sexta-feira, 30 de novembro de 2018

[0457] Casimiro de Abreu, o romantismo nativista brasileiro


Casimiro José Marques de Abreu nasceu na Barra de S. João (Rio de Janeiro) em 1839 e faleceu, vítima de tuberculose, em Nova Friburgo em 1860. Comerciante e poeta, passou efemeramente por Portugal.


CANÇÃO DO EXÍLIO 

Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!
Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro
Respirando este ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
Os gozos do meu lar!
O país estrangeiro mais belezas
Do que a pátria não tem;
E este mundo não vale um só dos beijos
Tão doces duma mãe!
Dá-me os sítios gentis onde eu brincava
Lá na quadra infantil;
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria,
O céu do meu Brasil!
Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já!
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!
Quero ver esse céu da minha terra
Tão lindo e tão azul!
E a nuvem cor-de-rosa que passava
Correndo lá do sul!
Quero dormir à sombra dos coqueiros,
As folhas por dossel;
E ver se apanho a borboleta branca,
Que voa no vergel!
Quero sentar-me à beira do riacho
Das tardes ao cair,
E sozinho cismando no crepúsculo
Os sonhos do porvir!
Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
A voz do sabiá!
Quero morrer cercado dos perfumes
Dum clima tropical,
E sentir, expirando, as harmonias
Do meu berço natal!
Minha campa será entre as mangueiras,
Banhada do luar,
E eu contente dormirei tranquilo
À sombra do meu lar!
As cachoeiras chorarão sentidas
Porque cedo morri,
E eu sonho no sepulcro os meus amores
Na terra onde nasci!
Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!


DESEJO

Se eu soubesse que no mundo
Existia um coração,
Que só’ por mim palpitasse
De amor em terna expansão;
Do peito calara as mágoas,
Bem feliz eu era então!
Se essa mulher fosse linda
Como os anjos lindos são,
Se tivesse quinze anos,
Se fosse rosa em botão,
Se inda brincasse inocente
Descuidosa no gazão;
Se tivesse a tez morena,
Os olhos com expressão,
Negros, negros, que matassem,
Que morressem de paixão,
Impondo sempre tiranos
Um jugo de sedução;
Se as tranças fossem escuras,
Lá castanhas é que não,
E que caíssem formosas
Ao sopro da viração,
Sobre uns ombros torneados,
Em amável confusão;
Se a fronte pura e serena
Brilhasse d’inspiração,
Se o tronco fosse flexível
Como a rama do chorão,
Se tivesse os lábios rubros,
Pé pequeno e linda mão;
Se a voz fosse harmoniosa
Como d’harpa a vibração,
Suave como a da rola
Que geme na solidão,
Apaixonada e sentida
Como do bardo a canção;
E se o peito lhe ondulasse
Em suave ondulação,
Ocultando em brancas vestes
Na mais branda comoção
Tesouros de seios virgens,
Dois pomos de tentação;
E se essa mulher formosa
Que me aparece em visão,
Possuísse uma alma ardente,
Fosse de amor um vulcão;
Por ela tudo daria…
— A vida, o céu, a razão!


MEUS OITO ANOS 

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
– Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
…………………………..
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

[0456] Al Berto, a poesia de um refractário


De seu nome Alberto Raposo Pidwell Tavares, Al Berto nasceu em Coimbra em 1948 e faleceu em Lisboa em 1997. Pintor, animador cultural, editor e poeta, obteve em 1988 o Prémio do PEN Clube Português de Poesia. Refratário militar fugiu para a Bélgica em 1967. Regressou a Portugal em 1974. 


FORAM BREVES E MEDONHAS AS NOITES DE AMOR

foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração


RUMOR DOS FOGOS

hoje à noite avistei sobre a folha de papel
o dragão em celulóide da infância
escuro como o interior polposo das cerejas
antigo como a insónia dos meus trinta e cinco anos...

dantes eu conseguia esconder-me nas paisagens
podia beber a humidade aérea do musgo
derramar sangue nos dedos magoados
foi há muito tempo
quando corria pelas ruas sem saber ler nem escrever
o mundo reduzia-se a um berlinde
e as mãos eram pequenas
desvendavam os nocturnos segredos dos pinhais

não quero mais perceber as palavras nem os corpos
deixou de me pertencer o choro longínquo das pedras
prossigo caminho com estes ossos cor de malva
som a som o vegetal silêncio sílaba a sílaba o abandono
desta obra que fica por construir... o receio
de abrir os olhos e as rosas não estarem onde as sonhei
e teu rosto ter desaparecido no fundo do mar

ficou-me esta mão com sua sombra de terra
sobre o papel branco... como é louca esta mão
tentando aparar a tristeza antiga das lágrimas


CORPO

corpo
que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa

abre a janela debruça-te
deixa que o mar inunde os órgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservado

mas olho para as mãos e leio
o que o vento norte escreveu sobre as dunas

levanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

[0455] António Feijó, diplomata e poeta

António de Castro Feijó nasceu em Ponte de Lima em 1859 e faleceu em Estocolmo em 1917. Diplomata, escritor e poeta, dirigiu a “Revista Científica e Literária”. Exerceu cargos diplomáticos no Brasil, na Dinamarca, Noruega e Suécia.


A CIDADE DO SONHO

Sofres e choras? Vem comigo! Vou mostrar-te
O caminho que leva à Cidade do Sonho...
De tão alta que está, vê-se de toda a parte,
Mas o íngreme trajecto é florido e risonho.

Vai por entre rosais, sinuoso e macio,
Como o caminho chão duma aldeia ao luar,
Todo branco a luzir numa noite de Estio,
Sob o intenso clamor dos ralos a cantar.

Se o teu ânimo sofre amarguras na vida,
Deves empreender essa jornada louca;
O Sonho é para nós a Terra Prometida:
Em beijos o maná chove na nossa boca...

Vistos dessa eminência, o mundo e as suas sombras,
Tingem-se no esplendor dum perpétuo arrebol;
O mais estéril chão tapeta-se de alfombras,
Não há nuvens no céu, nunca se põe o Sol.

Nela mora encantada a Ventura perfeita
Que no mundo jamais nos é dado sentir...
E a um beijo só colhido em seus lábios de Eleita,
A própria Dor começa a cantar e a sorrir!

Que importa o despertar? Esse instante divino
Como recordação indelével persiste;
E neste amargo exílio, através do destino,
Ventura sem pesar só na memória existe...


O LIVRO DA VIDA

Absorto, o Sábio antigo, estranho a tudo, lia...
— Lia o «Livro da Vida» — herança inesperada,
Que ao nascer encontrou, quando os olhos abria
Ao primeiro clarão da primeira alvorada.

Perto dele caminha, em ruidoso tumulto,
Todo o humano tropel num clamor ululando,
Sem que de sobre o Livro erga o seu magro vulto,
Lentamente, e uma a uma, as suas folhas voltando.

Passa o Estio, a cantar; acumulam-se Invernos;
E ele sempre, — inclinada a dorida cabeça,—
A ler e a meditar postulados eternos,
Sem um fanal que o seu espírito esclareça!

Cada página abrange um estádio da Vida,
Cujo eterno segredo e alcance transcendente
Ele tenta arrancar da folha percorrida,
Como de mina obscura a pedra refulgente.

