quinta-feira, 27 de setembro de 2018

[0207] Olinda Beja, a santomensidão na poesia

Olinda Beja, nasceu em Guadalupe, São Tomé e Príncipe em 1946. Estudou em Portugal onde reside, embora divida o seu tempo entre este país e São Tomé e Príncipe. Foi professora do ensino secundário em Portugal e de Língua e Cultura Portuguesas (e Lusófonas) na Suíça. Dedicou-se à escrita (poesia, contos e romances) desde muito jovem, tendo publicado diversos títulos. Entre outros prémios, recebeu em S. Tomé e Príncipe o Prémio Literário Francisco José Tenreiro de 2012-2013. Contadora de histórias, Olinda Beja tem divulgado, através de conferências e recitais de poesia, a cultura de S. Tomé e Príncipe por vários países nomeadamente Brasil, Austrália, Timor, Marrocos, França, Espanha, Suíça, Inglaterra, Luxemburgo, Cabo Verde. 


EIS-ME AQUI

Estou aqui
a contar-te dos caminhos que percorro
velhos   estreitos   esventrados
caminhos de sulcos e de cabras onde
nossos avós colheram pão de côdea dura
estou aqui
a contar-te dos cheiros doces e acres
dos frutos tropicais
cheiros que se foram confundindo no sangue
que se afundou em docas e mares mas emergiu
mais vermelho que o chão da nossa terra
estou aqui inteira   viva   irrequieta como pássaro
que acasala no equilíbrio de um ramo
e como tu quero ferir meus pés
no lençol de pedras que atapeta o ôbô
inundar de algas azuis o corpo reflectido
no espelho das calemas
estou aqui para escutar o vento no zinco dos casebres
e exorcisar os medos que vagueiam na linguagem do povo

estou aqui como tu
borboleta tricolor que pousa no eco das muralhas
e morre a ouvir histórias de um país calcinado.


SANTOMENSIDÃO

O poema está no ritmo
do nosso sangue cruzado. Na idade
da nossa santomensidão...

cheiros de terra quente
palmares de avó Sipinge
distância em distância entre
o leste e o oeste
o norte e o sul

o poema
é a única rota que deixa sulcos no cais
imensurável dos nossos atropelos


TRAVESSIA

pus a mesa no meio do quintal
Molembu se chamava a roça
regada com sangue de meus antepassados
invoquei os meus mortos
os espíritos todos que me antecederam
chegaram primeiro os oriundos do sul do Sahara
do Gabão, da Libéria, da Mina
outros vieram das ilhas áridas
outros das terras de D’Jinga
e outros ainda para lá do Ìndico
união de muitas raças e credos e danças
fado, marrabenta, puíta , manipuri
festa orgíaca que Sum Tômachi, o curandeiro
se comprometeu a montar
por fim vieram alguns do ocidente
lívidos e trémulos como a branca neve do seu longe
como o minuete das suas danças de salão
e o choro da guitarra e da viola
a mesa estava posta
iguarias atapetavam o robusto
tronco de mampiam que há muito alguém retangulou
e os espíritos todos provaram e se deliciaram
cozido de banana, molho no fogo
vuadô travessá, pescada com todos
angu, d’jogó, cozido à portuguesa
cachupa, funge, muamba,
arroz doce, canjica, paracuca
e os acepipes eram por todos sobejamente conhecidos
cafukas arderam até à exaustão da luz
tremelicaram vozes em cânticos hossânicos
em uníssonas línguas que se enovelaram felizes
e a torre de Babel ergueu-se una e majestosa
num pedaço de chão esquecido dos deuses
minha avó Dua espelhou seu rosto de água
em meu ombro anguloso e ressequido
e feliz adormeceu

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