domingo, 21 de outubro de 2018

[0308] Jaime Rocha e a poesia circular

De seu verdadeiro nome Rui Ferreira de Sousa (também usa o pseudónimo Sousa Fernando) nasceu na Nazaré em 1949. 

Poeta, escritor e dramaturgo, recebeu o Grande Prémio do Teatro da APE de 1998 e o Prémio Eixo Atlântico de Textos Dramáticos de 1998, o Grande Prémio do Teatro da SPA de 2004, o Prémio APE de Teatro de 1998 e o Prémio de Poesia do PEN Clube Português de 2011. Esteve exilado em França e regressou a Portugal depois da Revolução de Abril de 1974. 


SEM TÍTULO

A mulher mostra-se na luz, entre a folhagem.
A cor dos seus cabelos está intacta. Ela tece
um caminho para o homem, mas as mãos dele
colaram-se ao cimento, os seus olhos pararam
no tempo. Todo o seu corpo se assemelha agora
a uma árvore acorrentada pelas heras onde não
entra a música, nem o tempo que separa os dias.
As ondas sustiveram o movimento em direcção
à praia, regressando ao outro lado do horizonte.
As nuvens caíram. As aves perderam as asas.
Tudo, até os cães, desapareceu na escuridão.
Apenas umas pétalas esvoaçaram ao acaso,
seguindo o rasto dos morcegos, num último
torpor, numa vergonha.


VISÃO DEZASSEIS

Deixando nele marcas como se estivesse dentro
de um círculo de fogo. Ou como um assassino
emparedado na cal a quem lançassem musgo
até à morte. Há ali um espaço solto, o sítio onde
os pássaros devoram os peixes. E uma zona escura
com um manto redondo tapando a luz, uma espécie
de cegueira em cujo centro existe um castanheiro
e uma caixa vazia. Um papel voa, desliza junto
a um muro e é daí que a música se espalha presa a
um fio de cobre. É nesse momento que a imagem
dela se forma e se despedaça. O seu corpo
é agora o vento.


POEMA

De novo o corpo dela sobressai
no meio das rochas e, mais tarde,
ao fundo da praia, o seu vulto
assemelha-se a uma árvore nua.

Sou eu que caminho para ti,
diz a mulher.

E a sua sombra parece agora uma
outra figura, um pedaço de barro
caído ao chão, nessa fotografia
comida pelo tempo

um tempo colado à árvore onde
o cão se enrosca como se ali estivesse
estado sempre um barco à espera
das ondas pequenas.

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