segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

[0529] Viva 2019, com Ibn Mucana e, claro, poesia!...

[0528] Eduardo Quina, professor de poesia


Nascido em Bragança embora se considere madeirense (reside no Funchal), Eduardo Quina é professor de Filosofia e poeta.


REGRESSO A CASA 
(A PROPÓSITO DE ANDORINHAS)
                          para o Diogo Vaz Pinto

na tua estória havia andorinhas. nesta
há andorinhas e outros pássaros mortos
às mãos impunes da minha infância.

neste terra construí primariamente
o princípio de toda a solidão - talvez seja essa
a mais curta distância entre duas pessoas.

uma residência de estudantes e um regime
militar: escola, comer, estudar, dormir.
foi este o ritual de passagem para a adolescência.
(agora só a memória dos que aí habitaram).

depois havia as histórias, não só de pássaros, mas
de cerejas, maçãs e outros roubos menores (onde por vezes
éramos corridos a tiros de lapada).

o jardim da vila e a perseguição sempre inconsequente
do seu fiel jardineiro. jardim que teimávamos
em violentar através de jogos de futebol
e outros projectos de destruição.

no espaço que hoje, ironicamente, se apelida
de casa da cultura, alguns procuravam, longe do mundo,
a construção inocente de um cancro através dos
primeiros cigarros.

depois havia a descoberta do princípio freudiano
do prazer.

e assim vivia num jogo de irrealidades, onde de casa.

da escola? apenas o esquecimento da memória
e as mãos de inverno da professora de português
e entrarem-nos pelo pescoço abaixo:
era o princípio do castigo.


SEM TÍTULO

de manhã a língua, ainda entorpecida,
solta os primeiros equívocos. sentas-te, porque
o corpo ainda estremunhado não aguenta de pé.
sobre a mesa, desenhados com perfeição, pequenos
círculos de garrafa. destroços do massacre da noite.
não tens respostas porque a memória se despenhou
dentro do álcool e dentro da noite.
a morte ou a vida, ambas tragédias inexplicáveis,
atormentam-te as palavras no espaço oco da boca.

voltas a deitar-te porque a realidade
é uma coisa estranha e não sabes como explicá-la.
viras a cabeça e o resto do corpo
e a música escurece o quarto: estás pronta
para mais um desassossego.


SEM TÍTULO

nenhuma palavra que possamos dizer nos salva.
definhamos dentro do nosso próprio vazio
e temos que obedecer à noite por nós traçada.

à hora do costume no lugar do costume
encontramo-nos para discutir questões quotidianas.

mendigamos uns copos para enganar a suposta dor:
afinal somos poetas.

sofres a pertença
a uma geração de merda.

somos os copos que vão preenchendo a mesa,
um lugar de eterno vazio:
cães à espera da morte.

não uma morte física - isso seria demasiado fácil -
mas uma morte metafísica
no poema
onde definhamos entre palavras e rumores de opressão.

domingo, 30 de dezembro de 2018

[0527] Eduardo Guerra Carneiro, a poesia quotinocturna



Nasceu em Chaves em 1942 e faleceu em Lisboa em 2004. Jornalista, escritor, cronista, tradutor, argumentista e poeta, cofundador da revista “Setentrião”, cujo movimento integrou. Foi ainda cooperante na Guiné-Bissau.


AUTO-RETRATO

Quantas horas não choras a pensar
em ti - quando ando, desando,
neste viver sem mim.
Quantos anos sem tino. De mim
este cantar desencantado - assim.
Embora os dias me afastem já de ti
procuro saber do teu espaço,
nas casas brancas onde o azul desmaia. Sinal
de outro tempo em que ainda rias,
espaço meu. Afinal alteras, aterras, ó desenterrado.
Finges, desarmas, com teu gosto azedo. Procuras,
já vives, nas verdes veredas. Mas não sabes
nem queres, do teu ao meu, essa coisa
chamada amor.


AFINAL ACABO SEMPRE POR FALAR DE TI

Aqui de novo estou, cantiga, neste
lugar de eleição onde retomo a escrita.
É um vagar premeditado, no regresso ao corpo,
em demorado gosto de bebida dupla. Reparo: a carga
das palavras, canga difícil para quem
deste modo quer fazer o mosto. A poesia
já regressa, por entre cortinados e veludos
e o quarto, a sala, os corredores, o vão
da escada, ressoam com seus passos,
afinal tão leves - a neve no soalho,
difícil no silêncio. Dizia no regresso; assim
desfaço os nós do medo: floresta e engano,
areal distante. Sorris e tudo é novo.
Sim: acabo sempre por falar de ti.


O CAROÇO DO REMORSO

«Ele estava cada vez mais cansado e lá fora as maçãs caíam das árvores»
Peter Handke
)

Voltava-lhe outra vez aquele remorso:
a maçã de Adão não lhe cabia
na camisa. Mais do que o medo era
esse tal remorso: o ter deixado a meio
qualquer coisa que podia ter feito.
Procurava razões e nem bolsos tinha
onde as encontrar; fingia esquecer
e outra vez, anda, o remorso batia
no seu cansado peito. Não falemos
de sentidas dores, mágoas, mesmo
da sentimental lágrima: o sentido
é outro. Assim: remoía o caroço.
Mas estava cada vez mais cansado
e lá fora as maçãs caíam das árvores.
 

sábado, 29 de dezembro de 2018

[0526] Novo livro de Miguel Rego


[0525] Ainda dentro da época natalícia, mais um poema de José do Carmo Francisco


A condizer com a quadra, os leitores de “Ibn Mucana” recebem uma prenda de José do Carmo Francisco.


O CRISTO DE MADEIRA DA RUA ANCHIETA

Uma coroa mas de espinhos
Faz sangue no incauto rosto
Passam os homens sozinhos
Do sobressalto ao desgosto.

No Natal que se aproxima
Tão veloz como uma luz
Entre a lágrima e a rima
Surge o busto de Jesus.

Num bocado de madeira
Trabalho de artesanato
Uma peça de oliveira
Que ultrapassa o retrato.

Porque extensão e volume
Dum rosto hoje distante
Lembram traição e ciúme
Do suposto bem-pensante.

Sacerdote incontestado
Entre Herodes e Pilatos
O povo tinha gritado
Por Barrabás e seus actos.

