sexta-feira, 20 de março de 2020

[0703] "Despedida", tocante poema de Pepita Tristão


DESPEDIDA
Pepita Tristão


Fui ao multibanco das emoções
De onde retirei o carinho
que me restava
de toda uma vida a amar-te.
Comprei-te um bolo cheio de creme
como gostas
- a doçura faz parte do teu ADN -.
Saboreaste-o naquela esplanada
de jardim, rodeada de árvores
sob os trinados de mil e uma aves
azuis e verdes de uma moldura
ponteada de variegadas cores.
Em uníssono rimos e aplaudimos
o espectáculo da natureza
a renascer
neste Carnaval da vida.
Depois disse-te adeus
e tu sorriste, aliviado.

Renoir, "Les fiancés" (ou "Le ménage Sisley"), 1868

quinta-feira, 19 de março de 2020

[0702] Um belo poema de Nicolau Saião, o bardo de Portalegre


ANUNCIAÇÃO
Nicolau Saião


As mulheres do vento   parado como um planeta extinto
as mulheres doentes   as mulheres que cantam com surpresa
o seu vestido estranho como uma renda   como uma absurda mancha
as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas

entre mim e o céu

Entram pela minha boca e censuram-me docemente

Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante
ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios
Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos
junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando
estremecendo como uma pétala sobre a água
Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis
escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza
Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval
mulheres de pernas como lírios rosados
andando ao longo duma estrada francesa
as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa

Job de rosto erguido amargo senhor das angústias
a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos
a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes

Dizei-me mulheres  onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou
na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra
Vós sois o sustento dos pontos cardeais

Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste
e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda
o fumo espalhado no parque abandonado
os olhos tranquilos frios
A rua solitariamente sob a noite de Junho
e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar

A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura
à luz frouxa da manhã   e o frio subindo até às portas como um animal
a morrer.
                                                                                           (Bruxelas, 1999)

Pablo Picasso, "Les demoiselles d'Avignon", 1907

quarta-feira, 18 de março de 2020

[0701] Na reabertura do IM, um poema de Joaquim Saial


A ÚNICA PREOCUPAÇÃO
Joaquim Saial


Ele não questionava a existência de Deus
nem o perigo atómico.
Muito menos, a origem dos fogos florestais,
a pesca desenfreada das baleias,
as alterações climáticas,
os parcos aumentos dos funcionários públicos,
a gentrificação de Lisboa
ou a passagem da Rua Augusta a circo.
Nem sequer o vírus maldito das muitas mortes,
a grande praga do início do século XXI.

Ora, ora, queria lá ele saber disso tudo.

O que o preocupava,
o que o afligia mesmo,
o que não o deixava dormir,
sossegar sequer um minuto,
era que lhe riscassem o carro estacionado na rua,
aquele belo espadalhão azul mate,
comprado com tanto sacrifício.


[0700] Post 700 do Ibn Mucana

Este blogue nasceu da amizade do actual administrador com o poeta, jornalista e radialista Nuno Rebocho. Juntos, fizemos a divulgação de vasto número de poemas e poetas de língua latina (lusófonos, em particular). Desaparecido o Nuno a 12 de Janeiro deste fatídico ano de 2020, o blogue entrou em alguma pausa, pois era ele quem enviava os materiais que aqui colocávamos, num bem oleado sistema de um fornece a matéria-prima e o outro a mão-de-obra. Passados dois meses, é tempo de reanimar o Ibn Mucana e para isso contamos com a maioria dos que aqui têm tido lugar. De certo modo, o poema de José Luiz Tavares inserido no post anterior já é um prenúncio disso.

Enviem-nos poemas vossos, inéditos de preferência (obviamente sem obrigatoriedade de o serem), uma fotografia, uma biografia de meia dúzia de linhas e avançaremos, honrando o passado do IM e a memória do nosso amigo.

Por vós esperamos, neste dia em que, por via deste, atingimos o post 700

[0699] Poema de José Luiz Tavares, em período de cerco

Foto Nuno Portela
José Luiz Tavares nasceu a 10 de junho 1967, no Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde. Estudou literatura e filosofia em Portugal, onde vive. Entre 2003 e 2020 publicou catorze livros espalhados por Portugal, Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Colômbia. Recebeu uma dezena de prémios atribuídos em Cabo Verde, Brasil, Portugal e Espanha. Não aceitou nenhuma medalha ou comenda, até agora. Traduziu Camões e Pessoa para a língua cabo-verdiana. Está traduzido para inglês, castelhano, francês, alemão, mandarim, neerlandês, italiano, catalão, russo, galês, finlandês e letão. Sobrevive ao tempo do mundo sem estar conectado a nenhuma rede social.


FINDA
[Litania em tempos de coronavírus]

Depois, sim, que agora
estamos vivos.
Depois — quando o espirro
expirar.
Depois — quando tiveres
pó na goela.
Não agora — que agora
estamos vivos.

Antes, sim, com os braços
portentosos.
Antes - sim – de a fraqueza
noivar com eles. Depois, sim,
porque há ar no ar
e a despedida é sem desculpa
e sem tristeza.

Antes não, que te falta
o assobio e a trela,
e a cara é sem rugas,
e a morte concorda contigo,
e tudo é mão de amigo
mesmo se te espreita
o tempo inimigo.

Depois sim, que estar vivo
é cedo encarquilhar-se;
não, não agora, porque estás
no impenetrável interior,
e desconheces o limite ulterior,
e não sabes pedir por favor
o socorro amplamente publicitado.

Agora sim,
que é antes de toda a dor,
                         ainda no corpo tens cor,
                         e sobe-te  à boca
                         centos de sabores.

Mas ainda não ao grande sim,
porque maravilha-te estar aqui
(só mais um instantinho),
embora penses na mão da eternidade
ou como é doce o despenhamento.

Antes não
— porque há a verdade
que desconheces,
e porque realmente não sabes
tudo desejas devotamente.

Não ainda — que os teus ossos
não sabem a alcatrão,
nem depois — que o esqueleto
é pertença do patrão.

Não depois,
mas agora sim,
porque tens fogo nas ventas,
mascas pó e polenta,
e o tempo inimigo te diz
que tudo se há de compor.