terça-feira, 6 de novembro de 2018

[0378] Ernesto Sampaio, um nome obrigatório


Ernesto Sampaio nasceu em Lisboa em 1935 e faleceu também em Lisboa em 2001. Jornalista, bibliotecário, professor, tradutor e poeta, recebeu o Prémio Jacinto do Prado Coelho de 1988. Foi um dos teóricos do surrealismo português.


ESTRADA

Noite sem rasto guia-me até ao meu destino
escondido na solidão das ruas
inconcreto na vastidão das horas
onde tu existes misteriosa e nocturna
no teu perfil de bruxa e da rainha
apátrida e nostálgica
deslizando no vidro da madrugada
azulando de raios gelados o dia que nasce
viva e oculta
cada vez mais viva e oculta
cada vez mais única de amor humano
com a tristeza das luzes marítimas
com a gravidade de quem parte
suavemente para sempre


YOU ARE WELCOME TO ELSINORE

O fogo despe-se cada vez mais cheio de alegria alisado no vento de cada poro da aurora
Começa-se a abrir o Sol em gotas de sangue tatuadas de esperma
Há uma flor de lava no fim de cada braço no fim de cada perna no fim os tempos
E uma chuva de cinzas e de espinhos caminha a meu lado onde começa o mar das /grandes lanças de água
É todo o teu ventre a cantar nas minas da catástrofe de noites sem véus de rios que /começam a vida de gestos no crepúsculo
São os teus olhos voando sobre os frutos da tempestade
É a cabeleira da Terra envenenando o ar de beleza ao ritmo alucinado com que abres as /pálpebras deixando sair os lagos da tua infância e a luz louca da crisálida que nos gerou /dissimulada em cada pedra em cada cama onde morremos juntos
Chicote ronronando por cima de nós em noites desmedidas na coragem de ver nascer /uma nova manhã e uma nova estrada e uma nova boca incrível
Monstros sem ordem génios galopando na respiração estrelada dos meus
pulmões Primaveras a recolher numa outra vida numa outra vida amante
Olhar suculento mestre do horror e da audácia gelada em cada canto em cada flor de /fumo colada aos ossos dum horizonte inocente e inesgotável
Poeira dum astro pré-existente ao nosso espiral dos dias que estreitamos puros tripas da /raiva vegetal que embrulhamos em cada palavra
Fogo perpétuo fruto espantoso de bandeiras negras e vermelhas comboio
que esmaga e canta e ninguém deterá
Fuzis do hálito esbraseado danados embraiados num sinal nos ares num sinal vermelho
Na cinta a pistola de cada injustiça nas costas a metralhadora da porrada que nos deram /no bolso um chacal a sorrir-nos no sexo tu
Tu meu avião de vinho minha rã no cérebro meu castelo de múmias minha jovem eterna /de mãos de radium minha fonte que enche a boca de estrelas meu grande ventre de /movimentos marítimos meu incêndio possuído numa cama de meteoros meu sopro de
/todas as potências minhas costas de Mar e de Terra minhas coxas de deboche minha
/mulher de movimentos de fuzilamento de movimentos loucos minha flor de sangue de /ferro de esperma minha destruição luminosa minhas nádegas de noite e de loucura /MEU AMOR

Habito a lealdade dos presságio
Começo a ser um bom leito para o meu sangue


PERDA

No poroso branco das lajes
da limpa escada de pedra
sobre o abismo feliz
das claridades eternas
cada passo
perde
lentamente
a esperança de ser o último
A obra sem peso
da minha paciência
corre sobre a terra
constrói o silêncio
onde tu te anuncias
No reflexo das horas
como uma imagem de vidro
onde só vejo
a luz do vento
eu sei que a cor do mundo
está perdida

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