domingo, 16 de setembro de 2018

[0123] José Luís Mendonça, revisitado


Uma das vozes mais significantes da poesia angolana contemporânea, José Luís Mendonça, director do jornal "Cultura de Luanda", revisita este portal, o que nos honra.


PRIVATIZARAM OS MONUMENTOS


Privatizaram os monumentos.
Privatizaram as fábricas.
Um dia privatizaram o lixo.

Privatizaram o inevitável deus do silêncio.

Privatizaram o sonho.
Privatizaram a própria morte
nos jazigos do Alto das Cruzes.

Privatizaram o pão
privatizaram as libelinhas
que bailavam na borda branca do Kwanza.

Privatizaram a passada do semba
tomaram conta de tudo
e o povo só dança o Entrudo.

Privatizaram as catanas do 4 de Fevereiro.
Privatizaram a mão invisível do Estado
e o Estado ficou sozinho com
a mentira bruta
e a esquizofrénica e desmedida
medula da prepotência.

Privatizaram o erário e os canários
que cantavam nas janelas da alma
e agora só sabemos que o amor
anda fugido no exílio.

Privatizaram as estantes do sol na Cidade Alta
privatizaram o mar, o céu e as estrelas

e o povo angolano entrou
na escuridão mercadológica
a morder os frutos da zunga
e a fugir porrada da polícia
com uma mão á frente e outra
atrás do sonho que privatizaram.


O POVO É FEITO DE BARRO

O povo é feito de barro
de pouca coisa na mão
do acontecimento tão triste
de ser ele quem paga a factura
das guerras que os líderes decretam.

O povo é feito da planta
mais fina que cresce no rio
um luando para dormir
três pedras para cozinhar
a sombra amena que desce
da palmeira de dendém.

O povo é o próprio capim
que os elefantes pisoteiam
e comem até arrotar.

Nosso povo era ferreiro
agora nem faca forjamos
a globalização vende tudo
pra quê deixar de comprar
se temos os bolsos bem gordos
com ramas de ouro negro?


ENTRE AS DUNAS DA CIDADE

leve mulher vapor de água colibri suspenso
no céu da minha boca desde quando
beijas assim a flor selvagem do destino?

lava afiada pela mão de Deus
o meteorito azul das tuas ancas
rasga o meu peito entre lume e coração

essa dor dói como animal extinto
quando Deus quer apaziguá-la eu não consinto
te doer é rima de poema pressentido

mulher de areia, quem me dera ser vento
voar baixinho e levantar a tua saia
para arder entre as dunas da cidade


DOCE MULHER

Doce mulher
frágil cana de açúcar
a tua voz limpa as areias do meu rosto
com os seus joelhos verdes
na matriz da chuva:
desces de salto alto
e meias de vidro a memória da minha mão
e cais refinada
no meu café da manhã.

Levanto os olhos da chávena e te chamo meio-dia
com a língua ferida pela taça
solene deste encontro.

Maiombe de luz, nome de lume imponente
queimas os olhos do poema
sobre esta mesa onde partimos
o pão do nosso amor até sermos
madeiras do mesmo grito
e pegadas do mesmo lodo.

Doce mulher, a tua voz
tinge de um mar longínquo
o silêncio da varanda
e os teus olhos assinalam
a fragmentação dos rios
entre as lâminas do sem-tempo
quando os dedos molhados da chuva que findou
desenham o teu rosto
dentro da chávena vazia de café, doce mulher
frágil cana de açúcar.


FLAGRANTE DELITO

Há signos de água incandescente no espaço
onde teus flancos ardem ó ave tatuada
na mão do silêncio  A têxtil
maresia de seres  A misteriosa namíbia do teu riso
O fragrante delito do teu corpo
Os centauros de ternura que perseguem
teu voo de lume coração e água
Tudo o que em ti respira e o dia não conhece
sobre esta árvore branca escuta o meu quissanje.


NAS COLINAS

Sobre o teu coração meu coração
poisa cigarras de fogo e vai
dizendo em que frutos
a tua casa é mais ácida
ou como a noite é um bagre enrolado
no fundo da tua constelação matinal.
Chove lá fora no escritório vazio
dos teus sovacos é tempo de colher
o esterco da lua nas colinas.

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