Portuguesa residente em Cabo Verde, designer de profissão, Inês Ramos fez-se importante dinamizadora cultural no país onde optou viver, tendo criado o primeiro fanzine nele existente, “Banda Poética”. “Ibn Mucana” honra-se da sua revisita.
FOTOGRAFIA COM RAPARIGA AO PIANO
Não te vejo os dedos, mas pressinto-os. O frémito tilintar
das notas afasta a morte e as angústias para lá da sala.
E a pauta, inútil, já caiu ao chão.
Não sei onde estás, mas pressinto-o. Uma sala ampla, aberta
de clarões de luz, longe do ruído da cidade. Longe do mar poluído.
Tua envolvente é límpida, como água. Como o brilho do piano lacado. Como o branco das teclas de marfim.
Não ouço o que tocas, mas pressinto-o. Vem ao meu encontro
e entra-me corpo adentro. Percorre-me as veias até ao coração.
Depois de uma ligeira paragem cardíaca, volto à vida, mais serena.
Não te vejo o rosto, mas pressinto-o. Sei-te mulher.
Tens os olhos
fechados e a testa ligeiramente franzida. Interiorizas a música
que te sai da alma e volta a entrar pela pele.
Não te sei o nome, mas pressinto-o. Tens o nome das madrugadas
de Maio. Das papoilas vermelhas nos campos de trigo.
Um nome com poucas letras e de vogais abertas.
Não te leio os pensamentos, mas pressinto-os. Uma saudade dorida,
um desencontro. A carne rasgada por um amor perdido. O consolo
possível nas teclas do piano.
Deixaram-me entrar na foto em que tocas. Apenas me disseram:
/entra e sente.
E eu entrei. Fiquei parada, de braços caídos. Espreitando-te
/por uma fresta a preto e branco, captada num clic, no momento preciso.
Vi um mocho sobre o piano. E um gato preto dormindo a teus pés.
Vi flores nascerem no chão ao som das notas. Seriam papoilas?
E o piano ganhou vida de repente, tornou-se humano. Criou braços que te envolveram. E juntos partiram para uma qualquer nuvem, deixando-me aqui.
De braços caídos. Em silêncio.
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