Mas o tempo caminha; os anos vão correndo;
Passam as gerações; tudo é pó, tudo é vão...
E ele sem descansar, sempre o seu Livro lendo!
E sempre a mesma névoa, a mesma escuridão.

Nesse eterno cismar, nada vê, nada escuta:
Nem o tempo a dobrar os seus anos mais belos,
Nem o humano sofrer, que outras almas enluta,
Nem a neve do Inverno a pratear-lhe os cabelos!

Só depois de voltada a folha derradeira,
Já próximo do fim, sobre o livro, alquebrado,
É que o Sábio entreviu, como numa clareira,
A luz que iluminou todo o caminho andado..

Juventude, manhãs de Abril, bocas floridas,
Amor, vozes do Lar, estos do Sentimento,
— Tudo viu num relance em imagens perdidas,
Muito longe, e a carpir, como em nocturno vento.

Mas então, lamentando o seu estéril zelo,
Quando viu, a essa luz que um instante brilhou,
Como o Livro era bom, como era bom relê-lo,
Sobre ele, para sempre, os seus olhos cerrou...


HINO À MORTE

Tenho às vezes sentido o chocar dos teus ossos
E o vento da tua asa os meus lábios roçar;
Mas da tua presença o rasto de destroços
Nunca de susto fez meu coração parar.

Nunca, espanto ou receio, ao meu ânimo trouxe
Esse aspecto de horror com que tudo apavoras,
Nas tuas mãos erguendo a inexorável Fouce
E a ampulheta em que vais pulverizando as horas.

Sei que andas, como sombra, a seguir os meus passos,
Tão próxima de mim que te respiro o alento,
— Prestes como uma noiva a estreitar-me em teus braços,
E a arrastar-me contigo ao teu leito sangrento...

Que importa? Do teu seio a noite que amedronta,
Para mim não é mais que o refluxo da Vida,
Noite da noite, donde esplêndida desponta
A aurora espiritual da Terra Prometida.

A Alma volta à Luz; sai desse hiato de sombra,
Como o insecto da larva. A Morte que me aterra,
Essa que tanta vez o meu ânimo assombra,
Não és tu, com a paz do teu oásis te terra!

Quantas vezes, na angústia, o sofrimento invoca
O teu suave dormir sob a leiva de flores!...
A Morte, que sem dó me tortura e sufoca,
É outra, — essa que em nós cava sulcos de dores.

Morte que, sem piedade, uma a uma arrebata,
Como um tufão que passa, as nossas afeições,
E, deixando-nos sós, lentamente nos mata,
Abrindo-lhes a cova em nossos corações.

Parêntesis de sombra entre o poente e a alvorada,
Morrer é ter vivido, é renascer... O horror
Da Morte, o horror que gera a consciência do Nada,
Quem vive é que lhe sente o aflitivo travor.

Sangue do nosso sangue, almas que estremecemos,
Seres que um grande afecto à nossa vida enlaça,
— Somos nós que a sua morte implacável sofremos,
É em nós, é em nós que a sua morte se passa!

Só então, da tua asa a sombra formidável,
Anjo negro da Morte! aos meus olhos parece
Uma noite sem fim, uma noite insondável,
Noite de soledade em que nunca amanhece...

Só então, sucumbindo à dor que me fulmina,
A mim mesmo pergunto, entre espanto e receio,
Se a tua asa não é dum Anjo de rapina,
Se eu poderei em paz repoisar no teu seio!

Inflexível e cego, o poder do teu ceptro
Só então me desvaira em cruel agonia,
Ao ver com que presteza ele faz um espectro
De alguém, que há pouco ainda, ao pé de nós sorria.

Mas se nessa tortura, exausto o pensamento,
Para ti, face a face, ergo os olhos contrito,
Passa diante de mim, como um deslumbramento
Constelando o teu manto, a visão do Infinito.

E de novo, ao sair dessa angústia demente,
Sinto bem que tu és, para toda a amargura,
A Eutanásia serena em cujo olhar clemente
Arde a chama em que toda a escória se depura.

É pela tua mão, feito um rasgão na treva,
Que a Alma se liberta, e de esplendor vestida
— Borboleta celeste, ébria de Deus, — se eleva
Para a luz imortal, Luz do Amor, Luz da Vida!

[0454] Goulart Nogueira, a voz da extremíssima direita


Florentino Goulart Nogueira nasceu em Belém do Pará (Brasil) em 1924 e faleceu em Lisboa em 2015. Veio para Portugal aos seis anos de idade. Aqui foi jornalista, encenador, crítico de teatro, editor, tradutor e poeta. Independentemente da sua posição de extrema-direita, assumiu a crítica ao salazarismo e mereceu a admiração de intelectuais oposicionistas, como Jorge de Sena


SÓ ATÉ O ALGARVE

Caminhemos com decência,
E não em passo de alarve:
Vamos com V. Exª.
Mas somente até o Algarve…

Há distâncias desmedidas;
Não fomos feitos p`ra elas…
Não estamos para corridas,
A querer caçar estrelas.

Terra-a-terra, e não pivetes
Temos muita previdência.
Deixemo-nos de foguetes:
Caminhemos com decência.

Há p`ra aí boca taurina
E há pernaltas! – Só p`ra mofa… –
Nós temos a boca fina,
A perna curtinha e fofa…

Não somos galgo novato,
Nem um cavalo que escarve.
Nosso passo é moderato
E não o passo do alarve.

Temos os foles cansados;
Pode faltar-nos o ar…
Encargos muito pesados
Não pudemos sustentar.

Florir nas terras maninhas
É contra a nossa potência.
Para vénias… palmadinhas…,
Vamos com V. Exª.

Dar um giro cá na quinta
- Até faz bem à saúde!
E pôr ovos que dão tinta
De um oiro que nos ajude…

Depois saem pintainhos,
Brasis fora desse alarde…
Somos muito jeitosinhos,
Mas somente até o Algarve.


ANIVERSÁRIO DE TIA HILDA

Abençoada minha tia Hilda
Que oitenta e oito anos faz agora!
A minha voz perante si se humilda
E o brilho meu ao pé do seu descora.

Que prodígio, meu Deus, anda, desanda,
Passinho velho e lépido e constante,
Formiga, abelha, fala, mexe, manda,
E sobe e desce e não descansa um instante

E vigia e ouve tudo e é um lufa-lufa;
Corrica, corre, corre, azanga, voa.
E sai e entra e reza e estende e bufa
E aia e geme e arranja e come e é proa.

Ai! terrífica tia! Não perdoa!
Com tais quezílias, é mazinha e é boa.
A minha tia que me dá boroa.

À escola me levava ao colo. E mimos
Me fez quando eu, inda pequeno estava
Órfão de Mãe, e escuso, e sem arrimos,
Fechado em mim, com noite adentro cava.

Rapariga-mulher… Me lembro, lembro.
No lábio superior um buço havia.
E ia à lareira, de Janeiro a D’zembro,
Passar ao lume as pernas à tosquia.

Casou. Dois filhos. O menino, um anjo,
Meu afilhado, lá morreu, o infante.
Ficou a filha que me dá um arranjo,
Que ao colo eu trouxe, terno, radiante.

O tempo corre. Nem por ele damos.
Uns vão, uns vêm. O afecto é o mesmo.
A tia é grande e já botou seus ramos:
Tem quatro netos, por ‘í fora, a esmo.

