Ronaldo Cagiano Barbosa revisita-nos, o que nos honra. Nascido em Cataguases, Minas Gerais, em 1961, reside actualmente em Lisboa. Advogado, escritor, ensaísta, crítico, poeta, é uma das novas vozes brasileiras
ROTINA
O último trem vara meus
instintos – a vida segue como um tiro.
Tanussi Cardoso
Do pátio da velha estação
(esqueleto desativado onde hibernam morcegos)
procuro no tempo escuro e abissal
a histriônica locomotiva da infância
penetrando a cidade como um raio.
Fera metálica atravancando a avenida
beirava o córrego como uma centopeia arengueira
recolhendo os olhares de mulheres nas janelas
adestrando o galope dos moleques
que, disputando com a máquina alucinada,
venciam a corrida contra alguma coisa que não sabiam
Aquele trem no vai e vem
com seu barulho contumaz
emerge - feito o passado latente -
dos escaninhos da noite
Animal sem metafísica
insistente como o presente
ainda impõe a melodia insolente
dos apitos
enquanto
desconheço a tirania do futuro.
MAÇÃS AO ENTARDECER
Aquela cesta solitária
feito um alguidar de silêncios
exibe as três maçãs
na cozinha que se despedia do sol.
Ainda a claridade baça
configurando a tarde indisposta
amadurecia o outro fruto escondido,
um coração esquartejado
pelos vermes
de miméticas angústias
Não há como devorar o passado
com a mesma sanha,
a mesma fome
desses animaizinhos
que nos corroem por dentro
RUÍNAS
Cadáver de um prédio
corpo inconcluso
organismo em ruínas
apedrejado pela incúria pública
Contemplo o esqueleto de cimento
contrastando com a opulência da avenida feérica
com suas vísceras à mostra
como um cão faminto
sem força para rosnar
sem alma
sem nada
desossada estrutura, palavra
sem cal
nem mal
Lugar sem nome
vazio que se impõe
ovário vertical germinando indiferenças
túmulo de histórias
Apenas um espantalho inútil
na lavoura de espantos da metrópole
passam por ti os homens
não se movem
nem têm medo
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