José Egito de Oliveira Gonçalves nasceu em Matosinhos em 1920 e faleceu no Porto em 2001. Agente de seguros, editor, divulgador cultural, poeta, e tradutor, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov de 1985, Grande Prémio de Poesia da APE de 1995, o Prémio do PEN Clube Português também de 1995 e o Prémio Seiva da Literatura de 1998. Foi director das revistas “A Serpente”, “Arvore”, “Notícias do Bloqueio” e “Limiar”. Destacado anti-salazarista, integrou os movimentos de oposição democrática, dirigiu o Teatro Experimental do Porto, o Cine Clube do Porto e a Cooperativa Árvore
NOTÍCIAS DO BLOQUEIO
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.
Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se
SÓ O AMOR ME INTERESSA
Nesta fase em que só o amor me interessa
o amor de quem quer que seja
do que quer que seja
o amor de um pequeno objecto
o amor dos teus olhos
o amor da liberdade
o estar à janela amando o trajecto voado
das pombas na tarde calma
nesta fase em que o amor é a música de rádio
que atravessa os quintais
e a criança que corre para casa
com um pão debaixo do braço
nesta fase em que o amor é não ler os jornais
podes vir podes vir em qualquer caravela
ou numa nuvem ou a pé pelas ruas
- aqui está uma janela acolá voam as pombas -
podes vir e sentar-te a falar com as pálpebras
pôr a mão sob o rosto e encher-te de luz
porque o amor meu amor é este equilíbrio
esta serenidade de coração e árvores
PANFLETO CONTRA O PANFLETO
(sob a forma de conselhos a um jovem poeta)
Se uma imagem te surge no lance de um poema
usa-a para o amor – jamais para a política.
Há sempre a pôr em verso duas coxas;
há sempre um coito, real ou imaginado,
com que esquives armadilhas panfletárias.
Os campos de concentração, as guerras,
os estados de angústia, não abundam
a arte em que propões engrandecer-te.
Fala do teu exílio, da infância perdida,
do castelo em que vives após o escritório.
Não te é vedado o rumo das flores, mas sempre
longe da campa de inúteis fuzilados.
Desabrocha-as no orvalho. Elas servem
para iluminar o quarto… aquele… tu sabes!
Se recorres às rosas faze que sejam branca
se elimina as papoilas por motivo igual.
Não despistes a caneta em perigos inglórios:
os caçadores de símbolos
são graves e desconfiados.
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