sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

[0756] Um poema "anunciativo", de Nicolau Saião



ANUNCIAÇÃO


As mulheres do vento   parado como um planeta extinto

as mulheres doentes   as mulheres que cantam com surpresa

o seu vestido estranho como uma renda   como uma absurda mancha

as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas

entre mim e o céu

Entram pela minha boca e censuram-me docemente

Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante

ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios

Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos

junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando

estremecendo como uma pétala sobre a água

Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis

escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza

Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval

mulheres de pernas como lírios rosados

andando ao longo duma estrada francesa

as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa

Job de rosto erguido amargo senhor das angústias

a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos

a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes

Dizei-me mulheres  onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou

na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra

Vós sois o sustento dos pontos cardeais

Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste

e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda

o fumo espalhado no parque abandonado

os olhos tranquilos frios

A rua solitariamente sob a noite de Junho

e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar

A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura

à luz frouxa da manhã   e o frio subindo até às portas como um animal 

a morrer.


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