sexta-feira, 26 de outubro de 2018

[0333] Teresa Rita Lopes, a poesia em pessoa


Maria Teresa Rita Lopes nasceu em Faro em 1937. É professora, dramaturga, escritora, poeta e investigadora. Distinguida com prémios nas áreas de Teatro e de Ensino. Licenciou-se em Paris, tornando-se numa as principais investigadoras pessoanas. Foi directora do Instituto de Estudos sobre o Modernismo e foi fundadora da Universidade Nova de Lisboa.


AUTO-RETRATO

porque será que meus olhos tanto necessitam
de ver mar ao longe?
                             Ou pelo menos a água
de um rio
             para aí cheirar a sua raiz
Se calhar foi por tanto apetecer o azul
da água ao longe
                           que meus olhos são claros
e por tanto amar o mar
                           que meus desgostos
se tornaram destemidos e salgados
                                                      e têm
o voo a pique das gaivotas
                                         e o grito ácido
dos pássaros marinhos


AGORA QUE MORRESTE 

Agora que morreste Mãe

e só em mim te tenho

sou mais que o meu tamanho

porque sou tu também


Tuas mãos afagam minhas mãos

de quem são estes gestos esta pele?

Nunca me deste irmãos

só contigo reparto o meu farnel


de quotidianos fardos e alegrias

breves e desta brasa em chaga

que é tua ausência nos meus dias

órfãos mas sempre ao colo desta mágoa



de não te ter de te ter sido esquiva

de não te ter nunca aberto as portas

do meu ser de nunca te ter dado vivas

o que hoje já só são carícias mortas


A CADA UM O SEU NATAL

O aloés que vegeta num alcatruz de barro
na varanda
todos os anos dá flor por esta altura.
Por enquanto é só uma esguia pinha ponteaguda
prenhe de esperanças.
É homem mas está
de esperanças o meu cacto.
“Para ti será Natal em breve!
digo-lhe.
Mas só vejo um botão…
queixo-me.
É tudo o que este ano dás à luz?”
Ele ri-se,
doridamente:
“Também o Menino Jesus
é só um!
E desfecha-me:
Não vês que estou
a ficar velho?!”
Consolo-o:
“Também eu, amigo,
deixa lá!”
“Mas tu fazes versos!”
diz-me.
“E tu dás flor!”
respondo.


A ARRUMADORA

Era uma mulher que tinha sempre pressa e nem sabia bem de quê
Não podia estar parada
dizia
e por isso tinha que estar sempre a arrumar
tudo à sua volta.
Do que mais gostava era de pôr coisas no lixo.
Depois de arrumar o que já estava arrumado e ela desarrumara
para poder arrumar
punha no lixo tudo o que podia
e não podia:
toda a sua casa se queixava que lhe desapareciam coisas.
Morreu nova:
o deus que a criara imitou-a
e pô-la rapidamente
no lixo

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