sexta-feira, 5 de outubro de 2018

[0247] Natércia Freire, a esquecida

Nascida em Benavente em 1920 e falecida em Lisboa em 2004, Natércia Freire ganhou o Prémio Literário Antero de Quental de 1947 e 1952, o Prémio Ricardo Malheiros de 1955 e o Prémio Nacional de Poesia de 1971. 

Professora e poeta, foi levianamente identificada com o Antigo Regime português, quase votada ao esquecimento depois de Abril de 1974. 


POEMA DE AMOR

Teu rosto, no meu rosto, descansado.
Meu corpo, no teu corpo, adormecido.
Bater de asas, tão longe, noutro tempo,
sem relógio nem espaço proibido.

Oh, que atónitos olhos nos contemplam,
nos sorriem, nos dizem: Sossegai!
Românticos amantes, viajantes eternos,
olham por nós na hora que se esvai!

Que música de prados e de fontes!
Que riso de águas vem para nos levar?
Meu rosto, no teu rosto de horizontes,
Meu corpo, no teu corpo, a flutuar.


O BAILE

Névoa em surdina
A sombra que acompanha
As finas pernas a dançar na tarde.
Jogo de jovens corpos.
Música de montanha,
Num tempo teu e meu
De eternidade.
E eu, as duas estranhas.

Olha quem toca o ponto
Que há no fim!
Ao fim de mim,
No ponto para que vim.
Ao fim de mim
No ponto donde vim.
Vulto de agulha
Em fumo de água e lenha.

Eu, as duas estranhas.

É sempre pelos outros que falamos.
Eu, as duas estranhas, por mim falam.
Em estradas como ramos
oscilamos. E vamos
Convergentes, dispersas, disparadas
Pelos tiros de magos inocentes
Do caos ao sol
Em gradações de escadas.

Ouve-se às vezes uma voz: - Presente!
E já no corpo as almas vão trocadas.

Foi em concretos dias de sol-posto,
Em fábricas de fios de uma aranha,
Que se teceram
Em finíssimas teias de desgosto,
(Eu) as duas estranhas.


POEMA DA REBELDIA

- Nenhum de vós! Seja qual for o céu
que vos encobre! Seja qual for a Idade
que vos deu! Já nenhum me fascina,
ó seres de pedra e mármore e cristal!
Não estremeço de espanto ou de beleza.
Se tudo o que me coube foi morrer,
espero da Esperança a glória do irreal.

Se vos amo, não sei se vos cantei.
Se vos deifiquei, já vos esqueço.
Se vos medi para além do que vos meço,
para aquém vos deixei.

Como erguer-vos acima dos infernos
de pó e cinza que a paixão criou?
E chamei-lhes eternos!
Que rio de miséria os afogou?

Nenhum de vós! Se estive de joelhos,
hoje levanto o olhar. O que de vós rasteja
sobre a Terra, a podridão do instante,
a perdição dos vícios, a razão de cantar,
está nas palavras presas, nas cadeias
que os séculos soluçam, a arrastar...

Nenhum de vós agora me escraviza.
Tão pequenos, pequenos almocreves!
Crianças das extáticas, divisas
e de infinitos breves!

Nenhum de vós! Não sei que epopeias
e astros e mansões
vos erguestes acima das areias!

Arrepiem-se as trevas e o silêncio
Do desprezo que alargo,
dos nomes que soterro, do amargo
anel de ferro que os recolhe.

Nenhum de vós, nenhum merece
que vos olhe!

Quero os cânticos só para além de mim,
de além dos cataclismos.
De além morte, de além caudais
de mundos em fusão.

Quero ver Deus criar de novo a vida;
uma nova manhã, um sabor novo a relva,
a maresia, à primeira canção...
Os passos do amor na noite fresca,
a primeira e imprecisa solidão.

Quero ver Deus, terrível, frente a frente.
Ver os primeiros lagos, ver os primeiros monstros,
ver-me de onde é que eu vinha.

Quero ver Deus criar de novo a Morte
e que a primeira morte seja a minha.

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