Na varanda e na bacia
Quem lava as mãos a chorar
Sabe que no fim do dia
A água não chega ao mar.

Travada pela secura
Do deserto da indiferença
Escondeu-se numa escritura
Sem sequer pedir licença.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

[0524] Bernardette Capelo, a peosia bissexta


Maria Bernardette Capelo-Pereira nasceu na Guarda em 1948. Professora e poeta bilingue, formada em Paris, cofundou a revista “Palavras”.


ÁRVORE IMAGINÁRIA

                              “oh noite, folha imensa e brilhante, desprendida da árvore invisível que cresce no centro do mundo”
Octávio Paz

Na vigília vibra um violino, suave choro de Orfeu por entre
um rumor de folhagem. Só tu vês: uvas, figos, doces gotas de
negrura pausada. Fontes: corpos. Teu olhar não volvas que é pó
o rasto de teus passos ardentes. Apenas no teu canto arde
um sopro lírico de não ter sido cego à linha iluminada
no céu plúmbeo desliza sobre as horas quebradas.
Tensas cordas sustentam inquietas
mutações: visitam-te palavras aladas que nenhuma
boca profere   sons que abrem cenas cantadas
no palco da madrugada. Respiro a maresia de barcos
límpidas águas reflectem o brilho das espadas
invisíveis. Sobre a transparência de um fogo se levanta
e ilumina todas s sombras.
Toco os secretos frutos da árvore imaginária.

[0523] Daniel Maia-Pinto Rodrigues, o poeta do quotidiano


Nascido no Porto em 1960, galardoado com o Prémio Nacional Foz Coa Cultural em 1993.


O BRILHO DOS TEUS OLHOS

I

Decerto que já te falei da contemporaneidade
e mesmo do brilho dos teus olhos.

Hoje talvez estivesse mais inclinado
exactamente
a falar do brilho dos teus olhos

na vulgar distância
entre o teu queixo e os teus seios
no traço oscilante e perfumado das clavículas
na claridade envergonhada das omoplatas.


II

Da contemporaneidade tu já sabes o que penso
agora talvez comesse qualquer coisa.

Perdão, querida, tens anchovas no armário?
yes!? com alcaparra... it's wonderful!
vinho, meu amor vinho pelas gargantas de veludo.


III

Não adormeças logo agora
que eu estava mais fluente e disposto
a falar-te, ainda que de novo, na contemporaneidade

ou não adormeça eu
logo agora
que o teu cabelo se encosta
à suavidade das almofada
animando o amor do Donald e da Daisy
que, entretanto, já transpuseram
a barreira lisa do pano e do desenho
e se encaminham já para o quarto ao lado.


DESPEDIDA

Amanhece
e no espreguiçar dos olhos
absorvo a tontura do novo dia.

Ao sair do quarto
atravesso o branco sujo da manhã
e vou tomar café com muito açúcar.

Levo um pastel de Tentúgal para a varanda
e mastigo-o ouvindo as harpas da cidade.

E quando tu chegas de roupão
bebendo o teu cacau
explico-te o horizonte com barcos.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

[0522] Inês Lourenço, a poesia das coisas não importantes


Nascida no Porto em 1943. Professora e poeta, coordenou os “Cadernos de Poesia”.


PORTUGUÊS VULGAR

O meu gato deixa-se ficar
em casa, farejando o prato
e o caixote das areias. Já não vai
de cauda erguida contestar o domínio
dos pedantes de raça, pelos
quintais que restam. O meu gato
é um português vulgar, um tigre
doméstico dos que sabem caçar ratos e
arreganhar dentes a ordens despóticas. Mas
desistiu de tudo, desde os comícios nocturnos
das traseiras até ao soberano desprezo
pela ração enlatada, pelo mercantilismo
veterinário ou pela subserviência dos cães
vizinhos. Já falei deste gato
noutro poema e da sua genealogia
marinheira, embarcada nas antigas
naus. Se o quiserem descobrir, leiam
esse poema, num livro certamente difícil
de encontrar. E quem procura hoje
livros de poemas? Eu ainda procuro,
nos olhos do meu gato, os
dias maiores de Abril.


PRIMEIRA CASA

Muitas vezes, por outras casas
e noutros países sonhava
com o soalho antigo e a varanda
onde um entardecer de plátanos
enchia o peito de uma secreta
ansiedade, sem motivo. O quarto
da Mãe, esse lugar de mistérios
fixara-se na sua memória, como
um quadro de autor irremediavelmente
perdido. Sempre que regressava
minguava-lhe a coragem adiada
para pedir aos ocasionais locatários,
a permissão provavelmente estranha de
uma visita. Um dia a velha casa
debruçada sobre os telhados,
apareceu-lhe quase demolida e agora
avultava como um dente postiço, com
uma loja de lingerie barata no
rés-do-chão e um par de janelas
com alumínio e sem mistério
onde os plátanos, há muito ceifados
pelo asfalto, recusariam entardecer.


DOIS CIMBALINOS ESCALDADOS

Não sei, meu amigo, o que
irradiava mais calor, se
a chávena escaldada, se
o cimbalino fervente, se
as conversas sobre livros de poesia
que nesse tempo, ainda
acreditávamos ser a maior
razão
Curto, normal, cheio
o cimbalino, esse negro odor
com moldura branca
numa mesa de café, na cidade
onde habitávamos desde sempre.

[0522] Vergílio Alberto Vieira, a poesia translúcida


Nascido em Amares em 1950. Professor, escritor, dramaturgo, crítico literário e poeta, ganhou o Grande Prémio da Literatura de 2001 e 2003, além dos prémios Correntes d'Escritas, Cidade de Almada, DST-Braga, Teixeira de Pascoaes, Florbela Espanca, Manuel da Fonseca, Sebastião da Gama, Natércia Freire, Maria Rosa Colaço, António Cabral, entre outros. 


O INVENTOR DE RIOS

Atraídos ao engano,
Pelo homem, que os esqueceu,
Sobem à terra, que o ano
A terra desmereceu.
O sol bebe-lhe o sangue;
Cansa-a, de fome, o arado.
Pobre terra, terra exangue,
Quem, pois, lhe dará cuidado.
Terá, o homem, o que quer,
Quando aperta a carestia,
Se assim a Deus aprouver
Como ao pão de cada dia.
Nasça, das mãos, a promessa
De outro tempo, outra vontade.
Qual jornada que começa,
Quando a vida é novidade.
Nasçam mares, onde o deserto
Castigou quem nada tem,
P’ra que o mundo então liberto
Não seja terra de alguém.
Inventem-se novas ‘speranças,
Novos caminhos, sinais,
Laços de amor, alianças,
Entre povos imortais.


