terça-feira, 23 de outubro de 2018

[0318] José Gomes Ferreira, o cancioneiro revolucionário


Nascido no Porto em 1900 e falecido em Lisboa em 1985, José Gomes Ferreira era filho de um republicano democrata que chegu a ser vereador lisboeta. Jornalista, tradutor, ensaísta e ficcionista, poeta, participou no movimento antifascista, aliado ao PCP. Formado m Direito foi também compositor. Compagnon de route do neo-realismo, alguns dos seus poemas ficaram no cancioneiro revolucionário


SE EU AGORA INVENTASSE O MUNDO

Se eu agora inventasse o mundo
criaria a luz da manhã já explicada
sem o luto que pesa
na sombra dos homens
- conspiração da noite
com as pedras.

Luz que o cheiro das ervas da madrugada
aproxima os mortos do silêncio
com esqueletos de asas
- conluio com o sol
para estarem mais presentes
no tacto da pele da manhã,
mil mãos a afogarem a paisagem,
bafo de flores donde cai
o enlace das sementes...

Abro a janela
O mundo cheira tão bem a trevos ausentes!


ENTREI NO CAFÉ COM UM RIO NA ALGIBEIRA

Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
- onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.


DEVIA MORRER-SE DE OUTRA MANEIRA.

Devia-se morrer de outra maneira,
transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (veem?) - nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...


ACORDAI

Acordai
acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raiz

Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações

Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!

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