segunda-feira, 10 de setembro de 2018

[0074] Ovídio Martins, uma voz contra o evasionismo


Ovídio de Sousa Martins, nascido no Mindelo, ilha de S. Vicente, em 1928 e falecido em Lisboa em 1999, é um clássico da grande poesia cabo-verdiana. Residiu em Lisboa, para onde foi cursar Direito, até 1973. Anticolonialista assumido, foi perseguido pela PIDE e exilou-se na Holanda, regressando a Cabo Verde depois da Revolução de Abril de 1974 em Portugal.

O primeiro dos poemas hoje aqui inseridos foi musicado por Fausto Bordalo Dias e faz parte do seu disco "A Preto e Branco", de 1989. A mesma canção está no disco de Né Ladeiras "Todo Este Céu", de 1997. Ver em posts seguintes ambas as interpretações.


FLAGELADOS DO VENTO-LESTE

               para Manuel Lopes, poeta e romancista patrício

Nós somos os flagelados do vento-leste!

A nosso favor
não houve campanhas de solidariedade,
não se abriram os lares para nos abrigar
e não houve braços estendidos fraternalmente
para nós!

Somos os flagelados do vento-leste!

O mar transmitiu-nos a sua perseverança,
aprendemos com o vento a bailar na desgraça,
as cabras ensinaram-nos a comer pedra
para não perecermos.

Somos os flagelados do vento-leste!

Morremos e ressuscitamos todos os anos
para desespero dos que nos impedem
a caminhada
Teimosamente caminhamos de pé,
num desafio aos deuses e aos homens,
E as estiagens já não nos metem medo,
porque descobrimos a origem das coisas
(quando pudermos!...)

Somos os flagelados do vento-leste!

Os homens esqueceram-se de nos chamar irmãos
E as vozes solidárias que temos sempre
escutado
são apenas
as vozes do mar
que nos salgou o sangue,
as vozes do vento
que nos entranhou o ritmo do equilíbrio
e as vozes das nossas montanhas
estranha e silenciosamente musicais

Somos os flagelados do vento-leste!


ANTI-EVASÃO
       
               Ao camarada poeta João Vário

Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada

Atirar-me-ei ao chão
e prenderei nas mãos convulsas
ervas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada

Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada.

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