POEMA

Venho de Elêusis a inefável
onde o arco de Hélios
Me revelou em sonho o rosto de Perséfone
No relastérion
Essa presença esquiva espero agora
Sem cessar sou jovem
A beleza persigo na terra com ardor
Das coisas feitas apenas sei
O que a um deus
Presságio algum proibe
Das coisas ditas o que a ouro debruam
As paisagens
Enquanto Perséfone escrutina
O trevo e a morte


A ÁRVORE DO VIAJANTE

Do génio a que deu abrigo,
Sem ser por obrigação,
Ninguém sabe, ser amigo
Não exige condição.
Para o que casa não tem,
É sempre longa a viagem.
Dar, pois, sem olhar a quem,
Que caminho é passagem.
Por muito mais receber,
A seu favor o que dá
Nada lhe falta para ser
Quem mais tem, se nada há.
Sombras podia vender
Aos que o sol castigava,
Mas antes pôr a render
Consolo a quem passava,
Deserdado, peregrino,
Andarilho, mercador,
Umas vezes, sem destino
Buscando seja o que o que for;
Outras, terras demandando,
Da promissão desejada
Que não se sabe até quando
Um dia, nos leva a nada.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

[0521] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (12) Nuno Rebocho, o viajeiro (este poema de terça sai em quarta, por motivos "natalícios" da redacção de IM)


Viajeiro depois dos anos de prisão a que a ditadura salazarista o votou, o poeta guardou sempre a memória das paisagens que marcaram a sua vida. É exemplo este poema dos seus “Cantos Cantábricos” onde se expressa a solidariedade para com os povos “silenciados” e atirados para o “labirinto do sofrimento”.


SEGREDOS QUE RASGAM OS MEDOS

meu povo curdo, meu povo corso, meu povo basco
árvores sem chão no chão de todos
de quem o vento fala. irmãos vos chamam
mesmo quando as bocas calam
e as mãos enganam

irmãos no labirinto do sofrimento onde as casas esperam
o regresso das vidas e dos berços
até que as mães esqueçam os seus medos.
em vós me aqueço nas estevas da memória
sobre o chão sagrado que as lágrimas ferem.

por que rumos vamos? o século murcha
e caminhamos nas franjas da ousadia
rente aos penedos que encobrem a alegria
- e vamos com as chagas de cada dia
para junto ao silêncio rasgar segredos

[0520]


[0519] Rosa Alice Branco, a poesia do passo ágil


Nasceu em Aveiro em 1950 e vive no Porto. Escritora e poeta.


HORA DE PONTA

Apanhar um lugar a esta hora é uma sorte, poder olhar
pela janela e fingir que tenho imunidade diplomática,
que estou de lá do vidro com o hálito das folhas, o sabor
a hortelã e um ar fresco interrompido pela velha senhora
a quem cedo o assento e um sorriso enquanto me agradece
de nada, de ir agora em pé empurrada, de cá do vidro
a apanhar uma overdose de realidade com o bafo quente
do homem gordo na minha orelha, com a mão livre
apertada contra o peito, contra o visco da hora apinhada
na minha pele pública, na minha pele de todos.
No banco em frente uma mulher afaga a neta com o sorriso
doce e cansado, os olhos brilhantes, a candura intacta
toma-me toda como se eu fosse um anjo
descendo à terra com um corpo real para que a minha pele
receba a dádiva da tua, aceite os cheiros de um dia de trabalho,
o calor excessivo, a proximidade insustentável e leia no teu rosto
cada mandamento nos solavancos que nos atiram uns para
os outros. No teu rosto ã hora de ponta aprendo a compaixão
até sair na próxima paragem com um suspiro de alívio.


O PECADO DA GULA

Ontem à tarde saí.
Queria passear as lembranças
que um dia de chuva faz crescer em nós.
Há dias que o vento rondava a casa
cheio de segredos incompletos
a roçar-me a orelha. E eu não resisto
ao sabor do vento
e a uma boa história para enganar o frio.

É fácil perdermo-nos nas ruas.
Nunca se regressa pelos mesmos caminhos
mas todos parecem iguais
com o cheiro da chuva a deixar o alcatrão
e a subir na memória
de outras ruas.
Mas há só um caminho que trilhamos. O corpo
é uma bússola fiel que segue pela estrada
enquanto o pó se levanta
muito para além dos nossos passos.




SERENATA À CHUVA

Chuva, manhã cinza, guarda-chuva.
Entrar no contexto, dois pontos. Ele e ela
abraçados caminham sob o tecto
do guarda-chuva que os guarda.
Pelas ruas vão com a vontade de voltar
ao branco dos lençóis. Esse objecto prosaico
que às vezes se vira com o vento
torna-se objecto de poema. Dizer também
como a chuva é doce neste dia de verão.
Como o amor altera o sentido da chuva,
sim, como ela se eleva no ar e as frases se colam
ao vestido. No interior da pele o poema mudou
desde que entraste no guarda-chuva esquecido
a um canto do armário. Talvez o amor seja tudo amar
sem excepção. Eu que nunca uso guarda-chuva
assino incondicionalmente este poema.

[0517] Bernardino Guimarães, o ambientalismo em prosopoemas


Nasceu no Porto em 1960. Ambientalista e consultor da RTP, escritor e jornalista independente, editou a revista “Tribuna da Natureza” e foi um dos fundadores do FAPAS – Fundo para a Proteção dos Animais Selvagens e também da Associação de Defesa do Ambiente Campo Aberto.


O CREPÚSCULO

Hoje de tarde achei que o crepúsculo é um erro ortográfico. O entardecer sanguíneo, sem estrelas para compor o vazio. Mas conheço a voz do mar: é rouca, grave, definitiva.

O crepúsculo é um adeus. As cores despedem-se e peço-te a mão, o braço, o cigarro, os lábios que dão sentido às escadarias onde nos sentamos.

O crepúsculo é uma maneira de tudo acabar em apoteose ardente.

O absurdo ronda-nos. (o riso das ondas, o olho mordaz de um farol.)


