LIVRE
Livro que se lavre
e não seja livre…
Livra!...
DECRESCENS VITA
Sempre que me aflora o advérbio "talvez", há de certeza um esquecimento líquido correndo, espraiando-se pela vizinhança de mim mesmo.
Enfrento os meus limites quando apenas posso pensar nas marinhas fortes de Esposende. Estático, trago comigo as palavras e o seu ideal tão longínquo, quanto vertical, e tão próximo do sol como da profunda infância.
O dia abre-se novo, mas previsível. As mulheres inauguram-no, parideiras agora sem dor, lavando as cores serenas num rio que passava por aqui e — mesmo que os pássaros ainda nele falem — jamais voltará à presença determinada das árvores que estas ervas veneram sem saberem porquê - a habitual ausência de razão para qualquer veneração, diria.
Levanto os olhos e reparo que os outros não escrevem poesia por agora. Talvez tenham escrito em casa ou a guardem para as férias grandes, ou tão-só não tenham lido Ruy Belo, como eu o fiz ontem à noite.
O dia decresce desde que nasce. E nós, rendidos pela nascença, aceitamos este crescimento da morte, banalmente, como a um chamamento de pardais, ou à forma arredondada das laranjas.
Chamo tédio adocicado a este lapso que interrompe as sonâmbulas viagens que faço para um destino comum e vulgar de pedras em queda até ao entendimento do poço. E sem caminho algum para regressar, caio.
LEVANTAMENTO DE RANCHO
O meu sargento desculpe mas ali não havia sonhos
Nem sequer daquele arroz que a prima Maria fazia
Doce como os sonhos o meu sargento desculpe
Mas é tão estúpido tão escalabitano tão
A norte de Bafatá ou mesmo
Castelo Branco o meu sargento é um nabo
Sonhos de ovos em castelo misturados na farinha
O meu coronel desculpe mas tive de o abater
O gajo não entendia que os sonhos eram os outros
Eu não ia gastar na tropa recordações de noites várias
E já agora também lhe digo que na bolanha entre as árvores
Há um ar em silencio extremamente melancólico
O meu capitão desculpe mas não chamei a amargura
De quando conheci a Domingas uma vez encontrei-a
Já havia muitos meses que me lavava a roupa
Junto ao mercado do Pixiguiti chorava
Era sofrida como uma mulher
Doce e tão calada como um objecto partido
O meu capitão desculpe mas tive que o abater
É uma coisa que me chateia entrarem-me nos afectos
O que é que você sua besta sabia da ternura em comissão
De serviço o senhor que olhava de alto os taratas e os mancarras
O meu major desculpe mas era chegada a hora
Tantos anos depois ficaram todos em fila
A vingança é o que mais mora numa cabeça de soldado
Pensa-se nisso sempre quando se passa à peluda
De modo que foi assim fiz levantamento de memórias
E o melhor de tudo foi que já não me podiam tocar
Eram nabos frios como o esparguete o arroz sensaborão
Ficaram todos em fila pois então
Mesmo que em sonhos e agora estes não são
De ovos e farinha como almejava nesse tempo
Quando aguardava sem chegar uma encomenda familiar
Os olhos antigos tão fundos como o pego do rio Geba
E já agora que estamos com a mão na outra massa
Que é como quem diz com a pata na G3
O meu general vá à fava palavra de civil tão sem galões
O meu general é um nabo como na caserna se dizia.
ANUNCIAÇÃO
As mulheres do vento parado como um planeta extinto
as mulheres doentes as mulheres que cantam com surpresa
o seu vestido estranho como uma renda como uma absurda mancha
as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas
entre mim e o céu
Entram pela minha boca e censuram-me docemente
Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante
ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios
Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos
junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando
estremecendo como uma pétala sobre a água
Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis
escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza
Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval
mulheres de pernas como lírios rosados
andando ao longo duma estrada francesa
as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa
Job de rosto erguido amargo senhor das angústias
a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos
a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes
Dizei-me mulheres onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou
na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra
Vós sois o sustento dos pontos cardeais
Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste
e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda
o fumo espalhado no parque abandonado
os olhos tranquilos frios
A rua solitariamente sob a noite de Junho
e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar
A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura
à luz frouxa da manhã e o frio subindo até às portas como um animal
a morrer.