Guarda e refina o medo que atravanca
Mulher’s da nossa gente onde congregam.
A sete chaves fecha e trincos, tranca;
E o quarto e o chão. Cem mil ladrões não chegam!

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

[0453] Alphonsus de Guimaraens


Pseudónimo de Afonso Henrique da Costa Guimarães, nasceu em Ouro Preto em 1870 e faleceu em Mariana em 1921. Promotor e juiz, jornalista, poeta e tradutor, foi um dos autores de referência do simbolismo neo-romantista brasileiro. Místico, impregnado de religiosidade católica, dirigiu o jornal de Conceição do Serro.


A CATEDRAL

Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a benção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Poe-se a luz a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"


SONETO

Encontrei-te. Era o mês... Que importa o mês? Agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março,
Brilhasse o luar que importa? ou fosse o sol já posto,
No teu olhar todo o meu sonho andava esparso.

Que saudades de amor na aurora do teu rosto!
Que horizonte de fé, no olhar tranquilo e garço!
Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto,
Setembro, outubro, abril, maio, janeiro, ou março.

Encontrei-te. Depois... depois tudo se some
Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira.
Era o dia... Que importa o dia, um simples nome?

Ou sábado sem luz, domingo sem conforto,
Segunda, terça ou quarta, ou quinta ou sexta-feira,
Brilhasse o sol que importa? ou fosse o luar já morto?


HÃO DE CHORAR POR ELA OS CINAMOMOS...

Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão — "Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria.. . "
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: — "Por que não vieram juntos?"

[0452] Afonso Duarte, um saudosiste pré-modernista


De seu nome completo Joaquim Afonso Fernandes Duarte nasceu na Ereira em 1884 e faleceu em Coimbra em 1958. Professor, etnógrafo e poeta, dirigiu a revista “Rajada”.


NOITE DO ROUBO

A quem foram roubar os pobres trapos:
A mim, que sou humilde pobrezinho?
Olhem bem que o valor desses farrapos
Está em ter minha avó fiado o linho.

Ó rocas a fiar, contos de fadas!
Eu tinha-lhes amor e a simpatia
Que vem das saudades de algum dia,
Longe, das velhas noites seroadas.

Bragais de minha casa, e as roupas feitas
Por mãos de minha mãe, muito me assusta
Que os tomassem perversas mãos suspeitas.

Ah! mãos do furto, olhai, trazei-me à justa
Os meus linhos — suor dumas colheitas —
E amor dos meus que a mim muito me custa.


PAISAGEM ÚNICA

Olhas-me tu: e nos teus olhos vejo
Que eu sou apenas quem se vê: assim
Tu tanto me entregaste ao teu desejo
Que é nos teus olhos que eu me vejo a mim.

Em ti, que bem meu corpo se acomoda!
Ah! quanto amor por os teus olhos arde!
Contigo sou? — perco a paisagem toda...
Longe de ti? — sou como um dobre à tarde...

Adeuses aos casais dessas Marias
Em cuja graça o meu olhar flutua,
Tudo o que amei ao teu amor o entrego.

Choupos com ar de velhas Senhorias,
Castelo moiro donde nasce a Lua,
E apenas tu, a tudo o mais sou cego.


VITRAL

Franzina, é como um choupo à luz da Lua;
É a noite escura o seu olhar de mágoa.
Uma ogiva os seus braços quando amua,
Modelo foi dos cantarinhos de água.

Dizem os seios que a farão mãezinha;
Oh! Que linda menina casadoira!
São os seios da virgem donzelinha,
Dois novelos saltando à dobadoira.

Seus lábios, duas pétalas de rosa;
Abrem as rosas como a boca enlaça…
Em beijo a boca é uma flor ciosa.

Num lago a Lua: o seu andar embala;
São suas mãos às que eu imploro a graça,
Seu corpo esguio, uma ânfora com fala.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

[0451] Negrito Manuel, tema de almoço-conversa, em Alenquer, no Bar do Além

Programada para 1 de Dezembro próximo, em Alenquer (no Bar do Além), por volta das 13h30, o almoço-conversa com Nuno Rebocho sobre a “História de Negrito Manuel”: um escravo de origem guineense ladinizado em Ribeira Grande de Santiago no século XVII. Vendido para as plantações no Brasil e depois para Argentina, são-lhe atribuídas virtudes que motivam a sua beatificação pela Igreja Católica - processo em curso proposto pelo Papa Francisco. Episódio completamente desconhecido em Portugal e mal conhecido em Cabo Verde, recorda aspectos fundamentais da História da presença portuguesa no mundo e proporciona um interessante cavaqueio. (À entrada de Porto da Luz, Alenquer na N 9, ao Km 94, sentido Alenquer /Torres Vedras)

Menu: feijoada à transmontana

[0450]


[0449] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (8) Nuno Rebocho, o manobrador de palavras


O autor sempre procurou o outro lado das coisas, perscrutando-as até ao âmago da sua complexidade. Cada coisa vale pelo seu significado e pelo que com ela transporta, vale pelo seu nexo e pelo seu sexo, pelos cheiros que alimenta e recorda. Ou seja, cada coisa – porque não está só – está em “diálogo” com cada coisa. E Estando só, está em “diálogo” consigo mesma: a vida é diálogo. Esta é uma constante da poesia de Nuno Rebocho.    


O ONANISTA

andamos ao derredor das palavras
ansiosos
de um fonema que deslumbrando-nos
nos descubra

as palavras-sílica
física
de seios breves como os teus
de ancas arrojadas como as tuas
de púbis violento
palavra-amor
palavra-dura
palavra-dor

palavras com pele braços esgotos
artérias do imaginário que condenso
espaços rotos aos quais pertenço
enrodilho-me nelas no desassossego
de fazer amor contigo
orgasmos do não dito
saliva do infinito a percorrer
o sexo o cérebro o bolo raquidiano
os pulmões
palavras acontecimentos como andorinhas do mar
trevos da pérsia estrelícias miosótis

palavras homens
palavras feridas
rádio telefone televisão
telegrama computador satélite
ondas hertzianas feixes
sinais
infinitamente pequeno sou condutor de tudo isto
pulso quase a estoirar como uma supernova

palavras-sonhos
palavras-desejos
margens do possível
palavras-jato
onde exercito
noites da tua boca
áureas do teu peito

palavras-tantas
irrequietas
fluidas
idas
palavras-montras
carruagens
viagens
palavras-movimento
lento
rápido
palavras-árvores
sais ácidos

sintagmas
hemogramas

no sentimento do tempo
cinzelado na carne
palavra-facto
ato
arde

[0448] Políbio Gomes dos Santos, uma breve cintilação


Políbio Gomes dos Santos nasceu em Ansião em 1911 e faleceu igualmente em Ansião em 1939. Poeta, internado num sanatório da Guarda devido à tuberculose que o afectou, integrou o grupo do Novo Cancioneiro que marcou o neo-realismo português


POEMA DA VOZ QUE ESCUTA

Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro - a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.


TESTAMENTO ABERTO

Só para ver curar minhas pernas partidas
Nas dores eternas
Dos saltos gorados,
Eu amo a aparente inconsciência dos loucos,
Embora fique aos poucos nos meus saltos
Desabridos e falhados.

Apraz-me, no espelho, esta face esmagada,
À força de querer transpor o além
Da minha porta fechada...

