segunda-feira, 17 de setembro de 2018

[0131] Ronaldo Cagiano, a nova poesia brasileira


Ronaldo Cagiano Barbosa, nasceu em Cataguases, Minas Gerais, em 1961, viveu 28 anos em Brasília e 10 em São Paulo e há dois mudou-se para Portugal, onde vive em São Pedro do Estoril. Poeta e contista, é uma das vozes da moderna poesia do Brasil. Foi Prémio Ignácio de Loyola Brandão de 1996, Prémio Bolsa Brasília de Produção Literária de 2001 e Prémio Jabuti em 2016.    


O BARBEIRO

De suas hábeis mãos
ele interroga as faces úmidas

no bailar da lâmina
desbasta o jardim de pelos
corrige
as voçorocas da pele.

De quantas faces
é construída a sua vida?

O salão
mais que a câmara
de seu claro ofício
é templo onde reverberam
histórias da cidade
confessionário laico
de dores que não se estancam
como as feridas
que habilidosamente
ele soube drenar
no afagar da toalha
                         com seu ácido batismo do álcool.

Ele ouve a cidade
e não pode dizer nada
além dos olhos que indagam
almas perdidas em sua cadeira
trono de reis desnudos

Bigodes, costeletas, o fio resistente
no escuro das narinas
& o solene escanhoar que se repete
no pressuroso balé de
tesouras
pentes
navalhas
                & espumas

ele emoldura tanto desassossego

artesanato de mãos
que nunca se fatigam
nem enferrujam:
máquina de vincar rostos
tão despidos de outros
encantos.


POEMA EM LINHA TORTA

para Leonardo Garet

Ainda tenho medo
do chapéu de meu avô
(mas eu nunca tive avô)
de suas orelhas de abano
e seu silêncio antigo como o tempo
(feito o silêncio de seu filho)

Porém
a fumaça de seus cigarros de palha
continuam
atravessando

a sala
o quintal
a vida

interditando meus olhos
escurecendo minhas andanças

essa fuligem eterna impregnando tudo
essa dor itinerante
por saber impossível
(todavia necessária)
a utopia

Somos inquilinos do desassossego
e nessa manhã opaca
e fria
a sisudez da paisagem
esconde tantos mistérios

A janela da velha casa
revela segredos incontidos
enquanto capta o acelerado passo de um casal
em seu footing burocrático
de todos os dias

O mundo lá fora
é vício e desordem
há urgências
palavras de ordem
              do tempo presente
              da tecnologia presente
              das competições presentes

e a Ilha de Manhattan continua intacta
queremos implodi-la com as dinamites das minas de Itabira
mas há um Atlântico a nos fatigar

Em mim
permanece uma constelação
de vazios
um mapa de varizes

a vida e seus móveis e utensílios
não parecem o que são

é preciso vivê-la
com uma faca penetrando a maçã
e o olhar desconfiando da Cruz do Calvário

De tantas entranhas
o que vamos reconhecer:
sabores ou feridas?

A matemática precária
de tantos amores
abriu uma trincheira
construiu desertos
no vazio e no silêncio
das horas mortas

trouxe a sólida
imprecisão das coisas

Anfíbia e andarilha,
a alma nutre-se do que
é migalha ou espanto

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