sábado, 3 de novembro de 2018

[0364] Mário Contumélias, o poeta da serenidade

Mário Manuel da Silva Contumélias nasceu em Setúbal em 1948 e faleceu em Lisboa em 2017. Jornalista, poeta e escritor, presidente do Sindicato dos Jornalistas (1975/77), cofundador do jornal “Correio da Manhã”, empresário de Comunicação, professor e formador do CENJOR.


EMOÇÕES – PRIMEIRA LIÇÃO
         
                              para a ana bárbara, carinhosamente

1.
as emoções voam em ciclos
prendem-se aos retratos em silêncio
espreguiçam-se na memória quietas
escondem-se no segredo das lágrimas
sempre são alegria quando as vemos
tão distantes e serenas escorregam
nos anos já vividos demoram-se
esperam ser revisitadas... há quem
as guarde numa arca para quando os dias
forem longos há quem as gaste logo e
nada deixe para depois.

2.
ah! as emoções... fazem sempre chorar
sobretudo quando cheira a romãs e a noite
se fecha sobre o próprio ventre à espreita
do propício momento são flores numa velha
jarra mas não fenecem nunca recusam-se
a murchar antes ganham cor patine
[acho que é assim que se diz: patine]
vestem-se de luz e sombra disfarçam-se
com a roupa de outros tempos lavam a cara
deitam fora as rugas avermelham os lábios
rescrevem na face o rubor antigo.

3.
sabem tudo da música conhecem o pudor
das palavras mais secretas dançam nuas
nos corredores quando os gatos adormecem
coleccionam silêncios gestos impensados
pequenos objectos imprestáveis papeis
amarelecidos e dobrados discretas
disfarçam-se nas datas mais difíceis às
vezes cheiram a mar outras à lânguida
terra que a chuva possuiu reconstroem-se
renovam-se são assim as emoções
quando a serenidade nos deixa olhá-las perto.

4.
outras vezes não outras vezes
tomam-nos de assalto há mesmo
quem soçobre feche os olhos
e parta para o longe é então
que elas se revelam na sua forma
de aves sibilinas rompem o espanto
rasgam as veias predizem o futuro
exalam odores que pensáramos perdidos
sussurram em desconhecidos idiomas
mas logo se aquietam é esse
o seu ofício a quietude.

5.
ah!, as emoções...


O GATO

O gato espreita no azul Sereno
sabedor o gato espreita no azul
Esconde mistérios suspensos nos olhos
com que fita Nos olhos o gato esconde
Encostado a um canto silencioso o gato sabe tudo
Discreto sem metáfora
o gato é apenas um gato.


PEDRAS

Eu canto estas pedras de fio,
Este areal de aves esquecidas.
Passo por ti sem ver as rosas, a flor que pelos olho esvoaça.
Eu canto como se aqui fosse uma praça,
Uma praça coberta de cadáveres
E o teu rasgado pelo ventre
Fosse um cadáver mais por entre os dedos.
Por isso é que esta dor não pode ser poema.
Por isso é que não pode ser uma palavra.

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