Porém,
Seja o que for, que seja,
Se uma CERTEZA alcanço
E uma mulher me beija.

Que importa
Que eu fique molemente olhando a minha porta
Aberta,
Ou que eu parta e a morte me espreite
Num desfiladeiro?...
E quem virá chorar e quem virá,
Se a morte que vier for a de lá
Certeira e minha...
E merecida como um sono que se dorme
Após a noite perdida?...

E que piedade anda a escrever um frágil,
Na embalagem dos ossos
Que trago emprestados...
Que deixarei ficar ao sol e à chuva
E que serão limados
No entulho dos calhaus que também foram rocha?...

Para quê, se mil vezes provoco
Os tombos do chegar e do partir?!
- A minha fragilidade
Foi-me dada
Para me servir.


EPITÁFIO 

 Menino, bem menino, fiz o meu balão
Papel de seda às cores...
- Tantas eram!
Ai, nunca mais as vi, nos olhos se perderam.
Quando a tarde morria o meu balão subiu
E tão direito ia, tão veloz correu
Que eu disse: "Vai tombar a Lua
E talvez queime o céu."

Anoiteceu.
E no horizonte o meu balão era uma rosa
Vermelha, não minha, aflitiva,
Murchando,
Poisando na água pantanosa
De além.

Ninguém o viu.

Ninguém colheu a angústia dum balão ardendo.
Somente a água verde rebrilhou acesa,
Clamorosa e podre,
Como nos incêndios de Veneza
E rãs, acreditando o mal mortal e seu
Foram fugindo, pela noite fria,
Do balão que ardeu.

Ó tu, quem sejas, o balão fui eu!

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

[0447] Augusto dos Anjos, um pré-modernista brasileiro


Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu em 1884 em Sapé (Paraíba) e faleceu em 1914 em Leopoldina (Minas Gerais). Professor e poeta, fez da ironia uma arma crítica à sociedade do seu tempo.


PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!


MÁGOAS

Quando nasci, num mês de tantas flores,
Todas murcharam, tristes, langorosas,
Tristes fanaram redolentes rosas,
Morreram todas, todas sem olores.
Mais tarde da existência nos verdores
Da infância nunca tive as venturosas
Alegrias que passam bonançosas,
Oh! Minha infância nunca teve flores!
Volvendo à quadra azul da mocidade,
Minh’alma levo aflita à Eternidade,
Quando a morte matar meus dissabores.


Cansado de chorar pelas estradas,
Exausto de pisar mágoas pisadas,
Hoje eu carrego a cruz das minhas dores!


VENCEDOR

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração – estranho carniceiro!
Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem…
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

[0446] João José Cochofel, a ascensão do neo-realismo


João José de Mello Cochofel Aires de Campos nasceu em Coimbra em 1919 e em Coimbra faleceu em 1982. Ensaísta, crítico literário e poeta, foi um dos animadores do chamado “Grupo de Coibra” e do “Novo Cancioneiro” e director da “Gazeta Musical e de Todas as Artes”.


POSSE

Lá fora
o sol passava as fronteiras
de horizontes longuínquos,
e dentro do quarto tombava
uma luz vaga…
Deitado
o teu lindo corpo espraiava-se
brando,
num abandono morno
que a luz sem arestas afagava.
Tudo em ti era uma espera
dos teus seios suaves de menina
e do teu sexo em flor.
Minhas mãos escorregaram lentas…
Tu lentamente cedias
e os olhos eram poços fundos e escuros
na noite que descia.


RESGATE

Meus pés moídos na calçada,
minhas tardes envenenadas de álcoois nos cafés,
e o vazio por dentro
a encher o tédio das horas sem nome.

Tudo isto
- moeda triste
que nem chega a pagar o sol da tardinha
e a poeira de feno que pontilhou de oiro
teu corpo entre trigais.


UMA VIDA PEQUENA

Uma vida pequena
para que é que serviu?
Rasto de poeira
em tarde de estio.

Que sonhos, que pragas,
que fogos em vão
calcados de terra
reacenderão?

Chora a infância, chora.
Não a que tiveste.
Mas a que na troca
do tempo apetece.

domingo, 25 de novembro de 2018

[0445] MÚSICA PARA O DOMINGO (10). Hoje, Paulo Diniz em "José" - poema de Carlos Drummond de Andrade



JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

[0444] Fernanda de Castro, o situacionismo

Maria Fernanda Telles de Castro de Quadros Ferro nasceu em Lisboa em 1900 e em Lisboa faleceu em 1994. Tradutora, escritora e poeta, foi especialmente distinguida no período salazarista por ser casada com António Ferro que dirigiu o seu Secretariado Nacional de Propaganda. Ganhou o Prémio Nacional de Poesia de 1969.


MEDITAÇÃO

Às vezes, quando a noite vem caindo,
Tranquilamente, sossegadamente,
Encosto-me à janela e vou seguindo
A curva melancólica do Poente.

Não quero a luz acesa. Na penumbra,
Pensa-se mais e pensa-se melhor.
A luz magoa os olhos e deslumbra,
E eu quero ver em mim, ó meu amor!

Para fazer exame de consciência
Quero silêncio, paz, recolhimento
Pois só assim, durante a tua ausência,
Consigo libertar o pensamento.

Procuro então aniquilar em mim,
A nefasta influência que domina
Os meus nervos cansados; mas por fim,
Reconheço que amar-te é minha sina.

Longe de ti atrevo-me a pensar
Nesse estranho rigor que me acorrenta:
E tenho a sensação do alto mar,
Numa noite selvagem de tormenta.

Tens no olhar magias de profeta
Que sabe ler no céu, no mar, nas brasas...
Adivinhas... Serei a borboleta
Que vendo a luz deixa queimar as asas.

No entanto — vê lá tu!— Eu não lamento
Esta vontade que se impõe à minha...
Nem me revolto... cedo ao encantamento...
— Escrava que não soube ser Rainha!


DISTÂNCIA

Não vás para tão longe!
Vem sentar-te
Aqui na chaise-longue, ao pé de mim...
Tenho o desejo doido de contar-te
Estas saudades que não tinham fim.

Não vás para tão longe;
Quero ver
Se ainda sabes olhar-me como d'antes,
E se nas tuas mãos acariciantes,
Inda existe o perfume de que eu gosto.

Não vás para tão longe!
Tenho medo
Do silêncio pesado d'esta sala...
Como soluça o vento no arvoredo!
E a tua voz, amor, como se cala!

Não vás para tão longe!
Antigamente,
Era sempre demais o curto espaço
Que havia entre nós dois...
Agora, um embaraço,
Hesitas e depois,
Com um gesto de tédio e de cansaço,
Achas inconveniente
O meu abraço.

Não vás para tão longe!
Fica. Inda é tão cedo!
O vento continua a fustigar
Os ramos sofredores do arvoredo,
E eu ponho-me a pensar
E tenho medo!

Não vás para tão longe!
Na sombra impenetrada,
Como se agita e se debate o vento!...
Paira nas velhas ruínas do convento

Que além se avista,
A alma melancólica d'um monge
Que a vida arremessou àquela crista...

Céu apagado, negro, pessimista,
E tu sempre mais longe!...


URGENTE 

Urgente é construir serenamente
seja o que for, choupana ou catedral,
é trabalhar a peda, o barro, a cal,
é regressar às fontes, à nascente.

