sexta-feira, 5 de outubro de 2018

[0246] António Aleixo, o poeta cauteleiro

Célebre poeta espontâneo cujas quadras ficaram na memória do povo, António Fernandes Aleixo nasceu em Vila Real de Santo António em 1899 e faleceu em Loulé em 1948. Com fina ironia e muita crítica social, semi-analfabeto e homem simples, teve extraordinária facilidade de rima e de métrica mais comum, foi tecelão, polícia, pedreiro, emigrante em França, cauteleiro, enfim, ao que de que se pôde socorrer numa sobrevivência difícil – “uma amarga filosofia aprendida na escola impiedosa da vida”. Ficou conhecido como o “poeta-cauteleiro”. Vários cadernos seus de poesia foram cremados como meio de defesa contra o vírus infeccioso da doença que o vitimou (a tuberculose), acto cometido em consequência do terror que a doença então causava nos meios mais populares.


QUADRAS

Sou humilde, sou modesto;
mas, entre gente ilustrada,
talvez me digam que não presto,
porque não presto p`ra nada.

Forçam-me, mesmo velhote,
de vez em quando a beijar
a mão que brande o chicote
que tanto me faz penar.

Por de Deus ter recebido
tantas provas de bondade,
já lhe tenho até pedido
a morte por caridade.

Porque o mundo me empurrou,
caí na lama, e então
tomei-lhe a cor mas não sou
a lama que muitos são.

Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.


NÃO DÊS ESMOLA A SANTINHOS

MOTE

Não dês esmola a santinhos,
Se queres ser bom cidadão;
Dá antes aos pobrezinhos
Uma fatia de pão.

GLOSAS

Não dês, porque a padralhada
Pega nas tuas esmolinhas
E compra frangos e galinhas
Para comer de tomatada;
E os santos não provam nada,
Nem o cheiro, coitadinhos...
Os padres bebem bons vinhos
Por taças finas, bonitas...
Se elas são p'ra parasitas,
Não dês esmola a santinhos.

Missas não mandes dizer,
Nem lhes faças mais promessas
E nem mandes armar essas
Se um dia alguém te morrer.
Não dês nada que fazer
Ao padre e ao sacristão,
A ver para onde eles vão...
Trabalhar, não, com certeza.
Dá sempre esmola à pobreza
Se queres ser bom cidadão.

Tu não vês que aquela gente
Chega até a fingir que chora,
Afirmando o que ignora,
Assim descaradamente!?...
Arranjam voz comovente
Para jludir os parvinhos
E fazem-se muito mansinhos,
Que é o seu modo de mamar;
Portanto, o que lhe hás-de dar,
Dá antes aos pobrezinhos.

Lembra-te o que, à sexta-feira,
O sacristão — o mariola! —
Diz, quando pede a esmola:
«Isto é p'rà ajuda da cera»...
Já poucos caem na asneira,
Mas em tempos que lá vão,
Juntavam grande porção
De dinheiro, em prata e cobre,
E não davam a um pobre
Uma fatia de pão.

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