segunda-feira, 29 de outubro de 2018

[0344] José Luís Hopffer Almada, o longo fôlego da poesia cabo-verdiana


José Luís Hopffer Almada nasceu em Pombal (Santa Catarina de Santiago, Cabo Verde) em 1960. Usa também os nomes literários de Nzé di Santy Águ, Alfa Dofer Catarino e Erasmo Cabral de Almada. Formado em Leipzig, reside em Lisboa. É poeta, escritor, ensaísta, crítico literário, e animador cultural. Foi director do Gabinete de Assuntos Jurídicos do Governo da Praia, director da revista “Fragmentos”, co-fundador da Spleen-Edições, dirigente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos e coordenador cultural da Associação Caboverdeana de Lisboa


POEMAS DA CHUVA

I
Os meus horizontes são fugazes
porque do arco-íris construídos
do escarlate e do azul
lilases se extinguindo
sob os céus da Cidade Velha

Também o vulto de Cristo
crucificado
entre a nudez da palavra
e a inanição da ribeira

II 
a palavra.
a morte à cabeceira do sonho:
santiago ou nho nacho

oh! o insondável martírio
do verbo
entre as ervas das ribeiras

III
A bruma
húmida e só
cobre o dia

Um relâmpago
risca rápido
o meu coração

Uma ribeira
corre em catarata
na minha alma

A chuva cai
desvairada
sobre a apodrecida espiga
da minha boca

IV
A hidropisia da cidade
cobriu-se de fuligem

É agora a idade
dos grilos e de outros insectos
hílares como cítaras na noite

                                                               
São deveras memoráveis
estes tempos setembrinos

A chuva
promíscua
dorme
com os políticos
um sono sem pesadelos

VI
Os vegetais
como as éguas
esganiçam
com as primeiras águas

VII
Recolhem-se as baga-bagas
às luzes da noite

Encolhemo-nos nós
mais os gafanhotos
na sombra dos dias


ASSOMADA NOCTURNA

          À Vila que me viu crescer
          Aos meninos com quem cresci

Lembras-te, Digho
Das noites longas de Assomada
Feitas Far-West
E dos rios de fodjadas
Sob os nossos pés ritmando
de crianças
em loucas correrias verdes?

Todos nós éramos índios
Negros brancos e mulatos
Todos éramos pele-vermelhas
De escalpes crioulos

Lembras-te, Tchikosa
Das noites longas de assomada
Das varandas debruçadas sobre Assomada
E dos pardieiros feitos castelos
Riba Kontra Baxu Kutelu Kontra Somada
Nas noites longas de Assomada?

Todos nós éramos
Nhagar de coração
Plenos de Natal
Plenos de Assomada

Lembras-te, Djinhu
Dos bolos do Lito
Dos bolos da Miséria
Nas ruas feitas praias
E dos nossos corpos piratas estendidos
Nas noites longas de Assomada?

Todos nós éramos destinos de pés descalços
Plantas dos pés do Destino
Folhas podres do Destino

Lembras-te, Manú
Do corpo longo dos karapatis floridos
Do corpo longo das canções de crepúsculo
Do redemoinho de vento e do diabo
Nos campinhos de Achada Riba?

Todos nós éramos bolas velozes
Circulares de beleza
Rodopiando faca aos infernos

Todos éramos alegres espectros
Ardendo vegetalmente ante o mistério das plantas

Ai noites de Assomada
do longínquo rumor dos poilões
e da branca mensagem envolvendo
o voo das garças e dos milhafres
sobre Santiago de Caboverde e o rude verde das lemba-lembas

Ai noites de Assomada
da densa nocturnidade
velejando no vogar da memória
dos vermelhos rochedos
insertos
e Cruz dos Picos

Ai noites de Assomada
da ventania e da amnésia
erigidas sobre os olhares
como monumentos
à miséria

Lembras-te, Calú
das piscinas pútridas de vermes
onde íamos lavar
o olor das tristezas
e o odor do moribundo vento
doudo de dor
nas noites longas de Assomada?

Ai noites de Assomada
de adivinhas e presságios
inaudíveis
na noite de vivos guerreiros
de lobos e raposas imaginários
de polícias e ladrões
em acrobacias
de braços pernas
e pedras baças
esbracejando
lívidas

Ai noites de Assomada
Do suor escorrendo sob a fonte das estórias
Do medo dos pálidos deuses decapitados
Nas noites longas de Assomada

Lembras-te, Norberto
das vozes áfonas
loucamente  áfonas
sob os auscultadores do silêncio
sobre o corpo afómico
das buganvílhas de lábios vermelhos
nascendo
nas noites longas de Assomada?

Todos nós éramos pedras sentadas
sondando os destinos deste nosso Destino
destinos inertes destinos pétreos

Todos éramos almas de cinzas
e prenúncios de espumas
carregando as sombras da noite
a amargura da fome
nos cabelos crespos
e no cerne do coração

Todos éramos pesadelos de maremotos
e sonhos de Encantadas
nos regaços de Senhora-Mãe
prendendo as cheias
prendendo o céu
com o salitre da alma
com  as mãos estendidas
sobre o mar cizento
e as noites longas de Assomada

Lembras-te, Kuskus
das lanternas
noites sem lua
das lanternas
noites sem fôlego
das lanternas
nos rumores dos coqueiros
gemendo a música
das viúvas
no eco de Assomada?

Noites de Assomada
Noites deslizando
nas canções de Djungu longínquo
na superfície
nos lábios
das nossas vidas
Noites tropeçando
Nas armadilhas da Noite

Noites de olhos vendados
Noites de amor
Noites de desespero de tanta Noite
Noites nos ramos das velhas lemba-lembas
Noites na árvore saheliana
no nervo saheliano
Na frescura-nervo
De outros hemisférios

Pedras várias Suores vários
no breu de Gil-Bispo
em Santiago
Noites em marcha
durante a Noite infalivelmente violada
orgasmo de pés orgasmo de violas
orgasmo no ritmo no grito da mulher

viúva de risos viúvos da alegria
viúva dos caminhos
viúvos de caminhantes
da noite viúva
na noite solitária do cemitério dos prazeres
Noite espantada
Na mudez das vozes paradas
Proscritas perscrutando mais além

Noites horizontalmente esticadas
no silêncio dos castiçais
de pavio enorme
multiplicando
as explosões de luz

Noite clara
Noite visível n madrugada
No canto alegre do galo
Estridente
Ridente
De repente em manhãs verdes

Lembras-te,  Benny irmão
Lembram-se, mosinhus
lembram-se, ainda
das Noites de assomada
de Assomada

Noites longas
E sua nocturna e diária
Esperança
No cantar explosivo
- explosão de sóis –
e nas esporas guerreiramente
diurnas
do Galo di nha Somada?

Lembras-te ainda, Dhigo?

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