É não deixar perder-se uma semente,
é arrancar as urtigas do quintal,
é fazer duma rosa o roseiral,
sem perder tempo. Agora. Já. É urgente.

Urgente é respeitar o Amigo, o Irmão,
é perdoar, se alguém pede perdão,
é repartir o trigo do celeiro.

Urgente é respirar com alegria,
ouvir cantar a rola, a cotovia,
e plantar no pinhal mais um pinheiro.

[0443] Aurelio Aguirre, o romantismo regionalista galego


Nasceu em Santiago de Compostela em 1833 e faleceu em La Coruña em 1858. Morreu muito jovem, vítima de afogamento na praia. Combateu pelos republicanos no levantamento de 1854.


A LOS OJOS DE UNA HERMOSA

Bella es la luz de la argentada luna
 cuando en noche serena y silenciosa,
pura, dulce y suave cual ninguna
atraviesa el espacio presurosa.

Es bella la rosada y fresca tinta
con que apacible la risueña aurora,
las mustias yerbas y las flores pinta,
los altos montes y los valles dora.

Bellos del sol también son los destellos
que al Universo pródigo regala,
la rosa y el clavel también son bellos
si al mundo enseñan matutina gala.

Pero existe otra luz más pura y bella
que el fuego y brillantez del sol minora; a
nte ella pierde su fulgor la estrella,
ante ella es triste la naciente aurora.

Mas, ¿dónde está esa luz?, ¿dónde?..., ¿qué es de ella?
 ¿Do brilla con su faz deslumbradora?:
Solo en tus ojos, Marcelina hermosa,
se concentra esa luz tan poderosa


EPIGRAMA

Le preguntó a una casada
un astuto tejedor:
¿cómo estás desfigurada,
y es pálido tu color?

Con acento dolorido,
ella contestó: -señor,
desde que tengo marido,
nunca lo tuve mejor.

sábado, 24 de novembro de 2018

[0442] Orlando Neves, o poeta multifacetado


Orlando Loureiro Neves nasceu em Portalegre em 1935 e faleceu na Senhora da Hora em 2005. Documentalista, jornalista, dramaturgo, encenador, tradutor, escritor e poeta, fundou em 1975 a Cooperativa Editorial Diabril 


A ÁREA

Tudo o que houve, permanece, proeza do corpo
como um sulco bárbaro da memória dos dias,
ritos, remorsos, sementes futuras, a mudez.
Tudo aconteceu nas lágrimas e nas veias,

na precisão das luzes, no lugar móvel da ordem,
no gelo e no lume que entre as coisas navegam,
na palavra deflagrada, na paz das páginas.
Para onde vai o que não se move, o que é

dogma de cal, madeira, pedra ou ferro?
Como chamar à alma, à linguagem, às cores
que de amor pela morte morrem caladas,

na área eterna da casa, a que permanece
na velhice dos anos e dos ossos consumada,
como uma gota do tempo para além dos séculos?


O MEDO

Que não se confunde. Por existir se ganha
e nos pertence. Sílabas ou linguagem,
busca o centro nas mãos, nos olhos, o contacto
incessante. Percorre os muros da memória,

na penumbra da palavra se instala. Nada
partilha. Como um monólogo se mascara
de gemas, rumores e gotas de ervas. Flui
e estilhaça as pálpebras, domina as casas,

abala os sismos. Ara o corpo, viva árvore
em ascensão, ronda a pele e os jorros do ar.
Até que nos toma e molda o ventre, descobre

o preço diário da invisível folhagem
solar. É o que se oculta. Livor, sílaba,
margem eterna da inicial prudência.


TODAS AS NOITES ME SINTO

Todas as noites me sinto
igual aos desconhecidos.
Sou a criança que sou,
só quando o tempo pára.

Fico em mim,
fora dos músculos.

Por que se movem os deuses
quando o sol cresta as formigas?
Lendas da luz da noite
secam todo o movimento.

Seguro a vida
por desespero.

[0441] Rodrigo Emílio, "nacionalista irrecuperável"...


De seu nome Rodrígo Emílio de Alarcão Ribeiro de Melo nasceu em Lisboa em 1944 e em Lisboa faleceu em 2004. Jornalista e poeta, nacionalista identificado com o Estado Novo, foi considerado, em Abril de 1974, “irrecuperável para a democracia”, saneado da televisão portuguesa, exilando-se para Espanha e depois para o Canadá e Brasil. Regressou a Portugal em 1980


POR PORTUGAL – E MAIS NADA

Arraial, Arraial (de porrada)
Por Portugal - e mais nada.
Arraial, Arraial (de porrada)
Por Portugal - e mais nada.

Quem do alto
de tanta sela e montada,
tanta vez, em sobressalto,
pôs Castela em debandada …
- … Pode lá ver, pela frente
pode lá ter, por diante
apenas gente aparente
… Gente de sangue rafeiro
(sem que se exalte e se zangue
o seu Rompante Guerreiro).

Arraial, Arraial (de porrada)
Por Portugal - e mais nada.
Arraial, Arraial (de porrada)
Por Portugal - e mais nada.

Na imagem de vitral
do 'spiritual cavaleiro -
medalhão medieval,
aos pés do qual me consterno …
- Está ou não
Portugal de Portugal? …
Está ou não
Portugal, inteiro, e Eterno?! …

Arraial, Arraial (de porrada)
Por Portugal - e mais nada.
Arraial, Arraial (de porrada)
Por Portugal - e mais nada.

Do alto, lá do seu posto,
atenda Ele, ao recado
que me foi lançado em rosto,
derramando o Seu desgosto
sobre a data já remota,
- Dia 14 d’ Agosto:
quadrado d' Aljubarrota!

Arraial, Arraial (de porrada)
Por Portugal - e mais nada.
Arraial, Arraial (de porrada)
Por Portugal - e mais nada.

E ali, a mim me reúno
à sombra de uma Bandeira
Que me quis sagrar aluno
de D. Nuno Álvares Pereira
Que do Alto
de tanta sela e montada
pôs Castela em debandada.

Arraial, Arraial (de porrada)
Por Portugal - e mais nada.
Arraial, Arraial (de porrada)
Por Portugal - e mais nada.

Saia, de novo, a terreiro
- d' atalaia e a dar ajuda -
todo o povo. O povo inteiro outra vez
contra o estrangeiro
nos acuda:
Ponha a andar d' aqui o Andeiro
a tal arraia-miúda!

Arraial, Arraial
(de porrada )
Por Portugal
- E mais nada.


POEMA ANTI-YANKEE À BOLSA DE NOVA IORQUE, WITHOUT LOVE.

Ó idolatras dos dólares,
energúmenos dos números:

-Guardai as vossas esmolas
para a Europa dos chulos...

E ficai-vos com os trocos;
ou cambiai-os em rublos!...


LÁPIDE

Não vos escondo
que quando vim
a capital do meu sonho
era Berlim.

Só que Berlim
Já 'stava a arder
e eu, por mim,
não Lhe pude valer.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

[0440]

[0439] Morgado Mbalate, a nova geração da poesia moçambicana


Morgado Henrique Mbalate nasceu em Maputo em 1993. Filósofo, escritor e poeta, foi Prémio Fernanda de Castro de 2017.