A AVE

Um dia. O melro no meio diz: dia. Encontro a palavra, digo: palavra. E ela vem. Uso a voz, ouso-te falando. Eco é o ar que escuta. Diz a pedra: fico. Sei-lhe ser mago, e falsário. Ensino nas mãos o pássaro inicial. Seio de sabê-lo, pereço, porque não voo. Um dia. O céu de esponja encontra o verbo. Pendurado no vento, forço a alma, ácida, de almeida e nuvem. Ouvem-se ruídos e caem calendários, pesados. A ave nítida, desprendida do sono, diz: madrugada. E ela nasce.


PALAVRAS, PALAVRAS

Marítima a maneira de olhar. Fácil a tarefa das mãos, pousadas. Queres que recorde, ou quero eu que queiras tanto. Está bem. A luz molhava os movimentos. Tínhamos por detrás a cidade. Claro que era cinema e poesia. Um simples sorriso súbito e era claro aquele momento. Porque se geravam sombras e sobras de vultos naquela luz inclinada. Claro que escurecia. Era manhã como as macieiras são macieiras, antes de terem nome, mas escurecia. Não sei se a memória não me trai, quando em palavras as nuvens formavam um alfabeto denso e húmido, que as nossas vozes procuravam traduzir. Sei que a cidade nos servia de cenário e as nuvens de biombo. Porque era manhã nos teus olhos e em mais nenhuns isso se via, tão claramente. Queres que descreva os trabalhos da ave, a asa do vento? Foi um tempo de sombras medindo-se e de chumbo no céu, ameaçando gaivotas. Doce a maneira de lembrar, fácil o gesto dos ombros. Palavras, palavras.

[0516] Boas novas de António Pires Cabral no "após" Natal


De António Manuel Pires Cabral vieram alvíssaras no “sapatinho”: uma receita para o post-Natal. “Ibn Mucana” bate palmas. 


BOAS NOTÍCIAS

Boas notícias. Cientistas estão em vias
de sintetizar o princípio de natal,
criar uma espécie de reforço vitamínico
para a bonomia sazonal.

A droga actua sobre os centros nervosos
onde se crê que reside a aptidão
para gerar ódio, malquerença e egoísmo,
e faz de cada homem um irmão.

Tem um contra: só actua em dezembro.
No resto do ano é inócua, não alcança.
Mas talvez seja melhor assim:
que diabo, ser sempre bonzinho também cansa.

De futuro, um mês antes, já se podem ingerir
pílulas de natal após as refeições,
de forma que,quando o dito por fim chegue,
estejam repletos de natal os corações.

Quer dizer: está ao nosso alcance
interagir pela química com o calendário.
Passarmos a tratar o espírito do natal
como se fosse uma gripe ao contrário.

Muitos torcem o nariz e dizem
que a droga é no fundo uma espécie de vacina
- e nada mais do que isso -
contra o medo de ver o fundo da latrina.

domingo, 23 de dezembro de 2018

[0515] José Luís Tavares bisa em prendas de Natal ao IM e aos seus leitores. Voltaremos na próxima semana, após a penúltima festa do ano

No seu aconchego português, o grande poeta cabo-verdiano José Luís Tavares oferece aos nossos leitores duas “prendas” natalícias. Agradecemos. Boas Festas!


UM CÁLICE À INTENÇÃO DO MENINO

Dizem-me que nasceste no distante
oriente, numa noite fria como esta.
Isto me dizem. Atentos escrutinadores
do passado atestam tua meninice
num árido país. Nisto, minha infância
foi igual à tua.

Debaixo de coruscantes céus transitei
a penúria, enquanto tu te preparavas
para desígnios bem maiores
— morrer pelos meus pecados,
dizem-me os quatro evangelistas,
apócrifos e fabulistas.

Como poderei, na conta dos desatinos,
ter mais débitos do que tu
se nem tenho o poder de fulminar
a esses que me tiram as guloseimas?

Não senhor meu, te chamarei,
embora por ti nutra tamanha admiração.
Como o fabulista portenho, o que amoeda
e burila, poderia perguntar-me: de que
me serve a mim que tenhas morrido

pregado a uma cruz, se esse teu acto
(alguns dirão que nobre) do sofrimento
me não livra?, nem do naufrágio
a esses que padecem a dominação
dos ventos mas seguem firmes
no trilho dos segredos?

Nesta noite em que na quieta
atmosfera brilham os olhos de minha
filha (milagre novo e tão antigo),
e em distantes ilhas se não suspende
a lavração da bruma, que deus não
sejas, é-me indiferente — à tua intenção
ergo este néctar decantado numa antiga
infância de fornalhas.


***

Treme o trema no cocuruto de noël .
Fora de neve o céu de dezembro,
e não essa torreira de me lembro,
tu, a quem chamo amigo novel,

chegarias de capa e botas altas desde
esse negrume a que chamam pátria? Pátria
são os lidos livros, ou o lume que se pede
quando o escuro leveda num rufar de estria.

Triste dezembro que a piedade reverdece
com o arbítrio do nevoeiro, nas moradas
engelhadas a felicidade é um touro indócil

verrumando a paz dos pátios. Pudesse,
ó piedoso, seria resignado guardião das
veredas onde cresce o teu nome fóssil.



sábado, 22 de dezembro de 2018

[0514] Nicolau Saião revisitado


Nesta quadra, “Ibn Mucana” oferece aos seus leitores este apropriado poema de Nicolau Saião. Com votos de felicidades e novo ano próspero (e com menos impostos)


NATAL  18

Quem fala de Natal perde palavras
à entrada do Inverno, na secura dos dias
no vasto frio das noites, tão lúcidas e antigas
tão de infância e de Agosto. O fogo
misturado: árvores, luzes, fantasmas
e as doces mãos das Avós. E ainda
um postal velho velho cheio de vento e de memórias.

Quem fala de Natal perde palavras, ganha
e perde as demais coisas que as palavras edificam.

“Quem grita no Natal? E Deus
não os fulmina? “. Quem mergulha os seus pulsos
na fria água do rio?  Com seus chapéus à banda
em barcos engalanados
os anjos vão passando, dizendo amores esquecidos
dizendo estranhas frases, assombrando as moradas
onde afinal não nasce o tal de Nazareth. O sal e o
pão terrenal dos que ainda não foram
pelo ar, pela vida, pelos túmulos vazios.

