sábado, 15 de setembro de 2018

[0113] Luiza Neto Jorge, o sabor da "Poesia 61"

Luiza Neto Jorge nasceu em Lisboa em 1939 e aí faleceu em 1989. 

Foi poeta, dramaturga e tradutora, fundou o Grupo de Teatro de Letras. 

Durante oito anos viveu em Paris. Com Gastão Cruz e outros impulsionou o movimento literário Poesia 61. 

Depois da sua morte, em 1993, foi coligida a sua obra poética, em grande parte ainda inédita.


O POEMA ENSINA A CAIR

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.


ACORDAR NA RUA DO MUNDO

madrugada, passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos
no meu quarto cai o som depois
a luz. ninguém sabe o que vai
por esse mundo. que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas. os pombos
alisam as penas, no meu quarto cai o pó.

um cano rebentou junto ao passeio.
um pombo morto foi na enxurrada
junto com as folhas dum jornal já lido.
impera o declive
um carro foi-se abaixo
portas duplas fecham
no ovo do sono a nossa gema.

sirenes e buzinas, ainda ninguém via satélite
sabe ao certo o que aconteceu, estragou-se o alarme
da joalharia, os lençóis na corda
abanam os prédios, pombos debicam

o azul dos azulejos, assoma à janela
quem acordou. o alarme não pára o sangue
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o vídeo
não gravou

e duma varanda um pingo cai
de um vaso salpicando o fato do bancário

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