terça-feira, 25 de setembro de 2018

[0194] José Carlos Ary dos Santos, o "poeta do povo"

José Carlos Ary dos Santos nasceu em Lisboa em 1936 e aí faleceu em 1984. Poeta, declamador e dinamizador cultural, foi igualmente autor de letras de canções, quatro delas vencedoras do Festival RTP da Canção. Desde a clandestinidade militante do Partido Comunista Português, fez-se o “poeta do povo”.


POETA CASTRADO, NÃO!

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo   dromedário
fogueira de exibição
teorema   corolário
poema de mão em mão
lãzudo   publicitário
malabarista   cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado   não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura  como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
 a força que tem um verso
 reconhecem o que é seu
 quando lhes mostro o reverso:

 Da fome já não se fala
 é tão vulgar que nos cansa ---
 mas que dizer de uma bala
 num esqueleto de criança?

 Do frio não reza a história
 a morte é branda e letal ---
 mas que dizer da memória
 de uma bomba de napalm?

 E o resto que pode ser
 o poema dia a dia?
 Um bisturi a crescer
 nas coxas de uma judia;
 um filho que vai nascer
 parido por asfixia?!
 Ah não me venham dizer
 que é fonética a poesia!

 Serei tudo o que disserem
 por temor ou negação:
 Demagogo   mau profeta
 falso médico   ladrão
 prostituta   proxeneta
 espoleta   televisão.
 Serei tudo o que disserem:
 Poeta castrado   não!


AUTO-RETRATO

Poeta  é certo  mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.

Cozido à portuguesa  mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento  ambas partes
do meu caldo entornado na infância.

Nos olhos  uma folha de hortelã
que é verde  como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.

Poeta de combate  disparate
palavrão de machão no escaparate
porém  morrendo aos poucos de ternura.

Sem comentários:

Enviar um comentário