Sim, pelo Natal as pobres casas em ruínas.

Para ser do Natal é preciso possuir
uma lembrança ardente, um brinquedo estripado
e muita tristeza feita nos anos em leilão
dos retratos tombando com um nó na garganta.
Para ser do Natal é preciso morrer
e viver de seguida com o sangue nos braços
esperando a estrela fixa do brusco espanto nocturno
junto à porta perdida dum milagre adiado.

Ah falar de Natal! Quem o consente?

O pão e o sal
talvez
de toda a gente. E um olho de animal
pairando no poente. Decisivo, visceral. E Deus, pobre dele
abrindo a água lustral (no bem, no mal)
frente ao horror da morte
terrena e inocente.

Por isso, no Natal
os segredos demoram
e tudo muda e tudo se envolve num pano branco barato
para que ninguém esqueça um corpo ferido que por debaixo jaz
uma nova e desconhecida espécie de cadáver achado na ilha
dos animais inominados
e outras diversas coisas que por desespero se não apontam.

No Natal treme a casa, a casa
sempre caiada, como um sepulcro sem número e sem nome.

E o inventário dá, se estiver certo:
um coração ardido todo azul
uma recordação minúscula que se guardou num bolso
um riso salutar ensanguentado
uma pequena ironia desenhada a tinta de colegial
uma apenas esboçada mão posta sobre um antebraço
o lenço de cabeça duma tia que desapareceu na manhã
um gato tranquilamente dormindo ao cimo das escadas
uma rosa e uma palavra que a si mesmas se julgaram
duas mãos de pedra tremendo atravessadas por uma ferida
numa cruz de polo a polo
um hálito que soprado no peito nos enlouquece
um arrepio, uma agonia
uma tarde a fechar-se repleta de amargura e de alegria.

Talvez o Natal seja um rosto
ou uma madrugada de outono
ou um avião nocturno
ou um verão por detrás das coisas aparentes
ou um combatente jazendo de borco numa pia baptismal
ou os bramidos de dois seres abandonados encarando-se de súbito
numa rua da cidade
no escuro muito escuro de uma cidade do universo
quer dizer – luminosa e aterrada. E talvez

que tudo afinal esteja a mais, que tudo afinal
se resuma a filhós e azevias de um outrora
a canecas de café familiar
algures num horizonte, numa idade, num momento
no imenso murmúrio de uma voz sulcando o tempo.

E a chuva   que diabo   irá cobrindo tudo
no infinito Natal dos mundos desaparecidos.

[0513] Francisco José Craveiro de Carvalho, a poesia matemática


Nasceu em Alvaiázere em 1950. Matemático doutorado no Reino Unido e professor catedrático, poeta e tradutor. 


TERCEIRAS IDADES

Alguma pena tenho
das pessoas que entardecem
como eu aqui penduradas.

Que se esforçam em sudokus
prevenidas
com poucas palavras.

Que  se deixam arrastar
pela cozinha básica
do Henrique Sá Pessoa

mas que  o preço
das tralhas mínimas
dissuade.

Em casa nas mesas
em vez de jarras
contemplam dicionários.


TRÊS HAIKU

Duas rectas paralelas
nunca se encontram
para falarem um bocadinho
*
Cabeça no ar
a circunferência perdeu o centro
e ficou uma curva uniforme
*
O interrogatório foi tão violento
que o cilindro saiu de lá
um cone.


CARRINHO DE SUPERMERCADO

Nada tingiria o seu corpo

ao sentar-se todas as manhãs
para tomar café

se não fosse o adereço
invulgar mas singelo

do carrinho do supermercado
ali mesmo ao lado.

Despovoado sempre.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

[0512] Olinda Beja, com votos de bom Natal

Para os Dezembros de qualquer ano, Olinda Beja faz chegar um poema muito próprio desta quadra.


APENAS UM SORRISO

Apenas um sorriso
aberto à flor do rosto
abelha mãe em favos de doçura
e será Natal no mês de agosto
ou em maio
ou em julho
ou em janeiro
desde que ames com ternura
desde que vivas
que sonhes
que sorrias
desde que te entregues aos outros
por inteiro
será Natal  TODOS OS DIAS!


[0511] Jorge Castro, uma voz livre


Nascido no Porto em 1952, poeta e animador cultural, organizou as Noites com Poesia, em S. Domingos de Rana e administra o blogue “Sete Mares”.


A PROPÓSITO DE UM DESENHO DE RAIM 

ele há paços de concelhos
ele há paços de outra vida
ele há passos de coelhos
ele há passos de corrida
ele há viver de joelhos
ele há viver outra vida

e se eu me passo p'los paços
por onde passos não dou
sejam eles do paço ou Passos
por aí é que eu não vou!


AS CANÇÕES DA NOSSA LIBERDADE

- um outro poema de referências, como agradecimento a João Balula Cid e aos seus (nossos) amigos em sessão memorável das Noites com Poemas

as canções da nossa liberdade
são da cor das madrugadas da vida
no acaso tanta vez
feito vontade
por valer uma esperança enfim cumprida

são da cor de um olhar ao mar aceso
são o brilho desse olhar na noite escura
são raiz do pensamento enfim coeso
são as mãos da paz
da guerra
e da aventura

as canções da nossa liberdade
são aquelas soltas no vento que passa
alvoroço contra o medo e sem idade
de haver sempre uma candeia na desgraça
uma luz
algum farol
o olhar ardente
essa bola entre as mãos de uma criança
que saltita alegre e viva à nossa frente
e por saber ser assim livre
é cor da esperança

hão-de ser para alguns um leme inteiro
o velame que impele a nau premente
esse grito que nos rasga o nevoeiro
quando o tempo de mudança
é mais urgente

as canções da nossa liberdade
são a carne viva feita de emoções
cada nota
cada estrofe que em nós arde
incendeia aqui e agora os corações
a crescer entre o peito e a garganta
a valer de pena e espada que acontece
quando a noite se finou e amanhece
nesse querer voar que sempre se agiganta
na invenção do amor que nunca é tarde
inteiro e limpo
o dia que enfim canta
as canções da nossa liberdade


A ESPIRAL DEPRESSIVA

um BPN
um BANIF
a PPP
ah, patife!
a trapalhada
a chulice
o poleiro
a aldrabice
o lugar fixe
e o povo…
nada é novo:
- que se lixe!

