Nuno Rebocho leva longos anos de sobrevivência. Foi quase tudo na vida: estudante, pastor de ovelhas, escriturário, tradutor, preso político, jornalista, radialista, professor, assessor, adjunto de Governos, ladrão, poeta e escritor. Só pederasta, não. É Cidadão Honorário de Cidade Velha e assessor lusófono da Korsang di Melaka.
Para meu filho Ernesto
Logo que ouvirdes o som das trombetas sabereis: absalão
já não mora aqui. Ergueu pendão na montanha
e é rei da sua tribo. Absalão ergueu a mão a seu pai
e na quentura do sangue cumpriu a lei da manada
- que macho jovem derrube
o velho, que o novo se sobreponha.
Assim fizeram a lei. Cumpra-se. E que o rei velho se defenda
a si e ao palácio e defenda o seu exército
quando a trombeta soar. E trema porque
chegou a hora de o seu filho
lhe arrebatar choros e vida.
“Meu filho Absalão”, o rei chora.
Logo que ouvirdes a trombeta perguntareis: de que cidade
és tu? E tu serás a cidade da revolta.
E subirás à montanha para brandir contra teu pai
o mando da novidade. E o rei há-de chorar o luto
dos elos que se perdem. E tu dirás:
“velho, a tribo te recusa. Tremem-te as mãos.“
A corte dos jovens insensata-te. A nova tribo está pronta
para o combate. Sabemos as armas e sabemos
o sangue e sabemos as feridas,
mesmo que não conheças as lágrimas
que são salitre no interior
das armaduras ou o fel que as oleiam.
Logo que ouvirdes a trombeta direis: “ está triste o rei”.
A ronha da velhice defende-o mais
que o manto da dignidade. Tremem-lhe as mãos
quando a batalha se estende no território,
pois que ama os que odeiam e odeia
os que o amam. “Absalão, meu filho:
as roturas são legítimas. Dei-te o gibão e o gládio,
dei-te o pão e o ressentimento.
Traí-me porque cresceste e, crescendo,
tiveste fome do teu momento.
Absalão, meu filho Absalão,
dei-te o gibão e o gládio”. O combate é preciso
para que a tribo saiba da destreza.
Para que a tribo velha se deslastre.
E logo que ouvirdes a trombeta, vireis à tenda do rei.
E trareis as armas
e trareis a audácia da sobrevivência:
nós, os velhos, lutaremos para que
não soçobre a velhice. Lutaremos
contra os filhos como lutámos
contra os pais. Este é o terreiro que construímos
e esta a virtude que conquistámos,
ó guerreiros do tempo. Ou morramos
com honra sob o gládio dos descendentes.
Eis porque chora o rei.
Logo que ouvirdes a trombeta sabereis que os campos
estão dispostos: grupo contra grupo,
tempo contra tempo. Iremos trôpegos
ao âmago da batalha, de rastos ou mancos,
cegos ou feridos, surdos ou meigos.
Combateremos. E david dirá aos seus:
“poupem absalão, poupem absalão”.
Todavia, os ramos dos carvalhos
desconhecem os enredos e as zagaias
cumprem o seu caminho. Chorou david
a morte de absalão e choraria
a vitória de seu filho.
E o rei fugiu da sua mágoa
e encheu de confusão as suas gentes.
E encheu de luto a sua plebe. Porque
dizia david: “tu foste o meu osso e foste
a minha carne. Foste o mar
para lá do mar que maus olhos viram.
Cumprem-se as gerações e sagram-se
as revoltas. Absalão meu filho.”
Logo que as trombetas soaram, david
falou ao coração dos que o seguiam;
“quem ergue a mão contra quem? a lei
do mais forte é a lei das tribos.
Choro porque venci e a lei me derrotou”.
Esta é a história de quando o rei chorou
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