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segunda-feira, 5 de novembro de 2018

[0376] Pedro da Silveira, os Açores como identidade


Pedro Laureano Mendonça da Silveira nasceu em Fajã Grande (ilha das Flores, Açores) em 1922 e faleceu em Lisboa em 2003. Poeta, crítico literário, investigador e tradutor, foi gestor da Biblioteca Nacional de Lisboa. Viveu na capital portuguesa desde 1951. Inconformista, foi voz incómoda para os poderes instituídos: um dos promotores da Enciclopédia Açoriana


POEMA 

Quando morrer em nós o último barco da emigração
e a ânsia das Américas perdidas;

quando os nossos olhos deixarem de voltar-se tristes
para o vapor sumindo-se na linha do pego;

quando descobrimos a força que ainda guardam nossos braços
cansados de querer abraçar as estrelas;

quando os dias deixarem de rolar sobre os dias
sem esperança nenhuma para erguer;

quando, enfim, nosso esforço de irmãos fizer brotar
uma outra vida no chão das nossas ilhas

- neste chão que ficou amorosamente esperando
os nossos corpos derrotados na aspereza dos caminhos do retorno –

então, pátria, será nosso o teu destino


ILHA

Só isto:
O céu fechado, uma ganhoa
pairando. Mar. E um barco na distância:
olhos de fome a adivinhar-lhe à proa
Califórnias perdidas de abundância.


POEMA DA ANTEMANHà

Aqui,
longe,
num café de Lisboa,
quase a beira do Tejo turvo das fragatas,
a olhar um paquete que vai na direcção da barra,
subitamente é como se eu também partisse.
E só de pensar-me partindo
embarco e, deslumbrado,
imagino-me chegado às ilhas.

Todo um mundo familiar ressurge nos meus olhos!
E vejo-te, Mãe Terra; és tu,
de nuvens e de aves marítimas coroada,
no meio desse Atlântico - bravio
abraço de águas salgadas que nos atira para o mundo,
nos separa do mundo -. Sinto
o cheiro saboroso do teu chão de lavas verdes;
ouço mesmo o rumor surdo das ribeiras caindo das rochas abaixo
(ou será talvez o mar batendo nos baixios da costa?)...
Estou, Mãe Terra, nas tuas cidades,
nas tuas vilas mortas,
e, mais sobre oeste,
tanto que ali a Europa acaba,
na freguesia onde eu nasci.
Vejo nitidamente os campos de milho
e, no cimo, as relvas e o azul das hortênsias.
Sigo pelo caminho habitual da beira-mar
e uma figueira estende-me a sombra dos seus ramos.Com um molho de lenha à cabeça uma rapariga passa
e olha-me com a naturalidade de quem sabe que voltei.
Um menino leva as vacas para a relva
e, como sempre, os velhos estão sentados à praça.
Por caminhos de terra e mar
parto e, logo, chego. Estou
nas cidades e nas vilas, em todos
os lugares de cada uma das nove ilhas.
Os meus antigos companheiros,
tantos deles por aí dispersos,
outros, como eu, perdidos longe
- na Europa, em África, nas Américas -,
estão agora todos presentes. Penso
que alguma cousa diferente vai passar-se,
algum acontecimento extraordinário.
Vejo-te, Mãe Terra!
Vejo-te, mas eu sei,
é só de imaginar-te que te vejo.
É só de saudade a tua presença em mim.
Estou longe...
Longe, Mãe Terra!
E a tua madrugada
impede-a um muro hostil de braços estendidos cor de azebre