um presidente
um governo
um acidente
um inferno
coligação
rés do chão
maioria em demasia
e que a tudo valha o demo!
cá nos sobra o despautério
e mais a desilusão
dos mares da corrupção
que já ninguém
leva a sério

uma troika
gasparova
sempre urgente
e homicida
a fazer de seminova
em governo
de saída
de pés p’rà cova
impotente
mas cautela, ó clientela!
também vem aí
a Europa
o FMI
o Obama
a China nova a oriente
essa tropa e essa gente
tão ingente tão ufana

que eu bem nos vi
de repente
limpando o fundo
à gamela
e de bandeira
à lapela
num venha a nós
vosso reino
mas primeiro
que em toda a cidade e vila
mesmo à má-fila
e sem treino
matemos nossos avós
que aquilo são empecilhos
e rendem bem mais
os filhos
do que os egrégios avós

assim nos vai o país
dos heróis
dos marinheiros
dos caracóis
dos dinheiros
sem apelo e sem agravo
de fados sem marceneiros
mas de grunhos
estremenhos
a não valerem um chavo
sem terem terra
também
nem pai
nem mãe
nem ninguém
que lhes prove
sem rebuço
e comprove
sem senão
qual a dimensão
de um chuço
e correr com eles a nove!

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

[0510] José Pascoal, revisitado



Para os leitores deste portal, ficam as décimas deste poeta torrejano agora publicadas no Brasil.


LUTO ANTECIPADO

Reina suave tumulto
No meu cérebro cansado
De funerais adiados
E tenho medo dos mortos
Com longos avisos prévios
E abro os livros com facas
Em protesto piedoso,
Frágil e silencioso,
E vejo-me de fugida
No espelho dos teus olhos.
  

O BENEFÍCIO DA DÚVIDA

Dai-me o benefício
Da dúvida
Metódica
E farei com ela
Uma certeza instável:
Casa desabitada,
A ruir
Lentamente,
Em silêncio,
Como um barco a afundar-se.


 AS MÃOS DO VENTO

As mãos do vento agarram-me pelo pescoço
E obrigam-me a ver
O mar morto de fome,
A cidade incivil,
O campo infértil,
O fumo do fogo que não arde,
O fumo do forno crematório,
A cama onde me vou deitar
Para depois ficar acordado
Com medo do escuro.


 EXCESSO DE VELOCIDADE

Corres para a desgraça dos mendigos,
Dos que vivem debaixo de lusíadas
Pontes, dos que vivem as ilíadas
A olhar para os seus pobres umbigos,
E vais rapidamente, como um atleta
Dos cem metros, desmedidos, tal a pressa
De chegares não sabes a que meta,
Sentes que vais cumprir uma promessa
A uma virgem louca sem altar
E vais, desalinhado, sem parar.


CONTAGEM DECRESCENTE

Não é da minha conta
O que acontece
Nos bairros periféricos,
Nos bares alternados,
Nos becos esotéricos,
Nos barcos encalhados;
Não é da minha conta
O sal rosa dos muros,
O sol rubro dos túneis,
O sul roxo dos túmulos.
  

SEM TIRAR NEM PÔR

Não tiro uma vírgula,
Não ponho um acento a mais,
Tenho de ter cuidado
Com as cordas vocais
Com que enforco
As palavras mais banais,
Vida, morte, amor,
E, acreditem-me,
Faço um esforço danado
Para sobreviver a tudo isto.

[0509] Neste Natal, de novo Ronaldo Werneck


De Cataguases, terra de poetas, Ronaldo Werneck convive connosco neste Natal. Boas Festas!


NATAIS ATÔNITOS

sim
     não existem mais
          sinos
     meninos
          os velhos ais
não
     sim
          não existem mais
sons
sonhos
     sinos
     címbalos
     símbolos
  janelas abertas
na memória
               velhas histórias
     nós
     nozes
     velas
     nós na garganta
velhas vozes
     de outroragora
          sambam soltas
     entre as frestas
          da janela
de nunca
     jamais
entre as festas
de velhos anelos
      belos
      tanto
          tontos
     natais
          atônitos.


quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

[0508] Miguel Rego lança novo livro de poesia

Será a 12 de Janeiro, pelas 15h00, no Palácio Baldaya (na Estrada de Benfica, 701 A, Lisboa) que decorre a apresentação do livro de poesia de Miguel Rego, “Mar de um Tempo sem Âncoras”.

O livro tem a chancela da editora Volta d’Mar (voltadmar@gmail.com), da Nazaré.


[0507] As Boas Festas de Nuno Rebocho

2018-2019

viver é amarrar os laços
que os amigos dedilham
aspirando profundamente as emoções
fazendo de cada dia o natal
dos corações e o ano novo
da coragem para o celebrar

viver é soltar âncoras
agarrado às dúvidas que atormentam
as certezas assumidas
e ancorar no oceano das incertezas
que os anos novos trazem aos natais
das amizades que teimam em ficar

[0506] Jenny Bernal ou a poesia colombiana revisitada


Nascida em Bogotá em 1987, gestora cultural, cofundadora do Festival de Nueva Poesia y Narrativa Ojo en la Tinta e editora da revista latino-americana de poesia “La Raíz Invertida” e da revista “Contestarte”.


SOBRE LOS OFICIOS

Incluso para ser mendigo hay que conocer bien el oficio
saber cuál es la esencia de su infortunio,
buscar de los callejones el mejor espacio para resguardarse del frío
reconocerse un ser vulnerable; vestir su fragilidad de trapos viejos
ver en la mirada del otro un espejo de sus miserias.
Incluso para amar hay que conocer bien el oficio
saber cuál es la esencia de su infortunio,
buscar de los callejones el mejor espacio para resguardarse del frío
reconocerse un ser vulnerable; vestir su fragilidad de trapos viejos
ver en la mirada del otro un espejo de sus miserias.
Incluso para olvidar, perdonar…
hay que conocer el oficio.


LA CASA

Bienvenido a esta casa
su casa
aquí se respira el frío hiel
de ese aliento ausente.
Bienvenido a esta casa
de enojos y lágrimas
siéntese donde sus pasos se agoten
donde su piel se seque,
la casa ha cambiado un poco
—usted perdone—
pero he evitado pintarla
para que las grietas del tiempo
le regalen un poco de ese matiz familiar.
Es la misma casa, no se asuste
esa misma que construimos hace tiempo
esperando estar lo suficientemente solos
para habitar en ella.


