sexta-feira, 14 de setembro de 2018

[0103] A poesia de Ana Mafalda Leite


Poeta, docente e ensaísta luso-moçambicana: Nascida em Portugal (Aveiro, 1956), viajou muito nova para Moçambique, onde cresceu e estudou. Autora de, entre outros, “Em Sombra Acesa”, “Canções de Alba” e “Mariscando Luas”. Recebeu em 2015 o Prémio Femina Lusofonia da Literatura.


CAIXINHA DE MÚSICA

impregno-me em ti como um perfume
como quem veste a pele de odores ou a alma de
cetins
quero que me enlaces ou me enfaixes de muitos
laços
abraços fitas ou fios transparentes

em celofane bilhando uma prenda
uma menina te traz vestida de lumes
incandescendo incandescente
te quer embrulhada em véus de seda e brocado

encantada a serpente a flauta o mago
senhor toca
e quando me toca
o corpo eu abro

a caixinha de música
dentro
com bailarina que dança


JARDIM DE MÉNARA

e devagar fomos chegando pelas ruas e múltiplas portas da cidade cor rosavelho
aromatizada de especiarias de incensos e véus inesperados
ao longe enquadrando o imenso jardim de oliveiras em verde musgo e manso as imensas montanhas do alto atlas cobertas de neve irrompem como por magia
no calor intenso em que olhamos a neve longe um lago se espalha longo tranquilo lento depois um pavilhão misterioso com tecto verde em forma de pirâmide aberturas em arcos pousados se abre para as cordilheiras de onde por labirintos subterrâneos vem a água
aqui em sossego alagoada
dizes-me que o sol queima. É verdade, tanto como aquela neve mais atrás
escondemo-nos sob a sombra das oliveiras e a sombra escalda ainda
aquele pavilhão seria o lugar perfeito
para nos teus lábios a água escorrer de desejo.
Fecho os olhos, em que lugar mágico caminha a sede satisfeita o calor da neve ao sol a tranquilidade dos espelhos de água reflectindo o encantamento de uma presença total?
Será que deus passeia por aqui ao final da tarde? olhando o fogo do sol na brancura alta das cordilheiras em radiosa brancura?
Minha alma estremece e dou-te a mão. Parece que encontrei um caminho
Uma brisa mínima sopra e as oliveiras gemem de prazer …toco os teus olhos e vejo um oásis lá dentro lá longe
à nossa frente
e nele tu e eu olhando estes jardins que nos olham este sereno lago que nos espelha e devolve
ao lugar em que a neve se iguala ao calor mais que perfeito.

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