MINHA TERRA, MINHAS GENTES

Nasci no aconchego do azul das águas do Índico.
Sou da espécie do azul e do branco das estrelas e do céu do lugar onde nasci.
A pele da minha terra tem o cheiro do mar.
A pele das minhas gentes, o perfume de Deus.
Com letras de sangue
escrevo os sonhos das gentes do meu país.
Minha escrita grávida de sol.
Enche de beleza e poesia o coração de Moçambique.
Quando escrevo, traduzo os desígnios de Deus guardados no ventre da minha terra.


AFRICANIZANDO

Quando o meu sonho me ilumina eu escrevo África.
África me faz e me rodeia. Eu amo essa gente cheia de África.
O chão da África tem cheiro de mim.
Na África, todos os caminhos nos levam às fontes da terra e às origens do mundo.
E o que me torna africano?
É o amor pela terra e pela cultura. A terra me ilumina.
A cultura me encanta.
Minha alma é atravessada por imensos rios, como rio Nilo, que nasce no meu corpo.
Em mim, há quedas de águas, sobre mim, caminham cursos de rios.
A maioria dos rios da África nasce no planalto dos olhos.
Por isso, eu caminho de mãos dadas com a flora e a fauna.
Sou savana africana de mim mesmo.
A poesia africana é para se vestir dela e correr poemas pelo mundo.
E eu escrevo para justificar a poesia africana.
Não acredito na riqueza material fácil e rápida para todos os africanos.
Mas acredito no ideal de riqueza espiritual através da promoção da cultura.
Eu hoje escrevo o coração da África.
Nunca me separo da África porque a trago dentro de mim.
África é dentro de mim.


O MENINO QUE NASCEU GRANDE

Uma ave veste o meu ser
Minha arte maior é o meu jeito de ser.
Meu jeito de ser garça entre o pôr do sol e a lua.
Meu corpo é a metade do sol.
Eu caminho com todos os tempos e todas as eras.
Sou todas as pessoas do mundo de todas as raças.
Meu poema é uma morada que construo para Deus.
E o lugar onde construo minha felicidade.
Quero a palavra sagrada grávida de Deus.
África é o chão sagrado onde escrevo os meus sonhos.

[0438] Edmundo Bettencourt, o libertário


Edmundo de Bettencout nasceu no Funchal em 1889 e faleceu em Lisboa em 1973. Poeta e cantor, funcionário público, delegado de propaganda médica, celebrizou-se cantando o fado de Coimbra. Integrou o grupo fundador da “Presença”, de que se dissociou em 1930, quase que se antecipando ao que foi o surrealismo  (embora dele se aproximando, colaborando na revista “Pirâmide”)


AR LIVRE

Enquanto os elefantes pela floresta galopavam
no fumo do seu peso,
perto, lá andava ela nua a cavalgar o antílope,
com uma asa direita outra caída.
E a amazona seguia...
e deixava a boca no sumo das laranjas.
Os olhos verdes no mar.
O corpo em a nuvem das alturas
- a guardadora
da sempre nova faísca incendiária!


APARIÇÃO

A mulher que por mim passou na rua, há pouco,
foi uma coisa diáfana, gentil,
cedo, a pairar
na sombra dum jardim
com flores, em baixo, ajoelhadas,
ao senti-la na altura,
e mandando-lhe o aroma em lágrimas, desfeito,
para mantê-la em uma nuvem branca...

Mulher, coisa diáfana, vaga e bela, sem desenho,
logo fluido animando o colo duma nuvem, nuvem,
num ápice, trucidada pelo vento!


O SEGREDO E O MISTÉRIO

Mistérios a pouco e pouco vão morrendo
e extenuados de vigília os anjos
são afinal a sussurrantes sibilinas vozes
que desvendam adivinham segredos
atrás de sentinelas
cuja ferocidade é uma ironia de ternura…
Na palidez da luz
cercando uma velha cabeça
a quem um sono de embrião já tolda os olhos
sorriem enigmáticos os sonhos.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

[0437] Luís Filipe Maçarico, o cântico alentejano


Luís Filipe Maçarico nasceu em Évora em 1952. Antropólogo, escritor, ensaísta e poeta, é um especialista na presença muçulmana em Portugal. Foi dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Câmara Municipal de Lisboa, um dos fundadores do Círculo Cultural e Artístico Artur Bual e da Associação A Aldraba  (a cuja direcção presidiu).


REQUIEM POR UM CHOUPO

Era uma cidade com aromas de viagem,
Aquela onde um dia fui criança,
Esta noite estrangularam outra árvore habituada
A ver-me passar, e ninguém se importou com o assunto.
E eu que varri muitas folhas derramadas dessa farta
cabeleira num Outono já distante estremeci
com o ruído seco do velho choupo a morrer.
Aconselharam-me a ficar calado: Não há tempo para escutar
canções de melros entre ramagens.
Mas sou teimoso! Ridículo é aceitar que o alcatrão
vença e os anestesiados se dirijam cada vez mais velozes
para a sua verdade infeliz!
Então peguei no meu caderno de emoções
e escrevi com uma lágrima de raiva:
Quando a cidade não ama
As suas árvores, que medalha
deverá um Poeta pôr no peito
dos que a governam?


ALENTEJO

Alentejo terra de vento e silêncio
onde o Homem semeia a Palavra
Alentejo terra de sonho e sofrimento
onde o poema tem sede de flores
e rios. Como quem faz um pão,
escrevo à sombra das tuas oliveiras.


E canto o voo altivo das cegonhas.
Esta leveza de viver em ruas brancas...


NO CRIPTO-PÓRTICO DE MÉRTOLA

I
Quantos ditosos
trazendo flor de oliva
em seus cabelos
provaram do teu pão,
ó prodigioso celeiro?

II
Quantas bocas sarracenas
se dessendentaram
em tua água silvestre,
ó rumorosa cisterna?

III
Quanta fatal decisão
em nome da Santa Cruz
no teu ventre vazou
proscritos,
ó sombria prisão?

[0436] Eduardo Pondal, o bardo de Bergantiño


Eduardo María González-Pondal y Abente nasceu em Ponteceso em 1835 e faleceu em La Coruña em 1917. Médico e poeta, do seu livro “Queixume dos Pinos” – fundamental para a cultura galega – foram retiradas as primeiras estrofes do hino da Galiza. Nos seus tempos de estudante em Santiago de Compostela integrou a tertúlia do Liceu de San Agustin”, incubadora do “Resurgimento Galego”. Influenciado pelo britânico “ossianismo”, Pondal fez-se o poeta da liberdade e extrénuo apologista do nacionalismo, invocando um mítico pasado céltico. Retiramos do seu livro “Queixume dos Pinos” três dos seus poemas de referência.

