quinta-feira, 4 de outubro de 2018

[0243] Olinda Beja revisita-nos

A poeta santomense Olinda Beja dá-nos a honra de revisitar o nosso portal, o que sempre lhe agradecemos. A sua poesia escorre naturalmente, embrulhada na beleza das suas ilhas. E é bem-vinda. 


SEM TÍTULO
                    À Milé Veiga

lavraste searas de ausência em teu outro húmus
teu pranto vago e terno em começo de recordação
tempo afeiçoado ao gesto
à simetria de teu corpo cambuto e gracioso
deserto de sons e horas
e diásporas de sofrimento

teceste fios de púrpura na estrada de Água Arroz
altivos mamoeiros no quintal de tua espera
e de ti nasceram risos
e abraços
e mãos de acenos fugazes
e palavras esculpidas em folhas de andala
teu ilustre papiro.


LUSOFONIA 

Extensão imensurável
de raízes em solos longínquos
usos
costumes
sangues cruzados…
sonhos que ficaram perdidos nas pedras
a circundar o Globo das nossas vidas

estranhos?!
estranhos porquê?
talvez o sejamos na distância lusa
dos nossos palmeirais exóticos
panos garridos
gargalhar sensual e provocador
talvez o sejamos até no linguajar materno
que no berço ouvimos

mas se hoje procuramos a essência
de um passado comum
é porque aquele acento no coração de todos nós
é a ave migratória dos nossos mares entrelaçados


FERTILIDADE

nossa casa mãe é quali de goiabas
a projectar-se na floresta azul onde
o teu ventre se multiplica e se debate
em palavras molhadas de imensidão

tempos houve em que o teu rosto ausente
se embrenhou no plasma vigoroso que deteve
a morte inglória de teus frutos. Volto
à nossa casa mãe e o quali de goiabas

é o rosto de outras mães que saúdam as úluas
sozinhas e distantes na savana inquieta das ilhas


FRAGILIDADE

Frágil o mar o sonho a utopia
A nossa emergência transparente de viver
Frágil a sombra do ôká
A fiá gleza
As plantações
Café cacau
Frágil o caminho que leva à verde casa
Frágil a mãe que ergue o dumo da coragem
E ergue o rio em sua voz magoada
E ergue a encosta crivada de matabala
E desce a foz de seus passos
E enlaça o corpo todo
No sangue rubro das acácias
Frágil o som da nossa voz
O ténue abraço que nos separa do amanhã
A hibridez de nossa pele nossos costumes
Frágil a enseada onde aportam
As jangadas de todas as raças

Sem comentários:

Enviar um comentário