CIDADE ESTRANHA DE NOITE
“Hélas! qu’elles sont étrangères, il est vraie,
Les ruelles de la ville-souffrance”
(Rilke)
A cidade estranha abriu-me sua alma
Quando o sol já tinha fugido,
Seus raios estavam já dissecados,
Suas luzes já evaporadas.
E a cidade estranha me ofereceu sua calma.
Já estava morto todo o ruído,
Os sons todos eles sufocados
E as melodias todas elas devoradas
Pela sombra ávida da noite.
Pela noite adentro adentro-me na cidade
Na doce calma da noite doce
Que se fez na cidade estranha.
Apenas a conheci de noite,
E toda cidade é triste de noite.
O sol escondeu-se por detrás das nuvens, das casas,
Dos muros e dos montes,
Escondeu-se, fugindo da tristeza que fez.
Brilha envergonhada a lua abandonada.
O cintilar das estrelas não é mais
Que um piscar de vagalume perdido
Na imensa escuridão.
As casas parecem negras,
Feitas de pedras negras, de telhas negras;
As suas sombras são negras,
Lançadas em ruas negras.
São negras as folhas de árvores negras,
Caindo nas sombras negras
Lançadas pelas ramadas negras.
Como serão as almas da cidade estranha?
Toda noite é triste em cidade estranha.
Os ventos rugem pelos becos apertados,
Sobem rugindo as ladeiras exprimidas,
Rastejam pelas ruas abandonadas,
E se divertem na praça despida
De seus encantos.
Senta-se o vento nos bancos de pedra,
Cheira a calçada de pedra,
Desafia a água que lateja
Da fonte de pedra.
As gotas de água perdem-se aos pingos,
Que açoitados pelo vento atroz
Vão molhar a calçada de pedra
E os bancos de pedra
Com as lágrimas da noite.
O vento perscruta os segredos das árvores
Velhinhas e esquecidas,
Só lembradas à noite pelo vento.
O vento revira-lhes as folhas
E revolve-lhes as ramadas,
E ruge contra suas copas.
A árvore ruge com o vento,
E o vento acompanha as melodias,
Que talvez sejam tristes, alegres talvez,
Tais como as almas
Em que o vento as vai semear.
O vento procura desvendar os segredos
Das árvores,
Mas as árvores guardam seu silêncio.
Todas as noites são tristes em cidade estranha.
As luzes, coitadas, morreram,
Elas descansam também.
Apenas aqui e ali
Uma luzinha tímida
Ameaça a noite com seu clarão minúsculo.
Que será?
Talvez um pobre coitado
Que procura o sono e o sonho em vão,
E que se revolta ali deitado
Contra a imperscrutável solidão.
Talvez uma criança doente, coitada,
Que não sabe porque sofre,
Que ainda não sabe que se sofre
Mesmo sem razão.
Talvez ainda muitos talvez
Procurem desvendar o mistério da luzinha.
Deixai o mistério à luzinha,
Toda cidade estranha é triste de noite.
Vagueio pelas sombras
Negras das ruas enegrecidas,
Entre as casas negras
Enegrecidas pela noite.
Ou vagueia só minha alma talvez.
Eu procuro vê-la como ela é
E nem sei sequer se ela é agora como não é.
Eu não sei ao menos se tirando as sombras
As casas serão diferentes;
As ruas mais vivas talvez;
Os becos menos estreitos talvez;
As ladeiras menos íngremes talvez;
E a praça mais alegre talvez.
Sentei-me no banco de pedra
Fazendo companhia ao vento,
E roubando ao chão de pedra
As gotas que agora caem em mim.
Eu ajudo o vento a desvendar segredos
E nem sei sequer se há segredos.
Eu não sei se de dia o vento muda a voz,
Ou se os pingos deixarão de cair
No chão de pedra.
Talvez sim, talvez não,
Talvez o vento leve amanhã
Folhas secas, papeis velhos e jornais lidos,
Brinque com eles talvez, jogue-os no ar
De encontro ao seu irmão gêmeo vento,
Que não os queira talvez.
Talvez as folhas, os papeis,
Sejam como a alma de muita gente.
A luzinha apagar-se-á decerto,
Será supérflua, coitada,
Como tanta coisa supérflua que se apaga
E depois mostra que não era supérflua.
Entrei pela cidade estranha
Quando o sol já se tinha posto.
E deixei-a quando o sol ainda repousava.
Todas as cidades estranhas são tristes de noite.
São Paulo, Brasil, 1962
Gostei muito do poema. As repetições causam um efeito sonoro que fazem lembrar a poesia de Camilo Pessanha.
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