José Vieira Calado nasceu em Lagos em 1938. Estudou em França e em Londres, professor, astrónomo, poeta e artista plástico, divulgador e animador cultural, tem vasta obra publicada.
SETEMBRO
A devastação
do chão devagar bebendo a seiva imperturbável
onde a cinza refeita dos séculos reacende
o resplendor das manhãs, nas árvores macilentas,
com o seu bafo de menina que vai morrer.
Por ele se redime
o cardume das aves migratórias
rumo ao sul dos sóis inumeráveis
perdido que foi do estio, o agosto ardente,
a terra descalça, seca,
nas ambições do trigo.
Mês onde o leão a virgem devora lentamente
com o seu rosto de ervas
amarelas da tarde macerada.
Por ele se esvai o brilho do riacho
às portas do mar correndo,
de tão longo augúrio o amor desfeito.
Mês onda a pedra avulta perene
o esplendor dum réptil
e o réptil reganha a cor a condição
da pedra.
Setembro é o grande mês dos fogos
primordiais,
tardes que se alongam em vozes frias
com a exactidão precisa dum alçapão
e um tumulto de folhas secas roça
o dorso incerto do valado
grisalho, de aranhas agonizantes voando
em teias de pó no ar incerto
ou ao mar do vento desabrido e sonolento.
Por aqui passam os últimos enleios
do despertar
a frágil representação da cena das espigas
brisas cravadas de papoilas,
sinfonias de luzes,
enquanto os grandes espaços se enchem
do último voltear dum insecto doido.
na secura, na vertigem inquieta
do fim do dia
inquieto pelas chuvas anunciadas.
Setembro é fogo do fogo.
O princípio da cinza,
o princípio do princípio.
UM FIO DE BÚZIOS
Um menino trazia um fio de búzios
na concha da minha mão.
Era criança,
mais jovem do que eu julgava
ou imaginava ser
ou ver
no azul profundo os tons ocre e sépia
da falésia
que caía sobre o mar.
Era o tempo das nêsperas e das amoras
que ainda brilham
nos meus olhos.
Mas era já o tempo das ondas lavrando
a areia, gaivotas estridentes
clamando contra o vendaval.
E o menino nada sabia do vento áspero
da montanha
nem da rigorosa fixidez
do pão do condenado.
Era apenas uma criança ainda jovem
que procurava búzios na praia
junto ao mar
no azul profundo do céu
que imaginava
na cor das nêsperas e das amoras
que ainda hoje animam
os meus olhos.
POEMA DRAMÁTICO
Dei por mim indo por uma rua encurralada
num muro branco com portais encimados
por brasões, armas e arabescos, sem janelas,
sem sinais de gente.
Subi para ver o interior que era um quintal
que parecia cheio de túmulos com sepulturas cinzentas
mas depois percebi que eram cadeiras de mármore
em forma de faunos esfinges e ninfas
num jardim de laranjeiras loureiros e oliveiras.
Entrei por uma nesga
dei com uma casa de porta aberta
e logo vi uma linda moça deitada
enrolada em folhos brancos de brancos lençóis
que me sorriu persistentemente.
Mas não era ela que eu procurava.
O que eu procurava era uma mulher que nunca conheci
e que vira descer até junto à praia
por um carreiro estreito,
como o beco duma porta, para sempre fechada.
Acordei.
A mulher já lá não estava,
ou nunca existira?
Jamais o saberei.
Como jamais saberei quem era aquela menina formosa
entre os folhos duma cama
que me sorria persistentemente
deitada entre ninfas e faunos
num jardim de loureiros laranjeiras e oliveiras.
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