ALQUIMIA DE UN HOMBRE

Un día le observas
despojándose de quien se cree ser
inmerso en su mirada de miedo
con ese aliento que produce el vacío
reviviendo cadáveres,
con un credo por camino
y las grietas de sus manos
desviándose entre llagas
que tímidamente bordean su corazón.
Va conservando su sombra
bebiendo sonrisas.
Amando
porque no hay otra forma
de conducir la lava
hacia esas tierras errabundas
y evocar del aire
el soplo
que espanta la muerte.

[0505] Miguel Teotónio Pereira, poeta da coerência

Miguel Teotónio Pereira nasceu em Lisboa em 1954, foi activista anti-salazarista e anti-colonialista no movimento estudantil. Técnico de bibliotecas, foi operário fabril e de construção civil, cobrador de quotas e vendedor, revisor tipográfico e funcionário de uma cooperativa cultural.


SEBASTIÃO

                              Ao Tiago, um Anjo na Terra, que me trata por Pai

Enchias a paisagem
Da casa, dos campos, das impossíveis urges.
Grande, calmo e doce.
Porém enchias.
Viveste té ao fim.
Calmo e doce.
Porém viveste.
Enchias a solidão
Do meu coração desabrigado
De uma ilusão de caminho.
De amigos fugazes.
E caminhaste
A meu lado.
Calmo e doce,
Por entre trilhos só nossos
Pedregais escorregadios
E névoas de água
E estevas anunciadoras
Da madrugada,
Comigo caminhaste.
Té ao fim esperaste
Calmo
Que o mar te levasse;
E eu sei, ó meu Sebastião!,
Que me perdoaste.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

[0504] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (11) Nuno Rebocho, memórias de jornalista


Jornalista durante largos anos (no "Jornal Novo", em "A Tarde", na "Tribuna", em "O Século", no "Expresso das Ilhas", no "Jornal de Cabo Verde", entre outros), Rebocho algumas vezes fez da poesia o prolongamento da sua profissão, trazendo para os poemas os factos que caiam nas páginas dos jornais. Este é um exemplo.


POSFÁCIO

                              Na mote de Quirino Teixeira

o jornalista foi encontrado morto na banheira
a notícia comeu-lhe o coração
e na água entre a esponja e a saboneteira
foi espuma de sabão
o corpo nu encomendou o orvalho
saudades da maresia
mas os indícios eram óbvios – crime de nostalgia

o jornalista morreu convencido da ciência consumida.
morreu convictamente morto
com título a vermelho filetado e foto ao alto
notícia a corpo oito redondo times
quem? o quê? onde? quando?
o jornalista morreu fundamentalmente
substantivo
o nome segue em itálico
no remissivo

[0503] Fernando Grade, os haiku


De regresso a este portal, Fernando Grade recorda-nos alguns dos seus haiku.


ABAIXO OS NEUTROS

Não se pode viver muito tempo
 por dentro de uma maçã.


FOLHA DE OBRAS

A demolição começa pelo nariz
pelas rebeldes narinas inteiriçadas de brisa.
Mas a boca calceta-se com beijos.


RONDA PELOS JARDINS

Canícula atiçada por cães.
-- Qual de vocês, meninos do bairro todo,
 é o melhor atleta a beber água


ESTRADA DE FLORES

A única estrada de flores são os olhos.
Ver é sentir tombar as paisagens,
água assobiada sobre o corpo.

                                   
EXERCÍCIO CORPORAL

Fui ao nome de Filomena, e roí: ficou Filó,
continuei a avançar queimando letras
e deu Fi. Finalmente,
na tarde caída, assoprei:
-- Fff...-- e assim se perdeu Filomena
na minha vida.


AS SOBERBAS CONSTRUÇÕES DO IMPÉRIO
OU A HISTÓRIA DO SUOR ESCRAVO

 Pirâmide ou piranha?


DIA DE RESTOS
(DEPOIS DO NATAL) 

O que ficou do presepe foi um osso de vitela
expurgado ou doce de
figo como música chuvosa.

E nenhum querubim sobe às paredes da casa
onde o gato (tépido) faz ninho,
convencido que tem asas.


QUANDO O CRÍTICO FAZ CRI-CRI

João Gaspar,
crítico menor
do meu país de opereta,
crítica para a História
-- à flor da epiderme
e das dedicatórias
-- o rabo dos poetas.
                                         

EXCLAMATIVO ÀS PORTAS DA CIDADE

Não há tusa
 para tanta musa!
                                           

PERGUNTANDO SEMPRE

 -- E os crimes, meu general?
  -- Ah, isso foi há muito tempo... Já ninguém se lembra!


EXCLAMATIVO EUROPEU

Chiça:
que a menina aprendeu línguas
na Suiça!

                                         
HAIKKU PARA O BUDA PROLETÁRIO

Seis dias de suor castanho
para criar a flor e o viúvo.
Ao domingo teremos cerejas?
                               

CONTRA A GEOMETRIA ROMÂNTICA

Nunca tive jeito para a geometria
porque vejo sempre na pirâmide
o suor de quem a construía.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

[0502] Daniel Jonas, poeta plural e prestidigitador


Poeta, tradutor e dramaturgo, Daniel Jonas nasceu no Porto em 1973. Recebeu o Prémio PEN de Poesia de 2006, o Prémio Europa David Mourão-Ferreira de 2013 e o Grande Prémio Teixeira de Pascoaes de 2014.


DO VENTRE DA BALEIA


Do ventre da baleia ergui meu grito:
Senhor! (dizer teu nome só é bom),
Em fé, em fé o digo, mesmo com
Um coração pesado e contrito
Que és de tudo verdade e não mito,
O coração do amor, de todo o dom,
Conquanto seja raro o bem e o bom
E toda a luz aqui me falhe, és grito
Que chama toda a chama de esperança
E acorda a luz que resta à réstia eterna,
Conquanto viva o mártir na espelunca
Da vida (quem espera amiúde alcança)…:
Possa o nazireu preso na cisterna
Sofrer de ser só tarde mas não nunca.


