quinta-feira, 30 de agosto de 2018

[0022] O humor de José Fanha

José Fanha (José Manuel Krusse Fanha Vicente), escritor de literatura infantil e poeta, guionista e dramaturgo. É arquitecto e foi jornalista e professor. Destacado declamador, já participou em milhares de sessões culturais, tem dirigido oficinas de escrita e de poesia. Autor de "Cantigas da dúvida e do perguntar" (1970), “Olho por olho” (1976), "Busca" (1977), "Cartas de marear" (1985), "O riso das aves" (1987), "Breve tratado das coisas da arte e do amor" (1995), "Eu sou português aqui" (1995), "Elogio dos peixes das pedras e dos simples" (1999), "Tempo azul" (2003), "Poemas da linha da frente: a guerra" em conjunto com José Jorge Letria(2003), "Poesia" (2012), "Francisco", com colagens de João Abel Manta (2015). A sua poesia é ágil e, em geral, humorada.

O CROCODILO

Hoje apetecia-me pôr as patas em cima do balcão
da pastelaria do O’Neill
as patas de um cão
de um gato
de um animal maior:
um crocodilo!

Um crocodilo que devorasse todas as bolas de Berlim
os éclairs
os jesuítas
e a rapariga gorda da mesa do canto
que embora de difícil digestão
também tem o seu valor
já vai no 3º ano do curso de Comunicação Social
se bem que preferisse casar com um tipo rico
e por isso já tem unhas de silicone
com estrelinhas
convém referir
prateadas na ponta.

Um crocodilo!
As patas de um crocodilo em cima do balcão da pastelaria
O crocodilo inteiro
caminhando lentamente
por cima do balcão
com o seu cheiro a selva apodrecida
e a mandíbula escancarada e pronta a ferrar!

E num instante
ZÁS
lá vai o braço do sr. Engenheiro
que tinha pedido um garoto com pressa
e ZÁS
o dedinho ao alto da senhora
que estava delicadamente
a tomar uma tisana
e ZÁS
talvez pudesse dar também uma dentada
nessa bola de queijo mole que é o mundo
a sociedade de informação
a de desinformação
o capitalismo neo-liberal
a bolsa de Nova York
e a de Tóquio
os despedimentos em massa
e os que os ordenam.

Um crocodilo com asas ou sem asas
que avance lentamente
percebendo o por dentro e o por fora de todas as
coisas
e devore apenas o por fora de quem só tem por fora
e guarde o mistério do por dentro
quer dizer
a noz da literatura,
o banho de Arquimedes
a pedra filosofal de Newton
o verso de Borges
o mistério do lado de dentro
de todas as coisas
onde a luz vagueia
procurando iluminar
a verdade imaterial de toda a grande existência.

Um crocodilo!
Um que tivesse entrado na pastelaria do O’Neill
apenas para lanchar
e deixasse um buraco negro exposto ao sol
uma zona altamente bi-polar onde a borboleta
do discurso
voasse livremente
apenas pelo prazer
de fazer acontecer um tigre chamado Jorge!

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