terça-feira, 6 de novembro de 2018

[0379] Ana Paula Tavares, Angola, a voz de hoje

Ana Paula Ribeiro Tavares nasceu no Lubango em 1952. Escritora, historiadora e poeta, vive em Portugal onde lecciona. Por alguns considerada uma das melhores vozes da poesia angolana contemporânea.

AMARGOS COMO OS FRUTOS

                          “Dizes-me coisas tão amargas / como os frutos...” – Kwanyama


Amado, por que voltas
com a morte nos olhos
e sem sandálias
como se um outro te habitasse
num tempo
para além
do tempo todo

Amado, onde perdeste tua língua de metal
a dos sinais e do provérbio
com o meu nome inscrito

Onde deixaste a tua voz
macia de capim e veludo
semeada de estradas

Amado, meu amado,
o que regressou de ti
é a tua sombra
dividida ao meio
é um antes de ti
as falas amargas
como os frutos


MUKAI

1  
Corpo já lavrado
eqüidistante da semente
é trigo
é joio
milho híbrido
massambala
resiste ao tempo
dobrado
exausto
sob o sol
que lhe espiga
a cabeleira.


O ventre semeado
deságua cada ano
os frutos tenros
das mãos
(é feitiço)
nasce
a manteiga
a casa
o penteado
o gesto
acorda a alma
a voz
olha pra dentro do silêncio milenar.

3
Um soluço quieto
desce
a lentíssíma garganta 
(rói-lhe as entranhas 
um novo pedaço de vida)
os cordões do tempo 
atravessam-lhe as pernas 
e fazem a ligação terra.
Estranha árvore de filhos 
uns mortos e tantos por morrer
que de corpo ao alto 
navega de tristeza
as horas.

4  
O risco na pele 
acende a noite 
enquanto a lua
(por ironia
ilumina o esgoto 
anuncia o canto dos gatos) 
De quantos partos se vive 
para quantos partos se morre
um rito espera-se faca
na garganta da noite
recortada sobre o tempo 
pintada de cicatrizes 
olhos secos de lágrimas 
Domingo, organiza a cerveja
de sobreviver os dias.

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