Nicolau Saião |
Pintura de Nicolau Saião |
A MORTE NO JARDIM
Hoje os
pássaros não cantam como dantes
nem as
portas batem como antigamente
nem os
gatos, que tanto amavas
como
dantes vagueiam no lar dos homens.
Partiste
e algo
terminou, que não era
simplesmente
o teu vulto de príncipe renano
traçando a
rota primordial
ou apenas
a tua boca
sussurrando nas planuras encantadas
les hommes n’en sauront rien.
Foi aqui
que tu morreste, Max
nesta rua
portuguesa onde as crianças brincam
neste
pátio de casa provinciana a que as plantas conferem
a
dignidade e o medo
a beleza
interior de algo humilde que se evoca
foi bem
aqui
nesta
Cidade Inteira
repleta de
inocência e de amargura
neste Café
que se alonga como se quisesse devorar o espaço
neste
quarto alugado onde os amantes se encaram
como se se
vissem pela primeira vez
nesta
praia policiada pela maldição das pátrias
neste
silêncio
neste
espanto
nesta
ignomínia.
Alguém um
dia desenhará nas paredes derruídas
o coração
escondido da tua Ninfa Echo
com o ar
de quem volta de uma grande viagem
com as
mãos humildes e já serenas
sem que
ninguém lho impeça
Algum dia,
no doce recanto duma madrugada
alguém
entenderá porque sabias tu que é bem real a Vila Petrificada
e então
será possível o caminho até ao mar
e os
homens saberão finalmente
qual a
melhor mais bela delirante floresta
guarida
para os cavalos e os animais nocturnos
E que será
na penumbra das ruas desse mundo
onde
cantamos, comemos, bocejamos, padecemos
que a
alegria submersa se haverá de descobrir
paciente e
subtil como uma estrela abrindo
sobre uma
antiga casa.
Há gente que fala, dizias tu. Há gente que
fala
mas as
palavras sabem a azebre e a limalha
e a
tristeza e o remorso percorrem-nos os ombros
como um
pedaço de um qualquer metal maldito
pois a
cidade violenta devora a sua própria cauda
como se
fosse ainda existir centenas de anos.
É nas
coisas reais que morres em cada minuto.
Neste
pedaço de pão a que uns dentes ofereceram um sinal de fogo
nesta
janela aberta como se aqui tivesse sido posta para um acto teatral
neste
incrível Abril de vozes sonolentas
chamado
muitas vezes a ultrapassar o tempo
É aqui que
tu morres com as palavras por companhia
em cada
hora de desespero organizado
nas vagas
caravelas sulcando o mar oculto
para as
ilhas para os momentos para os sonhos.
Não
morreste pela razão das armas
como
essoutro teu irmão Garcia Lorca
nem te
foste pelo postigo octogonal
que
Jacques Rigaut escolheu lucidamente
partiste,
apenas partiste como um fruto demasiado maduro
como um
ovo que se quebra no minuto habitual
como uma
cama revolvida pelos espasmos da solidão
e que já
nada dará nunca mais a quem a abriu.
Por isso
Max para ti não tenho mais que um olhar longínquo
ou um
breve uivo de raiva à altura do coração
para a tua
fresca libertação
para a tua
máscara e para o teu cinzel que soube construir
e
desconstruir de seguida
todos os Napoleões do Deserto
mas mesmo
assim dói
e persiste
porque
ficámos mais sozinhos ante a solenidade e a ganância
e não mais
nos dirás que a vida reside no
segundo degrau.
Porque
quase ninguém tem a coragem de brincar
como tu a
sério dizias defronte ao teu chemin
mistérieux, debaixo
da tua eternité des mondes
nós
continuaremos com os nossos frágeis cigarros
lançando o
fumo da nossa dor revoltada de encontro às sombras
que já se
vêem surgir no tempo
do
derradeiro arrepio
como um
tremor na montanha distante
no mundo
que permaneceu
nesse teu
universo adivinhado
tantas
vezes sonhado, no plenilúnio
pintado e
escrito.
ns
in “Escrita e o seu contrário”
Pintura de Max Ernst |
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