domingo, 31 de outubro de 2021
terça-feira, 26 de outubro de 2021
[0748] Poema de Carlota de Barros com um ano, mas ainda inédito (até hoje)
PEDRA OU SINO
NUM PENSAMENTO INOCENTE
Penso naquele inocente encontro de
Herberto Helder com a pedra pedra
a pedra verde ou azul que não era pedra
mas talvez um sino sem pensamento
no seu pensamento inocente.
Ah! Sim.
Lembrei-me do grande silêncio
da chama que a noite alimenta.
A noite lenha para a nossa
leveza humana
Ter-me-ei também encontrado
com a pedra pedra no silêncio
escaldante desta noite maravilhosa
em que a Lua Nova surge ligeira
com passos de algodão enquanto eu
beijava os meus lírios num gesto doce
de gratidão e de puro encantamento?
Será que também esbarrei na pedra
pedra estática e dura no meu caminho?
Será que também me encontrei com a pedra pedra
na pedra do tempo pedra azul ou Lua Nova silenciosa
pedra verde em jeito de sino sem pensamento nesta
noite cadente do meu pensamento inocente?
Ou será que a pedra pedra de Herberto Helder
é hoje a Lua Nova no meu pensamento azul
quase verde reflexo das árvores que povoam
o meu campo refúgio da lua nos lábios ainda
acesos do crepúsculo onde o silêncio é música?
Será a pedra pedra não menos que esta noite
escaldante em que o beijo é sonho ou o sonho é
seda na delicada floração do beijo da Lua Nova?
Poderá ser a pedra pedra sino sem pensamento
ou casualmente sombra do meu pensamento no
silêncio desta noite abrasada pelo fervor dos dedos
do sol escorrendo lume pelos campos ou pelo asfalto
onde doces folhas inocentes seixos fendas abertas
numa exaltação quase vulcânica aberta ao sonho?
Ou será sonho ou mesmo beijo da lua
nos ruídos da noite em que talvez eu tivesse o
pensamento no silêncio dos lírios a abrirem-se
ou no seu perfume errando pela sala ou
no mar rebelde que frisou o meu cabelo
e pintou os meus olhos de verde água
ou ainda no silêncio ruidoso das pedras
da vida em que se vai esbarrando com dor?
Talvez termine o poema num degrau de pedra
mais alto que o silêncio mais sublime que as
ondas silenciosas do meu pensamento
ou talvez nem o termine o deixe nos olhos da lua
que ainda sonha com beijos do sol ou o deixe
com o sonho que sonha ser o beijo da lua.
Ou quem sabe o deixe aguardando naturalmente
que alguém o termine ou então nunca o termine
mas que seja sempre beijo da lua ou sonho
desse beijo da lua espreitando os meus lírios
perfumados como nesta noite abrasada de
Lua Nova noite de pedra pedra verde ou azul
sino ou silêncio sem pensamento verde ou azul?
Carlota de Barros
Lisboa 22 de Julho de 2020
sábado, 16 de outubro de 2021
terça-feira, 5 de outubro de 2021
[0746] Glosando o poema de Ruy Belo "oh as casas, as casas, as casas", Luís Palma Gomes oferece-nos este poema matinal
OH, AS MANHÃS, AS MANHÃS, AS MANHÃS
Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs
são arpejos de chapins refletidos sobre os ribeiros,
camiões em trânsito trazendo e levando a claridade,
anseios ligeiros, quando os tempos são de invernia
As manhãs conhecem-nos nus e esfomeados
As manhãs são a esperança das noites
ou a angústia de quem se percebe vivo outra vez
Como louvam os pássaros as manhãs
enquanto se agitam as estradas tão estranhas
ao mar raso e coloquial
que entra sem rumor pela praia de Algés adentro.
Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs
tem o sabor amargo do café
que sentimos nos cantos da boca,
quando a fala trôpega sacode o ar ainda frio
que se esgueira pela fresta da janela mal fechada
São um prenúncio das histórias mal-acabadas
São o fio da navalha, limite incerto entre a paz e o inferno,
o calor e a chuva inesperada, o desejo de um bolo
que não se come há anos
Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs.