
- é quando os dedos ferem (não se tocam)
é quando hesito e coro

é quando vou não vou neste mergulho
em seco a imergir em pobre chão
de caos e flor e vinho e confusão

é quando sem chorar me escondo e choro


DEPOIS DE AMANHÃ A PRIMAVERA

A dadivosa mãe que em tudo existe
para além do só remédio só palavra
um cobertor de esperanças para o medo
três girassóis lindíssimos desdobráveis
A boca na boca e as lágrimas
mais azuis de brinquedos e de imensos
lençóis de inventar os dias límpidos
A dadivosa mãe as tardes quentes
Florescer a noite de agasalhos
de corações em pé no destemor
alimentar as órbitas fraternas
de iluminar raízes dança pura
Ó música sem tédio dos cabelos
do teu olhar do cheiro dos reflexos
desta razão solar! Em caule e rama
- ó dadivosa mãe – tudo desperta!

[0191] Inês Ramos revisitada


Portuguesa residente em Cabo Verde, designer de profissão, Inês Ramos fez-se importante dinamizadora cultural no país onde optou viver, tendo criado o primeiro fanzine nele existente, “Banda Poética”. “Ibn Mucana” honra-se da sua revisita.


FOTOGRAFIA COM RAPARIGA AO PIANO

Não te vejo os dedos, mas pressinto-os. O frémito tilintar
das notas afasta a morte e as angústias para lá da sala.
E a pauta, inútil, já caiu ao chão.

Não sei onde estás, mas pressinto-o. Uma sala ampla, aberta
de clarões de luz, longe do ruído da cidade. Longe do mar poluído.
Tua envolvente é límpida, como água. Como o brilho do piano lacado. Como o branco das teclas de marfim.

Não ouço o que tocas, mas pressinto-o. Vem ao meu encontro
e entra-me corpo adentro. Percorre-me as veias até ao coração.
Depois de uma ligeira paragem cardíaca, volto à vida, mais serena.

Não te vejo o rosto, mas pressinto-o. Sei-te mulher.
Tens os olhos
fechados e a testa ligeiramente franzida. Interiorizas a música
que te sai da alma e volta a entrar pela pele.

Não te sei o nome, mas pressinto-o. Tens o nome das madrugadas
de Maio. Das papoilas vermelhas nos campos de trigo.
Um nome com poucas letras e de vogais abertas.

Não te leio os pensamentos, mas pressinto-os. Uma saudade dorida,
um desencontro. A carne rasgada por um amor perdido. O consolo
possível nas teclas do piano.

Deixaram-me entrar na foto em que tocas. Apenas me disseram:
/entra e sente.
E eu entrei. Fiquei parada, de braços caídos. Espreitando-te
/por uma fresta a preto e branco, captada num clic, no momento preciso.

Vi um mocho sobre o piano. E um gato preto dormindo a teus pés.
Vi flores nascerem no chão ao som das notas. Seriam papoilas?

E o piano ganhou vida de repente, tornou-se humano. Criou braços que te envolveram. E juntos partiram para uma qualquer nuvem, deixando-me aqui.
De braços caídos. Em silêncio.

[0190]

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

[0189] Joaquim Saial e uma declamadora azarada...


Joaquim Saial (Vila Viçosa, 1953) revisita-nos (ver post 0161 AQUI), desta feita oferecendo-nos uma das histórias curtas do seu livro que se encontra pronto para edição, "Contos de vida e morte" (título provisório). 

Trata-se de um conjunto de trinta trabalhos onde a maior parte das vezes a morte está presente (o que não é o caso do presente texto) quase sempre caldeada por humor, ridículo ou sarcasmo.

É esta a primeira vez que "Ibn Mucana" publica prosa não poética. Mas que afinal se centra na poesia, atavés da infeliz declamadora que o autor aqui nos faz chegar.


A DECLAMADORA QUE LIA POEMAS SENTADA

Era o lançamento de um livro de poesia, numa terra do interior. Na sala cheia de público, as entidades municipais, a autora e a representante da editora já haviam feito os discursos da praxe, aos quais se seguiam momentos de leitura da obra acabada de nascer, pelos amigos da poetisa, também quase todos poetas e que tinham vindo de longe para o evento.

A quarta a exercer essa função, embora ainda nova e de aspecto maciço e vigoroso, ao contrário dos restantes realizou-a sentada, para isso tendo pedido uma cadeira, logo disposta por mãos solícitas junto à mesa de honra. Mais leituras houve, de outros, até que a tarefa lhe coube de novo. Sentiu ela então necessidade de justificar a estranha atitude, confessando que, nervosa por natureza, em ocasiões semelhantes ou deixava cair os óculos ou o livro ou quase tombava ela própria e que por isso se defendia de prováveis desgraças desta natureza, preferindo ler sentada.

Foi nesse momento que se ouviu fortíssimo estalo que ecoou estranhamente no silêncio da sala. Rachara-se o plástico da cadeira, que logo se desfez em pedaços, a leitora caiu de pernas para o tecto, os sapatos de salto alto voaram pelos ares e todos os que estavam nas filas da frente viram que a sua cinta era cor de salmão, que não depilava as pernas dos joelhos para cima e que tinha um buraco no calcanhar da meia esquerda.