segunda-feira, 8 de outubro de 2018

[0255] Fernando Grade e o neo-dadaísmo

Fernando José da Costa Grade, nascido no Estoril em 1943, é artista plástico, editor, poeta, escritor, dinamizador cultural e crítico de arte, jornalista e actor de acção. Usa os pseudónimo e os sub-heterónimos de Abel Sabaoth e Aal Aarão. Foi um dos fundadores, em 1965, do movimento “Desintegracionista” e é o criador da "Teoria das Multidões" e das "Colagens Perversas". Foi chefe de redacção do jornal “A Nossa Terra”, director da SNBA de Lisboa, director da Associação Portuguesa de Escritores e da Associação Portuguesa de Críticos, e Vereador da Câmara Municipal de Cascais. Dirigiu a "Revista Costa do Sol" e é presidente do Comité Directivo do Movimento de Intervenção Cultural. Recebeu o Prémio A Memória Vivida do 25 de Abril (1994), o Prémio Literário Hernâni Cidade de 1997. 


PIER PAOLO PASOLINI FOI ASSASSINADO NUMA VIVENDA DO ALTO ESTORIL

Pier Paolo Pasolini foi assassinado numa vivenda
do Alto Estoril.
Jamais em desértica praia italiana
ou nos olhos de quem passa contente objecto
sexual da Via Venetto
foi aqui nesta rua que desce dos Bombeiros
para a praia da Poça da minha infância.

A casa está rodeada de relva por todos os lados
como se fora um barco de cal
uma cisterna pouco nocturna
e então chegaram os bastardos (foram muitos)
com facas
guizos sangrentos   serpentes amestradas
pela boca
todos devagar diante do espelho que
estava quebrado no meio da erva
e desferiram sobre o corpo de Pier Paolo Pasolini
uma flecha venenosa. Mataram-no a sangue frio.
Ao cair da madrugada.
Numa vivenda do Alto Estoril.

Notícias muitas correram mundo
davam-no como morto algures em Itália:
tinha sido esmigalhado por uma rapariga vestida de rapaz.
Penso que os jornais e as televisões endoideceram
de uma doença réptil como a magia dos trópicos
porque Pier Paolo Pasolini morreu e
morre ainda todos os dias aqui
na minha terra (um pouco acima do Tamariz)
numa rua que desce dos Bombeiros
para a doméstica praia da Poça.

Não se esqueçam:
ao sapo coloca-se-lhe um cigarro na boca
até rebentar.


MUITA LONGA MEMÓRIA PARA O POETA RUY BELO

“Nenhum cristão deve ser mercador”
S. Jerónimo de Santo Agostinho


Posso estar deitado ao comprido nesta cama
as unhas grossas, enormes, os dedos em concha
apontando os móveis da casa e ter a janela aberta
de par em par escancarada para o bulício dos carros
para os beijos trocados na rua rente ao candeeiro
que passam com carregos à cabeça;
poderei ter as horas todas para pensar, fumá-las, e
saúde muita, o cheiro quase infantil das godécias
os retratos de oblíquas viagens pela praia fora,
mas nenhum silencio flor ou ave doida fará esquecer a tua morte longínqua
nos antípodas (não foi em Queluz?)
e regressas assim a estas paredes de musgo bom
donde os teus versos nunca saíram, o riso que
deixavas na água, os teus versos, o alto poema:
gaivota viajada por dentro da casa
e tão dada as sossego, tão de cereja a boca que soltaste
sobre os rios, o mar saloio. E pó de pedra e ranço
nunca serás.
Chegas morto, porém, fuzilado na alma às páginas das gazetas
que pouco sabiam da tua pessoa ou sentiam, Tampouco foste do negócio
dos vates, brocados, criadices, morreste quase anónimo
mas defendido é certo pelos quarente primos que são
os poetas daqui.
Quem apenas viveu a tua morte impressa
em jornais repleto de políticos e pandeiretas
deve ter encolhido os ombros e pensado
que – se tanto sobre diziam hoje – é porque dos mortos ninguém diz mal
e a morte é uma mercadoria romântica.
Mas contigo foram outros e floridos os lenços de acenar.
Estamos todos mais pobres e
varados por balas de terra nua junto ao coração.
Quem pegará na flauta ao chão descida?.
quem tocará agora nas margens do grande rio Eufrates?