4
Muitas veces nos matos nativos,
No crepúsculo fusco e calado,
S' escuita das aves,
O rápido paso;
Das aves aquelas,
Do pico tamaño,
Que sóon retirarse
Dos rudos traballos,
D' escollos e prayas
Do fero Oceáno;
E van en ringleira,
 Gritando e voando;
En demanda das illas Sisárgas,
Seu noto reparo.
Ah! quen fora com' elas tan libre!
Cautivo do barro,
Con fonda tristura,
Dixérase o bardo,
Que soña antr' as uces,
Co tempo pasado,
Que fora tan libre,
Fugindo do trato,
Falaz, inseguro,
Dos nécios humanos!
Quen poidera vivir coma elas,
Nas prayas e bancos,
 Nos baixos e furnas,
Nas sirtes e fachos,
Nos seos esquivos
Dos feros peñascos

13
Meniña, rapaza nova,
Ou rosa de Corcoésto;
Que te brandéas con grácia,
Os doces sopros do vento:
S' hé certo que por tí vivo
S' hé certo que por tí peno;
Se tan doce é dadivosa,
Como dín que és, hé certo;
Cúrame, ou rapariga,
Estas suidades que teño:
Estas suidades da alma,
De non sei qué, que padezo;
Ti tés dos meus males a doce manciña,
Ou rosa de Corcoésto

19
Paroleira anduriña,
Sobr' o balcon pousada,
Singela vïageira,
Chea de doce gracia;
Do rei Teréo esposa,
Triste d'antiga mágoa:
Suspende, oh vaga Prógne,
Tua quéixosa charla;
Non cantes mais, o pico
Cobixa baixo d' ala;
E do teu longo canto,
Un pouquiño descansa.
Non turbes da formosa,
A sosegada cámara,
Ca tua canzon, q' acaso,
Fala d' ardente Africa:
Oh! permite que durma,
Do amor fatigada,
Baixo dos ledos prégues,
Do pabellón de grana:
 Non despértel' os ecos
Que repousan en calma,
—Pol-a espléndida e rica teitume,
Antre das follas anchas.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

[0435] "O que nos abala", um novo site a consultar

Foi lançado no passado dia 28 de Setembro em Sorocaba, S. Paulo, Brasil, o site “O que nos abala” (www.oquenosabala.com ___ Ver AQUI), produzido pelo poeta Ademir de Barros (Edu Mulato) com mistura de Leandro Toledo. 

[0434] Mais um número da revista de poesia "Piolho"

Com colaboração de Sílvia C. Silva, Lígia Casinhas, Pedro Águas, Luís Oliveira, Teixeira Moita, António S. Oliveira, Fernando Guerreiro, Humberto Rocha, Amadeu Baptista, João Meirinhos, José Duarte, Alexandra Couts, Sofia Sampaio, Fátima Vale, Noel Petinga Leopoldo, Lopes da Silva, Francisco Serra Lopes, Jorge von Humberto, Nuno Rebocho, Pedro Silva Sena, Rui Ribeiro, Delfim Lopes, Rui Tinoco, Rui Esteves, Fernando Esteves Pinto, Eduardo Quina, José Pascoal, Jorge Velhote, Vitor Cerdeira, José Pedro Leite, Raul Simões Pinto, Izidro Alves, A. Dasila.O, Virgílio Liquito, Luís Ferreira, Miguel Sá-Marques, Edwin George Morgan e ilustrações de Fernando Aguiar saiu mais um número duplo da revista de poesia “Piolho”, referente a Outubro, editado pelo poeta António S. Oliveira e Edições Mortas (www.edicoes-mortas.com). 

[0433] José Branquinho da Fonseca, poeta presencista


António José Branquinho da Fonseca, que também usou o pseudónimo de António Madeira, nasceu em Mortágua em 1905 e faleceu em Cascais em 1974. Escritor e poeta presencista, foi um dos fundadores das revistas “Tríptico”, “Presença” (de que foi director) e “Sinal”


LAGO

Com duas tábuas fiz
o barco onde navego
e onde sou tão feliz
que nunca chego...
Vou sonhando e cantando,
tão alto, que não sei se o mar e o céu vão bons
ou se vão mal...
Só quero ir sempre andando
e reparando
nas diferenças
da paisagem sempre igual...


SONHO DA ROSA

Se me recordas entristeço e faço
porque o teu vulto sensual me esqueça
e o teu olhar, a tua boca, e essa
graça de graça que tu pões no passo.
Sonho-fumo esgarçando-se no espaço-
nas mãos em concha amparo-te a cabeça,
e sem que a minha boca desfaleça
beijo-te a boca e cinge-te o meu braço.
Já, no jardim deserto da tristeza,
vens aos meus olhos como a luz acesa
que uma penumbra dolorida apaga...
Vai-se extinguindo o meu desejo... Olha:
tu foste a rosa que ao abrir se esfolha,
nuvem perdida que no céu divaga...


NAUFRÁGIO

A rua cheia de lua
Lembrava uma noiva morta
Deitada no chão, à porta
De quem a não soube amar.

Já não passava ninguém…
Era um mundo abandonado…
E à janela, eu, tão Além
Subia ressuscitado…

Vi-me o corpo morto, em cruz
Debruçado lá no Fundo…
E a alma como uma luz
Dispersa em volta do mundo…

Mas à tona do mar morto
Um resto de caravela
Subia… E chegava ao porto
Com a aragem da janela.

[0432 João Travanca-Rego, uma voz marginal

João Orlando Travanca-Rego nasceu em Vila Boim em 1940 e faleceu em Elvas em 2003.

Poeta, codirigiu a revista da Associação Sol XXI.



SIDERAÇÃO

Há uma aguda faca de cansaço
contra o meu lado esquerdo, coração e cérebro:
“Serão as pegadas de mais tempo?
“Será o universo tresmalhado?
(Será um assassinato a quem se ama).

Regresso a uma casa e arde o tempo:
Aqui habito. Aqui transpiro. Aqui desapareço.
- E é de voltas a sítios num espaço
que os astros uns aos outros se consultam.

Na Terra nasço, e na terra eu durmo
Na Terra ocupo o espaço e a fala canta
- Despi os Astros
e reúno dúvidas...

A vida é como eu digo – acaba cedo;
E o sentido de sê-lo nem um credo,
extraído às raízes da Ciência,
vem revelar às portas da razão
um anjo transportado sobre os séculos...


UM LUGAR: TRÊS MOMENTOS

Aqui eu estive. A vida irrepetível…
Mesmo que eu volte, o tempo será outro!
- Não tenho abraço para unir dois ventos
para além da memória em que os retive


RAZÃO SAGRADA

“Terão de ter sido,
uma razão mais nítida
aqueles que –
cumprindo o humano ciclo –
não tenham bebido (horror da História)
as facas de seu Gólgota?”

São perguntas que faço e que me guardo
para quando as palavras sufocarem:
- Sei por memória, quantas vezes
nenhuma razão achei para teatro
de vazias personagens que podemos ser
brandindo o g(l)á(u)dio de buscar razões:
Nem o Abstracto do mundo, nem, de um homem,
o seu concreto animado coração
emite(m) resposta que satisfaça, esfacelando-os
com a lança da água de um poema quando
a razão-humana foi sa(n)grando absurda

terça-feira, 20 de novembro de 2018

[0431] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (7) Nuno Rebocho, dedicatórias familiares


A RAPARIGA DO SHOPPING

                                        À minha filha Susana

No grande espaço das coisas arrumadas para todos
se arrumarem dentro
recusam-se margarinas no expositor dos açúcares:
cada peça catalogada com ficha de entrada,
o registo do movimento e câmaras de vídeo
que vigiam quem lá vai e o que faz,
cada acto, cada gesto vigiado, o pacote liofilizado,
o pescado higienizado. Cada coisa seu peso e sua medida.
E tudo exposto:
da diskette às azeitonas,
verdes, a louça, a roupa,
sapatos para pés chatos,
livros a granel, pensos higiénicos,
plantas, artigos de pesca, lâminas de barbear
    no balcão das informações: loucura tem? só em pacotes.
No congelador, ao lado da ternura e com selo de garantia,
de marcas diferentes e em tamanhos diversos
(meia dose, individual e familiar). Mas recomendado:
utilize com moderação – o governo
informa que a loucura prejudica a saúde.

na prateleira do destino recolhem-se pernas de deslembrar
caminhos do destino que alguém toca
para confirmar consistências entre frutas
de dimensão normalizada e verdes de legumes
antípodas. Qual a mão que afere
o rigor? Não fumar, não mexer,
a registadora tem olhos de multidão
se passam os carrinhos sobre rodas.

