Nascido em Bragança embora se considere madeirense (reside no Funchal), Eduardo Quina é professor de Filosofia e poeta.
(A PROPÓSITO DE ANDORINHAS)
para o Diogo Vaz Pinto
na tua estória havia andorinhas. nesta
há andorinhas e outros pássaros mortos
às mãos impunes da minha infância.
neste terra construí primariamente
o princípio de toda a solidão - talvez seja essa
a mais curta distância entre duas pessoas.
uma residência de estudantes e um regime
militar: escola, comer, estudar, dormir.
foi este o ritual de passagem para a adolescência.
(agora só a memória dos que aí habitaram).
depois havia as histórias, não só de pássaros, mas
de cerejas, maçãs e outros roubos menores (onde por vezes
éramos corridos a tiros de lapada).
o jardim da vila e a perseguição sempre inconsequente
do seu fiel jardineiro. jardim que teimávamos
em violentar através de jogos de futebol
e outros projectos de destruição.
no espaço que hoje, ironicamente, se apelida
de casa da cultura, alguns procuravam, longe do mundo,
a construção inocente de um cancro através dos
primeiros cigarros.
depois havia a descoberta do princípio freudiano
do prazer.
e assim vivia num jogo de irrealidades, onde de casa.
da escola? apenas o esquecimento da memória
e as mãos de inverno da professora de português
e entrarem-nos pelo pescoço abaixo:
era o princípio do castigo.
SEM TÍTULO
de manhã a língua, ainda entorpecida,
solta os primeiros equívocos. sentas-te, porque
o corpo ainda estremunhado não aguenta de pé.
sobre a mesa, desenhados com perfeição, pequenos
círculos de garrafa. destroços do massacre da noite.
não tens respostas porque a memória se despenhou
dentro do álcool e dentro da noite.
a morte ou a vida, ambas tragédias inexplicáveis,
atormentam-te as palavras no espaço oco da boca.
voltas a deitar-te porque a realidade
é uma coisa estranha e não sabes como explicá-la.
viras a cabeça e o resto do corpo
e a música escurece o quarto: estás pronta
para mais um desassossego.
SEM TÍTULO
nenhuma palavra que possamos dizer nos salva.
definhamos dentro do nosso próprio vazio
e temos que obedecer à noite por nós traçada.
à hora do costume no lugar do costume
encontramo-nos para discutir questões quotidianas.
mendigamos uns copos para enganar a suposta dor:
afinal somos poetas.
sofres a pertença
a uma geração de merda.
somos os copos que vão preenchendo a mesa,
um lugar de eterno vazio:
cães à espera da morte.
não uma morte física - isso seria demasiado fácil -
mas uma morte metafísica
no poema
onde definhamos entre palavras e rumores de opressão.