Como cigarra devastada pelas tranças
estás ainda virado para o pinhal – e cantas.
Quotidiana e de aldeias brancas a morte em que crias
católico assim também eu fora, antes do sonho noutro barco
embarcado, diverso trapézio ecuménico.
Aqui tenho as tuas balas feitas de bisa e cal
no meio de outros mortos-vivos como tu
as praias explodem a Oeste.
E de novo regressas aos jornais a barba eternamente por fazer
e o espanto viajará em muitos olhos
por antes disso não te saberem o nome: de corridas a pé ou
a cavalo, bicicletas ou bólides, não te reconhecem o rosto
como trepador dor Pirenéus, fadista de beco ou toureiro janota.
E por bastos anos serás sinaleiro da água
da ternura
homem ao centro descendo ao centro da terra
por muitos sítios. Talvez tenhas agora a alma desportiva
que sempre quiseste ter, oh adepto do grande campeão
José Maria Nicolau.

Renovados estão os poderes que possuías sobre o fogo e à sombra da tua
memória vão ser encenados outros crimes e desastres outras pombas desastradas
outros dias de silêncio mas jamais esqueceremos o vaso de gerânios que deixaste

Morreste? Ainda e sempre, hoje, pelo sítio do púbis. Eternamente estarás quedo e mudo /a ver passar o rio
o grande rio Eufrates que corre igualmente à minha porta.

E é por isso que a morte não são botas inchadas de sebo e moscas ruins ou somente /fardos de feno.

Se o Cesário Verde ainda fosse vivo, isto é,
se fosse nosso agora – iria também ao teu enterro.


RUA FERNANDO PESSOA

Vivi no Bairro dos Poetas um ano e cinco
e dois meses, mais sete dias – quantas horas de treve?
- e as ruas eram sempre pequenas, esmagadas por flores.
Havia dois homens que amolavam facas
punham chapéus-de-chuva aptos e joviais
para com eles descer à cidade do Rossio.

Um dos homens era novo e gordo;
o outro dizia ser de Sintra, quais morangos
frenéticos e tinha colado às veias da chuva.
Era o seu vinho cimentado em angústias.
Estavam combinados como a dádiva do vento ou
fungos de astros com sarna: de quinze em quinze tardes.
o primeiro homem (às quintas-feiras) e o segundo (aos sábados)
assobiavam como cântaros rachados por tesoiras.

Às portas e janelas chegavam rostos, vinham do almoço

tecidos de nêsperas, garfos ou maracotos,
olhavam para o amolador de sonhos minúsculos e sorriam.
Alvalade ainda não era a época dos números
a rua Fernando Pessoa tinha pedras por trás dos prédios
bom vinho, coelhos a crescer, leite.
Ao tempo eu gostava dos cabelos sedosos de Mathilda
fazia brindas ao seu cheiro fêmeo a invadir pomares
João tinha regressado do Egipto com
retratos de amores brejeiros; Mitchell escrevera a dizer
que o vento molhado sabia mais a frutos, isto é,
queria fazer as pazes com Rodessa;
e a Kathie e a Kathleen e o Marcos bebiam a três
licor – à noite – numa escaldada cama de feltros
era um sexo triplo e submerso, um fogoso cérebro volúvel.

Eu lia Fernando Pessoa, à minha volta cresciam as ervas rasas
tinha no sangue então o conflito de ainda não ter ido à Grécia
acreditava que os olhos não voavam, queria-os cordeiros
mas passava as noites a contar os desastres, os incêndios que
traziam sustos, toalhas sangrentas e fungos.
O tempo era, ao tempo, um toiro de Sevilha e um verme
o aroma intenso das raparigas.

O rosto à vista dentro de si muitos rostos
O mesmo acontecera com a rosa brava que
beijava os próprios monstros. Assim todos os becos
sagazes dispunham de um triturador de bolachas.
Era uma época de bailes submarinos.
As casas queimadas fascinavam. Como sei que
- mesmo agora – os livros cínicos fazem-me bem.

Foi nessa época que a lã pacífica dos
dedos de Berny caiu sobre o corpo de Rogan.
E os ingleses mais velhos não gostaram.
Porque os dedos direitos de Benny dispararam navalhas
e o coração de Rogan não era de granito.
Por muitas horas que, então, eu lesse os versos de Pessoa
os sítios não mudavam.
A Cheryl não se deixava seduzir por anéis ou retratos
O Quim odiava o Benny que exibia um carro da cor do céu.
Era tenebroso ser português em Lisboa e jovem.

Mesmo depois de ter saboreado as ilhas gregas
os cheiros do Mar Egeu invadem os meus nervos com lacraus e pólvora.

Entre mim e a Grécia houve sempre muitas facas.

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