quinta-feira, 22 de outubro de 2020

[0717] Poema de Ricardo Jorge Claudino, poeta português, algarvio e alentejano

SER CASA

Tenho duas casas paralelas

aconchegando-me em tempos paralelos;

é como se uma estivesse abraçando o céu

e a outra beijando raízes profundas na terra.

Na linha ténue desenhada pelo horizonte

quase que ambas se tocam, mas o quase

é algo que não chegou a ser; é a miragem

que relança questões para além do incerto.

Bem sei que sou a perpendicularidade

entre cada uma delas. Por isso fecho os olhos,

estendo os braços, e com uma casa de cada lado

deixo que os caminhos sejam traçados

nas linhas escritas por cada passo,

por cada enlace e por cada momento.



terça-feira, 20 de outubro de 2020

[0716] De Cascavel, Brasil, Tere Tavares revisita-nos com mais dois poemas/prosa


Moça com brinco de pérola. Em meio à escuridão os

lenços atados à cabeça envolvem tua ternura talvez o

teu receio. Creio ao ver a verdade límpida colorindo os

teus olhos [oleira da joia que te evidencia o rosto] que

nasceste para eternizar a beleza.


"Rapariga com brinco de perola" - Johannes Vermeer, c. 1665


Os livros devem ser partilhados para que não se tornem um

anel fatal numa única mão. Os poemas são delírios que

acendem retalhos para a alma. A palavra se redimensiona, se

reafirma quando a emitimos e pode ganhar qualquer outro

sentido, a metáfora inversa. Mas isso é do outro. Não de

quem escreve. A expressão prescinde das explicações.

Somente existe e acontece a partir da magia artística da

enormidade chamada Literatura.


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

[0715] "A cor do tempo", livro de Ricardo Jorge Claudino – ou o tempo como cor e objecto de memórias - Prémio de Poesia da editora Cordel d'Prata 2020

O prémio foi atribuído em 10.10.2020


Ricardo Jorge Claudino
Com chancela da editora Cordel d'Prata e saído por ocasião da Feira do Livro deste ano, o livro de poemas "A Cor do Tempo" de Ricardo Jorge Claudino revela-se obra madura e reflectida, não obstante ser o primeiro de sua autoria – o que não surpreende, pois este jovem farense com fortes ligações ao Alentejo não é propriamente um novato no meio, tendo já vasto material divulgado em revistas da especialidade e jornais regionais, em experiências que datam da adolescência e agora frutificaram.
São seis dezenas de trabalhos de temática diversa, onde se nota forte componente pessoal de memórias de momentos ou assuntos vividos. Disso são exemplo, entre muitos outros, poemas como "Casa no campo", "sinónimo de paz e do cante dos passarinhos", "As oliveiras falam", com suas "palavras sábias", "Teatro infantil", relembrando os cheiros e as cores do pó de palco pisado anos atrás, "Amesterdão e eu", de acolhedora e absorvente temporada profissional ou "Soneto imperdoável" em que recorda os "frajais" (ferragiais) semeados pelo avô, evocando uma das muitas e saborosas corruptelas linguísticas em que a grande província do sul é farta. E já que de sonetos falamos, assinalemos os muito interessantes dois exemplos vigentes, este e "Soneto condenável", género poético assaz descurado nos tempos presentes que ele adoptou com sucesso. Também é de salientar "Escadaria", curioso trabalho de poesia visual, discreto e acertado.

Quanto ao tema que dá título à compilação, surge logo no primeiro exemplo, cartão de visita do conjunto, de facto todo ele muito visualizável através de descrições simples mas eficientes. Neste poema de apresentação, as alusões à slow-life campestre e citadina é recorrente, quer nas referências ao "assobio do rouxinol apaixonado", às "formigas que correm atrás de uma migalha de pão", ou aos passeios pela calçada portuguesa, pisando apenas as "pedras mais escuras". Idêntico roteiro também se vislumbra noutros exemplares, caso de "Perder para ganhar", quando o autor fala dos momentos em que se esquece "nas travessas das mais pequenas aldeias alentejanas", onde o tempo não conta e onde nos confrontamos com essa "gramática de coentro e cal, geometria do branco e do azul" de que o cantor e poeta Vitorino fala. 

Plenos de sabedoria e exaltantes de amor à escrita e à leitura, são os poemas "Livro aberto", nesse apelo que diz  que "As palavras foram feitas / para serem ditas / e os livros para estarem / abertos" e "Quando o poeta morre", em que Claudino esclarece que quando o vate fenece não vai para o céu  mas "ganha asas na terra [e] voa nas suas palavras". 

É pois de reter este livro, perpassado por lirismo suave, tanto campesino como urbano, completado pelos desenhos de idêntica índole de Cristina Aurélio e Fernando Madeira, um dos quais serve de capa. Após a prometedora peça inicial, resta-nos aguardar com expectativa a continuidade da obra de Ricardo Jorge Claudino.