Nascido em Tavira em 1982, é advogado, tradutor, professor de escrita e poeta, tendo obtido o Prémio Nacional de Poesia de Vila Nova de Fânzeres e o Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho de 2017. Foi cofundador da Associação Cultural Linguagem de Cálculo. Usa também o pseudónimo Sylvia Beirute.
NÃO SEI SE FALO OU SE BEBO
Não sei se falo ou se bebo,
sou uma porta marítima sobre a matéria.
Esvoaço em novas águas e prolongo o improviso
das imagens que imitam.
Não tenho mitologias no monólogo e no medo, ergo-me
como memória que destrói uma outra,
a minha infinidade experimenta a emoção antes de acabada.
Como uma mortalha em repouso no peito,
não conheço o meu mistério, não vigio o meu abandono,
sinto uma flor flutuando nas ilhas do meu ar,
estou entre a solidão e a cegueira.
Quero conhecer os peixes da alma, repercutir as cores,
não sou um sussurro de horas nem um céu que sangra.
Sou aquilo que me ocorre a cada inocência.
SINÓNIMOS NUM IDIOMA DIFERENTE
Sinónimos num idioma diferente,
nós que carregamos estes filhos com a linguagem da luz,
que corremos com uma canção de Outono,
que varremos o nosso túmulo. Durante anos
conjugámos a meditação com os vícios do quintal, sussurrando
o nome das aves na língua estelar de todos os segredos,
recordámos selectivamente os dias de neve durante a feira,
o avô e os tios e as mãos com cheiro a tamarindo,
as folhas dobradas com uma delicadeza jovem. Porém,
dizíamos que não nos lembrávamos de nada
e qualquer coisa era então um facto e uma lenda,
uma camada de terra por cima de uma nova distância.
Na praça da nossa cidade imaginária
éramos pré-palavras e pré-silêncio,
éramos de manhãzinha e um pouco antes da nossa morte:
um prado verdíssimo, uma génese
que nos ocorria na borda do espírito
ou então na pele de cada criança que nascia de nós.
O nosso sonho era na realidade
ser como aquelas pessoas que se lembram de tudo.
QUERO IR ONDE A PROMESSA QUEBROU
Quero ir onde a promessa quebrou,
ao momento em que as mãos se apagaram.
Foi breve o acordar na lembrança de outro corpo,
o regresso do subúrbio da vida
desviou o coração para a janela etérea
onde inventarás uma nova derrota, uma bela e simples derrota,
onde não existirá um sacrifício, uma fuga de vidro.
E eu falo contigo agora,
agora que o filme te cobre os olhos, agora
que o âmago afunda no instinto das pequenas coisas, agora
que desenho os materiais que resistem
à tua habituação cintilante e eterna.
Um dia li a tua mão, escapando-se-me o corpo,
cresci nessa imagem de astros, suspendi
os meus recursos de espectador,
falhei nas fendas da cabeça. E hoje
volto ao primeiro momento onde a promessa quebrou,
ao fulgor do primeiro exercício inaugural
da diferença entre o frio e o quente,
onde o vento corta as ruas
e os pássaros cantam o teu nome.
Tiago Nené é um poeta da nova geração que, curiosamente, já vinha acompanhando. Em boa-hora o "trouxeram" para esta espaço - aqui estão os melhores poetas de língua portuguesa. Parabéns pelo projecto, caro amigo Nuno Rebocho!
ResponderEliminarCorrecção: o Tiago ganhou o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho e não "Maria Antónia Vaz de Carvalho". Convém corrigir. Excelente poeta, de resto.
ResponderEliminarMuito obrigado pela correcção mas quando voltar (o que nos dará muito prazer) não venha como anónimo (veja a indicação ali na coluna ao lado). Aqui, todos temos nome (ou pseudónimo).
ResponderEliminarUm abraço,
Ibn Mucana