Fernando Fitas revisita este portal e a sua presença nos honra sempre. Laureado em Portugal e Espanha, a sua voz é uma das mais originais da poesia portuguesa contemporânea, ganhando nela um lugar muito próprio. Registam-se aqui mais três poemas. (ver anterior participação de FF no IM, AQUI).
EU NÃO TE CONHECIA
À memória de Marielle Franco
Eu não te conhecia antes dessa pistola vomitar quatro balas.
Sequer terei ouvido (alguma vez) o teu nome na rádio,
nem que emprestavas vida a ruas onde o medo e a morte
espreitavam nas esquinas,
como sombras deitadas, marcando território.
Espero que me desculpes a minha ignorância.
Há coisas que nos fogem sem nos apercebermos
e só delas sabemos quando nada mais há
do que um sorriso inteiro cravado na memória
e o silvo de um disparo abrindo-nos os olhos.
Neste lado de cá do enorme oceano
não chegavam notícias dizendo o que fazias.
Apenas chegou esta,
dizendo/ que um jagunço te havia assassinado.
Enganou-se, coitado,
porque a festa da luta - invencível, perene- ,
que mora nos teus lábios,
permanece contudo no povo e na favela.
HOJE NÃO HÁ PIPOCAS
Hoje não há pipocas para adoçar palavras;
o milho não medrou por efeito da seca
e o cinema fechou à falta de fregueses.
Ia passar um filme de poetas e pobres,
mas não houve dinheiro para pagar a luz.
As latas com a película encontram-se arrestadas
para pagar a dívida de rendas atrasadas.
O fundo imobiliário que detém o imóvel diz
não ter contemplações com quem não cumpre a horas
a sua obrigação
de honrar na data exacta a letra do contrato.
Os actores desertaram famintos de inacção
e andam pelas arcadas sob o néon de bancos
reclamando salários de produções sem brilho ou glamour.
Mas para quê o brilho se os holofotes deixaram de ter préstimo numa sala às escuras
e a tela só reflecte a sombra da poeira sentada nas cadeiras?
A morte de uns e outros é sempre uma tragédia,
quando apenas se morre na mudez de uma máquina
que transmutara heróis em coisas descartáveis
travestindo vilões em donos disto tudo.
FÁTIMA, OUTRA VISÃO
Este o lugar de encobertos dizeres, o ponto cardeal
daqueles que não partem mas vencem as distâncias
e concedem ao vento a pele por onde as caminhadas
rasgam os seus caminhos, esse fio de palavras que move
(os) peregrinos a ferir-se nos pés até o olhar sangrar/sangrar o olhar.
Não sei se isso é um culto ou um estranho desígnio
que mostrando promessas exibe (a) crueldade,
ou apenas um modo de colher dividendos
de quem ébrio de litanias se arrasta de joelhos
supondo divindades.
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