quarta-feira, 1 de maio de 2019

[0646] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (26) Nuno Rebocho, o discurso do método


Habitualmente com Nuno Rebocho "on air" às terças-feiras, IM guardou o presente poema do autor para o 1.º de Maio, saindo portanto em vez de terça à quarta (o que também fica bem...).

“Discurso do Método” representou o início de uma nova caminhada do poeta. Fica aqui um dos seus poemas indicativos, uma reflexão sobre a intimidade e o discurso.


OS SONS DA ILHA


1

aliás o movimento é tudo. é a tensão entre o som
e o seu conteúdo apesar das palavras brancas
a enrolar os dias com sorrisos e hipocrisias.
e apesar dos silêncios que são a cólera da cal sobre o corpo
é no centro do cromeleque que as tensões se sentem
porque em volta estão os despojos (os sentimentos adormecidos
pela rotina dos discursos redondos
em volta) estão as desvontades e é assim
que os neurónios se dinamitam.

o movimento é tudo: o gesto e as palavras rubras
o rubor da face e o enlace dos corpos
as suas rugas - o aquecer das fugas
no exercício dos desejos. o movimento é tudo:
naufragam os marasmos no movimento do mar.
a maravilha é torcer o mar com as mãos calejadas
e trazer na boca o travo das madrugadas
e palavras azuis para beijar as namoradas.

o movimento é tudo e tudo é movimento:
o aroma e o consentimento o ódio e o comprazimento
um avião a correr na pista
um golpe de asa um golpe de vista
um golpe uma falha a casa toda e toda a tralha.
o movimento é o cerne e o que concerne
é o contexto: o texto    o pretexto é o fogo que molda o metal
é o braço a perna é o músculo
é o agudo é o grave é o esdrúxulo.

o movimento é tudo. e assim sendo
o mar espeta as orelhas e inquieta o entusiasmo.
eu pasmo.


2

o mágico governa os objectos mais do que as palavras
e dá-lhes o secreto caminho para a estranha intimidade por dentro:
são sólidos e ausentes da gordura dos nomes.
que os nomes se colam à superfície dos objectos e
designam-nos na curiosa arbitrariedade das mentes
: o objecto cadeira não necessita a palavra cadeira:
a palavra cadeira é que precisa do objecto. é
assim a estranha intimidade por fora.

assim disserto sobre este facto de estar sentado
sobre a arbitrariedade dos sons
e aconchegado na almofada das palavras.

eu sei que a mão pesada do sentimento disfarça a ambiguidade.
mas como explicar que as coisas simples acabem por ser complexas quando as vergasta a perplexidade? deixo que a magia
(da água e do ar) penetre na intensa relação do que me envolve
e agarro as perguntas com o incómodo silêncio das tardes sábias:
o que pensa e sente um objecto se as palavras lhe são alheias? bem
eu queria ser imóvel quanto eles os objectos presentes e desculpar-me:
afinal sentir é um projecto de palavras sem a solidez dos objectos.

assim disserto sobre este facto de ficar vazio no perene
sentimento da quase eternidade sobre a rasa superfície do imóvel.


3

entender é ter asas: no templo dos nomes vários fomos donos das coisas
e do
corpo
e dos sótãos e dos vocabulários.
fomos mandatários
das casas e das asas.
no jardim das palavras
as abelhas eram aforismos
e até de cada dedo
fazíamos algarismos.

muito marchámos e murchámos
através da ponte dos séculos. muito secámos a língua na mica dos olhos
e muito desfolhámos
nas coisas os seus nomes para que os choutos fossem geeira
e fossem âncoras.
então: assim aprendemos a sabedoria do mutismo
e trocámos as palavras e truncámos os gestos
e burlámos com os gestos as palavras
(actos fossem ou impactes
sem a restrição dos dias).

temos portanto os sons: agora os sons agarrados e monossilábicos
cada som preso a cada coisa e cada coisa presa
mas nem despimos as roupas da ambiguidade. sequer atalhámos
os caminhos pelos corta-fogos de esquecer
a jeira dos volfrâmios quando cessámos de garimpar
a pulcra sintonia dos olhos
já manietados pelo ritmo.



4

estes são os sons que significam a ilha: onde os silêncios
são rocha e os pressentimentos são limos
onde recomeçamos o que já conseguimos
onde inteiros somos de tantos nos repartirmos
onde desaguamos sempre que dela partimos.

os símbolos valem o que valem: a noite
não é a morte nem o ventre da criação.
é a consequência da rotação do planeta.

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