Jorge Velhote, nascido no Porto em 1954, poeta e divulgador da poesia, vem definindo uma visão muito pessoal da arte poética. No seu dizer, “crê que ao olhar se devolve o trânsito da imaginação, restos e fragmentos da natureza, a proximidade dos espelhos, do abismo onde se despenha a solidão e se crava o fulgurante punhal da memória. Cada poema, cada fotografia, actualiza e deslumbra os vestígios urdidos no cenário, faz comparecer o mundo e amplifica os sinais mais nocturnos. Nesse tumulto perpassa a clausura da claridade ou das sombras, o ímpeto da água e do lume, a transformação dos segredos e dos enigmas”. Autor de ”Atrito de Gotas” (em colaboração), “Os Sinais Próximos da Certeza”, “Hermeneutical Studies”, “Os Mapas sem Fronteiras Sufocam os Lugares”, “Máquina de Relâmpagos”, “Pele”, “Narrativa da Foz Do Douro”, “Luz Plural” (em colaboração), “Coisas Mínimas & Outras Coisas” (fotografia).
UM DESTINO IMPROVÁVEL
Destinamos ao olhar um lugar secreto, uma deriva incontrolável, uma fissura que fenece, como se apagássemos a noite quando fechamos um livro, arrumamos uma gaveta ou os sapatos.
Somos nesse instante apenas uma certeza, um lugar preparando o vazio de uns passos, uma brisa fogueando o fósforo com que se acende um cigarro ou olhamos o que se impõe como a metamorfose lírica que reacende a banalidade do quotidiano.
Oculto de ti, na penumbra mais rugosa das palavras, escutas o que te resta íntimo da loucura ou da nostalgia – uma prece bordando dos mortos o seu olhar que tinge o teu como se uma teoria porventura alicerçasse a reflexão exaustiva do teu destino onde padeces diariamente como o sol que denuncia a tua cegueira onde encalhas os dedos, as foices narrativas das redomas em que encolhes os retratos como se a consciência fosse a rosa de uma mágoa ou um barco abandonando o medo.
Nessa intimidade, porosa como a água irreprimível em abandono ágil ou segredo, iludes a revolta, um parágrafo iminente que fazes comparecer sem vergonha, ágil como só as aves no seu destino definitivo – é um sentimento útil, como se a luz enlaçasse cada objecto na sua névoa ou precisão –, uma emoção doméstica, gramática de alicerces enigmáticos, imagens céleres desnudando a paisagem ou os sentimentos que disfarças como se plantasses umbrais luminosos onde irrompa a chuva ou a melancolia.
Nessa simplicidade em ruína, nessa sombra crepuscular e íntima, acendes todas as memórias, antecipas as miragens, o que sabemos estar oculto nos bolsos quando os dedos ágeis recolhem anónimas migalhas como versos interrompidos.
Enquanto houver tempo, esse lugar desamparado, descobrirás as ruínas subtis da memória, uma luz imprecisa, dúctil, um lusco-fusco inebriante como um vestido enrugado de vento, um murmúrio inaudível que perscrutas anónimo para poderes ver num segundo como o silêncio se derrama traindo o que persegues para fazeres despertar num espelho o pesadelo cúmplice de um grito.
É uma ameaça essa geografia onde todos os mortos escondem as cidades, o suor, os ossos excessivos com que exterminam outros mortos, decompõem as vísceras emparedados entre lixo e tábuas que serão pasto do fogo ancorado na tua mão que hesita entre palavras e a crueldade dos despojos da cegueira que redimes, como se cheirasse a feno ou a terra molhada, num instante para chorar, ver desabar uma árvore pela raiz, desenterrar da nudez uma cicatriz de mármore onde colar as aves fugazes da agonia, uma toalha de oxigénio para esgotar as lágrimas estridentes, ou um lençol que tudo cobra como se fosse o céu ou o deserto onde deixar as pegadas que sabes o vento afogará sem piedade.
Observas o que agoniza como um peixe numa gaveta enlouquecido inesperadamente – habitas a luz como num poema nunca a pele desmaia desabrida. O teu rosto esconde o negrume da noite, a rigorosa geometria de um cristal, a fuligem num pomar infinito como se fosses um charco onde exaltas as pedras que atiras para ver bulir a água para sempre – uma sombra onde naufragar a respiração ou desenhar uma casa apenas –, lâmina que rasga os bosques e os nenúfares donde arrancas folhas como se num caderno desenhasses um carril de luz ou pregasses uma gota de saliva, sangue e urina, uma luz em movimento lento inacabando no corpo todos os incêndios que não esgotam a água que escorre nos teus dedos e no olhar com que escavas a morte dos mortos, a paisagem acesa de ferrugem indissolúvel, moscas, o salitre da melancolia em que sustentas a devastação perpétua, a penúria do tempo, os cães que ladram em fúria vindos do fundo da alma que martelas e onde mergulhas o tanque vagaroso das canções mais inóspitas que sufocas invadido pelo carvão inesperado das sirenes insuportáveis do destino – será isto o destino? –, lodo encharcando o musgo que cobre inteiro as pedras com o fulgor de deus – mapa demoníaco onde escorrem sombras incandescentes, as pequenas coisas do amor, um balde onde alojar apenas um pé que dança?
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