Estes três poemas foram inicialmente publicados no blogue "Amaité, Poesia e Cia" (ver AQUI).
ANTECIPAÇÃO
O tiro já partiu.
De nada vale o gesto brusco,
a finta, o disfarce desmazelado
que há muito ensaias.
O sol desce nas tuas costas
e nem isso notas, porque todos os dias
parece-te quente o pão entre os dentes
e, além disso, há sempre alguém que te cumprimenta
de forma ainda convincente,
O tiro partiu desde que nasceste,
porque o fim e o início são a mesma coisa,
se os observas à distância de um livro muito antigo.
Ali, onde a terra se levanta levemente,
e as ervas pousaram depois inconscientes,
podes já tu estar antes mesmo do tiro chegar,
porque é no som da pólvora,
ou mais intimamente no estalido do gatilho,
que passaste realmente a acreditar.
A ESPADA
«Depois falamos», disse-me ela,
deixando-me na mão o aço em brasa da espada.
«Quando arrefecer...», profetizou ainda sem esclarecer.
Percebi que iria voltar um dia.
O restante especulei: inventei sombras, reverberações
nas paredes da casa.
Perscrutei o destino nos olhos do gato,
que me eram de coruja.
E o outono acabou por chegar,
quando a espada arrefeceu,
fazendo-se então tíbia sensação,
canto que embala e prepara.
Ouvi o eco que já não parecia sê-lo.
Se fosse, era apenas o eco do eco do eco.
A boca a mexer-se no espelho, sozinha,
sem pensamento,
instinto animal que não entende, mas sente.
«Não tenho medo, tenho pena»,
disse-mo meu pai.
Compreendi tão profundamente,
como se compreende o esquecimento,
um totem magnífico
cuja areia vai cobrindo sem ritual, nem plano.
A luz era agora amarela, daquela cor que irradiam
as páginas das revistas antigas.
A ideia de um osso ganhava vida,
os pássaros partiam para sul.
Se voltaria a vê-los, ou não, só no inverno saberia.
A GOTA-CADÁVER
A gota espreita,
reflete o som e a brisa que a agita,
alucinação simples que a rodeia.
A medo incha, inflama-se,
ajusta-se à ponta da torneira,
saco de moléculas,
pequeno universo em expansão.
Por um instante hesita.
Parece repudiar a sina,
insistir uma vez mais
no incrível regresso à nascente.
Quando se lembra que não se lembra,
cai exata, entregando-se fóssil,
emancipada ao prazer curto da viagem,
ao destino-cadáver de um oceano maior.