quinta-feira, 27 de setembro de 2018

[0208] Fernando Sylvan, cantando Timor em Portugal

Pseudónimo de Abílio Leopoldo Motta-Ferreira, nascido em Dili em 1917 e falecido em Cascais em 1993. 

Poeta, prosador a ensaísta, é um dos nomes da literatura timorense. 

Passou a maior parte da sua vida em Portugal, sempre invocando as suas origens. Presidiu à Sociedade de Língua Portuguesa e foi dirigente da Convergência Monárquica, que se opunha ao salazarismo.

"Meninas e meninos" é um dos seus poemas mais conhecidos, dentro de uma vastíssima bibliografia em prosa e verso.


NAVIO 

Tata-Mailau
É o pico-avô da minha Ilha.

Subi muitas vezes aos seus três mil metros.
E foi no seu alto
Que meu sonho-menino construiu um navio.

Antes.
Ninguém tinha compreendido
Que a ilha
Não é terra isolada pelo mar.


ROTA 

Não sei se o mar tem voz
Mas a sua voz
Desde pequeno me falava lento.

E eu via nele
O que não existia na memória.
Ninguém sabia
De meus avós e bisavós
Se era quadrado ou redondo
Se tinha vida ou não.

Mas sem saber se tinha voz o mar
Ouvia a sua voz.
E sem saber se tinha vida ou não
Sentia a sua vida.

Foi ele que me disse
Que havia Espaço e Tempo.

E comecei a viajar sem medo da viagem.

E nunca mais parei
Com medo da paragem.


MENINO GRANDE 

Papá,
Ressoa em todo eu
A minha voz primeira
Quando te chamava.
O menino que fui potenciou-se.
Não há menino grande,
Mas sou,
Papá,
Menino verdadeiro.

Já não fujo a gritar pelas ravinas,
Nem monto búfalos,
Nem subo a coqueiros,
Nem me escondo detrás de bananeiras.

Nascem-me já cabelos brancos,
Tenho um bigode
E sou feio e gordo.

E penso e escrevo e faço versos
E abro os braços ao mundo.

Começo a ser como querias.

Papá,
Se me visses agora
Reconhecer-me-ias!


MENSAGEM DO TERCEIRO MUNDO

Não tenhas medo de confessar que me sugaste o sangue
E engravataste chagas no meu corpo
E me tiraste o mar do peixe e o sal do mar
E a água pura e a terra boa
E levantaste a cruz contra os meus deuses
E me calasse nas palavras que eu pensava.

Não tenhas medo de confessar que te inventasse mau
Nas torturas em milhões de mim
E que me cavas só o chão que recusavas
E o fruto que te amargava
E o trabalho que não querias
E menos da metade do alfabeto.

Não tenhas medo de confessar o esforço
De silenciar os meus batuques
E de apagar as queimadas e as fogueiras
E desvendar os segredos e os mistérios
E destruir todos os meus jogos
E também os cantares dos meus avós.

Não tenhas medo, amigo, que te não odeio.
Foi essa a minha história e a tua história.
E eu sobrevivi
Para construir estradas e cidades a teu lado
E inventar fábricas e Ciência,
Que o mundo não pode ser feito só por ti.

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