CAIXA UM    até sete compras,
coisas de ocasião pagas a crédito,
com cartão de regular a bolsa ou o mês?
a vida então.

CAIXA DOIS    a fila imensa,
cansados os pés entre o azeite e a conversa
o linguado, o bife e os pacotes de café,
as latas de cerveja para patuscadas de marés
(está quieta inês)     alerta o guarda
esqueceu alguma coisa? e consulta a lista
- a registadora nada esquece
e o código de barras molda o lucro da casa,
a medida do mês de cada um, a regra do salário,
o ritmo da vida, a cauda das esperanças,
o rol da lembrança, o mar dos desejos,
o tempo das promessas, o ter mais barriga que bolsos,
de ter mais bolsos  que tempo,
de ter mais tempo que medida
(está quieta inês        inês desanda inês grita
inês é criança no meio das coisas,
no meio das prateleiras das coisas,
no meio das regras das coisas
nomeio das coisas das coisas
- inês desanda, desanda)

Está escrito: proibido o acesso a pessoas estranhas ao serviço. O outro lado é o outro lado, o do infinito, onde nada se acaba, onde tudo se esgota: onde o segredo repleta o que se esvazia: onde está o serviço: onde a nascente descobre o rio que sempre corre: onde p sémen reviaja ao recomeço: onde o alcatruz se desnuda para o horizontal: onde a boca tem mais barriga que olhos: onde o saco roto nunca esmorece: onde o depósito aguarda reproduzir-se: onde o fim sempre se renova: onde depois do fim vem outro fim. Sempre a pensar em si.

A ambiguidade é exterior aos bíceps como os ratos:
    aqui se vendem livros
(poemas feitos no espaço do não fazer: ah, deyesto a ambiguidade,
a realidade reescreve-se com os objectos,
a paprika dos sons, o cravinho da cor, o caril das vozes,
a moscada dos gestos, o tomilho das dores,
a pimenta das alegrias, o pimentão das sombras,
o cominho dos sons, o sal da cor, os orégãos das vozes,
o colorau dos gestos, o alho as dores, o cebolinho das alegrias,
o piripiri das sombras.
(A realidade reescreve-se com a realidade,
com os fragmentos da realidade
que são as letras, as vírgulas, os pontos, os sinais.
A ambiguidade está fora,
está no lado interdito às pessoas estranhas
ao serviço. Ficamos do lado de sora da realidade
com a morte na alma,
com a morte que não cabe na algibeira.
Eu sei – a realidade é ambígua,
não cabe na algibeira, nem na morte nem na alma.
Eu sei – a ambiguidade é real,
não cabe na alma, nem na algibeira bem na morte).

Eis senão quando a cachopa de minissaia calçou os patins e veio ao encontro: estamos em promoção – damos desconto, três embalagens pelo preço de uma. Loucura reciclável, vegetal, sem químicas, ecologicamente puré. Com prazo de validade e certificado de garantia. Se não gostar, devolve. Pelo preço de uma leva três.

No complemento da minissaia as pernas eram morenas.
À saída sorteavam dez automóveis.
No grande espaço das coisas arrumadas todos se arrumavam dentro.

(de “A arte de matar”)


CHORO DE DAVID POR SEU FILHO ABSALÃO

                                        Para meu filho Ernesto

Logo que ouvirdes o som das trombetas sabereis: absalão
já não mora aqui. Ergueu pendão na montanha
e é rei da sua tribo. Absalão ergueu a mão a sal pai
e na quentura do sangue cumpriu a lai da manada
- que o macho jovem derrube
o velho, que o novo se sobreponha.
Assim fizeram a lei. Cumpra-se. E que o rei velho se defenda,
a si e ao palácio, e defenda o seu exército
quando a trombeta soar. E trema porque
chegou a hora de o seu filho
lhe arrebatar coros e vida.
“Meu filho Absalão”, o rei chora.

Logo que ouvirdes a trombeta perguntareis: de que cidade
és  tu? E tu serás a cidade da revolta.
E subirás à montanha para brandir contra teu pai
o  mando da novidade. E o rei há de chorar o luto
dos elos que se perdem. E tu dirás:
“velho, a tribo te recusa. Tremem-te as mãos.“
A corte dos jovens insensata-te. A nova tribo está pronta
para o combate. Sabemos as armas e sabemos
o sangue e sabemos as feridas,
mesmo que não conheças as lágrimas
que são salitre no interior
das armaduras ou o fel que as oleiam.

Logo que ouvirdes a trombeta direis: “ está triste o rei”.
A ronha da velhice defende-o mais 
que o manto da dignidade. Tremem-lhe as mãos
quando a batalha se estende no território,
pois que ama os que deiam e odeia
os que o amam. “Absalão, meu filho:
as rupturas são legítimas, Dei-te o gibão e o gládio,
dei-te o pão e o ressentimento.
Traí-me porque cresceste e, crescendo,
tiveste fome do teu momento.
Absalão, meu filho Absalão,
dei-te o gibão e o gládio”. O combate é preciso

para que a tribo saiba da destreza.
Para que a tribo velha se deslastre.
E logo que ouvirdes a trombeta, vireis à tenda do rei.
E trareis as armas
e trareis a audácia da sobrevivência:
nós, os velhos, lutaremos para que
não soçobre a velhice. Lutaremos
contra os filhos como lutámos
contra os pais. Este é o terreiro que construímos
e esta a virtude que conquistámos,
ó guerreiros do tempo. Ou morramos
com honra sob o gládio dos descendentes.
Eis porque chora o rei.

Logo que ouvirdes a trombeta sabereis que os campos
estão dispostos: grupo contra grupo,
tempo contra tempo. Iremos trôpegos
ao âmago da batalha, de rastos ou mancos,
cegos ou feridos, surdos ou meigos.
Combateremos. E david dirá aos seus:
“poupem absalão, poupem absalão”.
Todavia os ramos dos carvalhos
Desconhecem os enredos e as zagaias
cumprem o seu caminho. Chorou david
a morte de absalão e choraria
a vitória de seu filho.
E o rei fugiu da sua mágoa

e encheu de confusão as suas gentes.
E encheu de luto a sua plebe. Porque
dizia david: “tu foste o meu osso e foste
a minha carne. Foste o mar
para lá do mar que maus olhos viram.
Cumprem-se as gerações e sagram-se
as revoltas. Absalão meu filho.”
Logo que as trombetas soaram, david
falou ao coração dos que o seguiam;
“quem ergue a mão contra quem? a lei
do mais forte é a lei das tribos.
Choro porque venci e a lei me derrotou”.

Esta é a história de quando o rei chorou

(de “ A arte de matar”)