terça-feira, 19 de dezembro de 2023

[0779] De Nicolau Saião, um poema e um desenho de Natal


RECEITA PARA UM NATAL


Primeiro, ficar parado

durante um momento, de pé

ou sentado, numa sala ou mesmo

noutra dependência do lar.

Depois preparar

os olhos, as mãos, a memória

e outros utensílios indispensáveis. A seguir

começar a reunir

coisas, por ordem bem do interior

do coração e do pensamento:

a ternura dos avós, uma mancheia;

rostos de primos distantes, uma pitada;

sons de sinos ao longe, quanto baste;

a recordação duma rua, uns bocadinhos

um velho livro de quadradinhos

duas angústia mais tardias, alguns restos de azevias,

a lembrança de vizinhos   ainda vivos mas ausentes

e de uns já passados.

Quatro beijos de seres amados ou de parentes

um cachecol de boa lã cinzenta aos quadrados

e um pouco de azeite puro e fresco

igual ao que a mãe usava noutro tempo saudoso.

Mexe-se bem, leva-se ao forno

e fica pronto e saboroso


- mesmo que, nostálgica, se solte uma pequena lágrima.


[778] De Luís Palma Gomes, um poema de Natal



PEDIDO DE NATAL


Ouves o tempo,

cínico e claro

clepsidra de vento

perdendo a razão

porque a loucura é

e será sempre

a melhor desculpa

para quem deixou de acreditar.


Ouves o tempo,

fio que conduz

fio de cem pontas inenarráveis

serpenteando por lugares, olhares

que pareciam ter a certeza

 ou medo talvez disfarçado

de penas e asas, 

levantando em voo 

num bando de incontáveis sensações.


Seremos uma cápsula engolida por um gigante

e regurgitada depois numa galáxia distante?

Que ele nos engole é certo.

Se nos regurgita depois 

jovens e intactos

numa praia do sul,

é o nosso desejo secreto, sereno,

a primeira prenda que pedimos em cada Natal.