terça-feira, 26 de outubro de 2021

[0748] Poema de Carlota de Barros com um ano, mas ainda inédito (até hoje)


PEDRA OU SINO

             NUM PENSAMENTO INOCENTE



Penso naquele inocente encontro de 

Herberto Helder com a pedra pedra

a pedra verde ou azul que não era pedra

mas talvez um sino sem pensamento

no seu pensamento inocente.


Ah! Sim. 


Lembrei-me do grande silêncio 

da chama que a noite alimenta.

A noite   lenha para a nossa 

leveza humana


Ter-me-ei também encontrado

com a pedra  pedra no silêncio

escaldante desta noite maravilhosa

em que a Lua Nova surge ligeira

com passos de algodão enquanto eu

beijava os meus lírios num gesto doce

de gratidão e de puro encantamento?


Será que também esbarrei na pedra  

pedra estática e dura no meu caminho?


Será que também me encontrei com a pedra pedra  

na pedra do tempo  pedra azul ou Lua Nova silenciosa 

pedra verde em jeito de sino sem pensamento nesta  

noite cadente do meu pensamento inocente? 



Ou será que a pedra  pedra de Herberto Helder  

é hoje a Lua Nova no meu pensamento azul  

quase verde  reflexo das árvores que povoam 

o meu campo   refúgio da lua nos lábios ainda 

acesos do crepúsculo onde o silêncio é música?


Será a pedra pedra não menos que esta noite 

escaldante em que o beijo é sonho ou o sonho é 

seda na delicada floração do beijo da Lua Nova?


Poderá ser a pedra pedra   sino sem pensamento 

ou casualmente sombra do meu pensamento no   

silêncio desta noite abrasada pelo fervor dos dedos 

do sol escorrendo lume pelos campos ou pelo asfalto 

onde doces folhas inocentes  seixos  fendas abertas

numa exaltação quase vulcânica aberta ao sonho?


Ou será sonho ou mesmo beijo da lua 

nos ruídos da noite em que talvez eu tivesse o 

pensamento no silêncio dos lírios a abrirem-se

ou no seu perfume errando pela sala ou    

no mar rebelde que frisou o meu cabelo 

e pintou os meus olhos de verde água

ou ainda no silêncio ruidoso das pedras 

da vida em que se vai esbarrando com dor?


Talvez termine o poema num degrau de pedra

mais alto que o silêncio mais sublime que as  

ondas silenciosas do meu pensamento  

ou talvez nem o termine  o deixe nos olhos da lua

que ainda sonha com beijos do sol ou o deixe

com o sonho que sonha ser o beijo da lua.


Ou quem sabe o deixe aguardando naturalmente

que alguém o termine ou então nunca o termine

mas que seja sempre beijo da lua ou sonho 

desse beijo da lua espreitando os meus lírios

perfumados como nesta noite abrasada de 

Lua Nova  noite de pedra   pedra verde ou azul  

sino ou silêncio  sem pensamento verde ou azul?


Carlota de Barros

Lisboa 22 de Julho de 2020 

 

terça-feira, 5 de outubro de 2021

[0746] Glosando o poema de Ruy Belo "oh as casas, as casas, as casas", Luís Palma Gomes oferece-nos este poema matinal


OH, AS MANHÃS, AS MANHÃS, AS MANHÃS


Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs

são arpejos de chapins refletidos sobre os ribeiros,

camiões em trânsito trazendo e levando a claridade,

anseios ligeiros, quando os tempos são de invernia

As manhãs conhecem-nos nus e esfomeados

As manhãs são a esperança das noites

ou a angústia de quem se percebe vivo outra vez

Como louvam os pássaros as manhãs

enquanto se agitam as estradas tão estranhas

ao mar raso e coloquial

que entra sem rumor pela praia de Algés adentro.


Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs

tem o sabor amargo do café

que sentimos nos cantos da boca,

quando a fala trôpega sacode o ar ainda frio

que se esgueira pela fresta da janela mal fechada

São um prenúncio das histórias mal-acabadas

São o fio da navalha, limite incerto entre a paz e o inferno,

o calor e a chuva inesperada, o desejo de um bolo

que não se come há anos

 Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs.