quinta-feira, 13 de setembro de 2018

[0097] Mário Cesariny, o surrealismo português

Talvez o principal poeta surrealista português, Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu em Lisboa em 1923 e faleceu também em Lisboa em 2006. De ascendência corsa pelo lado materno, estudou cinzelagem e depois na Escola António Arroio, onde se iniciou a sua estreita amizade com Cruzeiro Seixas, seu condiscípulo. Deslocando-se a Paris em 1947 para prosseguir os estudos, relacionou-se com André Breton que o influenciou na criação do Grupo Surrealista de Lisboa com António Pedro, José Augusto França, Vespeira, Alexandre O’Neil e outros. Embora em muito divergissem do neo-realismo, controlado pelo PCP, os surrealistas foram vigiados pela polícia política dada a sua posição antissalazarista. A partir da década de 60, dedicou-se inteiramente à pintura, libertando-se assim das suas dificuldades económicas. Homossexual assumido, a sua poesia é animada por um sentido de contestação a comportamentos e princípios institucionalizados ou considerados normais nos campos do pensamento e dos costumes. 


PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra


UMA CERTA QUANTIDADE


Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade

Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião

Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá

E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar

Que susto se de repente alguém a sério encontrasse
que certo se esse alguém fosse um adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro

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