PASSAGEIRO FREQUENTE

Ei-lo: tardiamente chegado dos subúrbios
ao coração de tudo, ao centro das coisas,
pária das fábricas e da hulha,
da sua modesta infância
e do seu agregado proletário
arrastado por uma visão tardia,
pelo sorriso familiar da calçada,
não deixando de ser estranho
entre os párias urbanos
como um solipsismo,
como uma velha cabine telefónica
icónica mas não menos divergente
entre a gente.

Ele anseia por um lar
deixadas que foram várias casas bombardeadas
e a sirene infernal de alerta máximo
zumbindo nos corpos calcinados
dos lentos catres
onde as plúmbeas contorções
dos corpos são cubistas e cubistas
os catres sobre eles.

Ele está muito a tempo de alguma coisa
embora as pernas lhe vacilem,
apenas passou de além
para aqui com um fito
indeterminado, um modo de fazer sentido
sem a senha do passado necessário,
sem a cicatriz social,
sem um alinhavo de perfídia.
Este é um passageiro frequente dos faux-pas.
Uma prostituta faria os seus avanços
com mais segurança.


CANTONEIROS

A pura simetria dos cantoneiros
concordes na sintonia clássica
da sua dança, no modo como desmantelam
a embriaguez, induzem o vómito a caixotes
ou dispõem de bolas de plástico
e as lançam para a baliza ruminativa
sem tempo para comemorarem os golos.
Pulgas da quietude,
industriosos entre o mar de detritos,
fosforescentes noctilucos,
espectros a céu aberto,
ídolos de montureiros,
aclarando das margens as nuvens rentes
sob aguaceiros desabridos.
Acrobatas da morosidade
fúnebre do seu curso,
a cidade ignora-os
ou execra aquele féretro deletério
se apanhada no cortejo de ocasião

[0501] Ronado Werneck, mais uma vez


Um dos poetas do chamado “Grupo de Cataguases” e emergente do concretismo brasileiro, Ronaldo Werneck faz-nos chegar um poema dos seus “verdes anos”. 


25 ANOS

hoje tenho 25 anos
e queria escrever ócio
mas minhas palavras são de aço

hoje tenho 25 anos
e a poesia é difícil
mas o poema é meu ofício

hoje tenho 25 anos
e a poesia me chama
faço o poema como quem ama

domingo, 16 de dezembro de 2018

[0500] 500 posts no Ibn Mucana

500 posts de poesia de países latinos lançados até agora no Ibn Mucana. Parabéns a nós próprios e se algum dos poetas vivos publicados nos quiser felicitar (os mortos, é mais difícil...), ficaremos imensamente satisfeitos. Ainda por cima, dar parabéns é de borla...

Visite o nosso outro blogue, "Contos da tinta permanente", AQUI


[0499] Jorge-Reis Sá, o poeta feliz


Nasceu em Vila Nova de Famalicão em 1977. Cronista, romancista, escritor de literatura infantil, editor e poeta, Prémio Manuel Maria Barbosa du Bocage de 2004.  


DIGO QUE TE AMO

digo que te amo
sorris e eu amo, digo que te quero
sorris e eu quero, dizes em sonhos

em sonhos que já tive, onde desejei ser céu sol e
estrelas para que te pudesse olhar eternamente


ESCREVO COMO QUEM QUER SER ESCRITO

escrevo como quem quer ser escrito

uma árvore ou uma pena no centro da frase
um espelho branco onde observo a palavra

e dos seus troncos brotam folhas, letras
inundações de verde no lago azul do céu
que caem, voando, asas de papel

como tu, também eu sussurro
lentas sílabas à leve melancolia que nos abraça


SABES, PAI

sabes, pai

o cachecol bege nos muros da foz
cobria as árvores com o seu pêlo, ao vento
o boné azul, marinheiro nos cabelos louros
sussurrava pequenas frases às silentes águas
o teu sorriso tão leve, enternecia o rosto
esses óculos, teu cabelo nas tardes de sol

ou o barco encalhado na areia breve
junto ao castelo onde nos passeávamos
eu tu a mãe, duas ou três falas e o meu corpo
que se chegava a vós junto à estrada

nestes muros da foz, abertos ao mar
que voava


POEMA

Terei a coragem de Pavese para deixar
tudo preparado e partir? Um diário
com todas as indicações de que o fim
se aproxima e a passos muito largos,
a reunião de toda a poesia num original
devidamente encapado e pronto a ser
editado na Einaudi. Trabalhar cansa.

Aceito. Mas cansa mais não fazer nada.

[498] Murilo Mendes, o poeta da liberdade


Nasceu em Juíz de Fora (Minas Gerais) em 1901 e faleceu no Estoril (Portugal) em 1975. Um dos poetas do Movimento Antropofágico (Segundo Tempo Modernista), inspirando-se no cubismo, assumindo depois a influência surrealista e posteriormente do concretismo. Viveu na Bélgica e na Holanda e foi professor em Itália (Universidade de Roma). Recebeu o Prémio Graça Aranha de 1930 e o Prémio Internacional de Poesia Etno-Taormina de 1972.


SOLIDARIEDADE

Sou ligado pela herança do espírito e do sangue
Ao mártir, ao assassino, ao anarquista.
Sou ligado
Aos casais na terra e no ar,
Ao vendeiro da esquina,
Ao padre, ao mendigo, à mulher da vida,
Ao mecânico, ao poeta, ao soldado,
Ao santo e ao demônio,
Construídos à minha imagem e semelhança.


POEMA ESPIRITUAL

Eu me sinto um fragmento de Deus
Como sou um resto de raiz
Um pouco de água dos mares
O braço desgarrado de uma constelação.

A matéria pensa por ordem de Deus,
Transforma-se e evolui por ordem de Deus.
A matéria variada e bela
É uma das formas visíveis do invisível.

Na igreja há pernas, seios, ventres e cabelos
Em toda parte, até nos altares.
Há grandes forças de matéria na terra no mar e no ar
Que se entrelaçam e se casam reproduzindo
Mil versões dos pensamentos divinos.
A matéria é forte e absoluta
Sem ela não há poesia.


REFLEXÃO N.° 1

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.


Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.


CANTO A GARCÍA LORCA 

Não basta o sopro do vento
Nas oliveiras desertas,
O lamento de água oculta
Nos pátios da Andaluzia.

Trago-te o canto poroso,
O lamento consciente
Da palavra à outra palavra
Que fundaste com rigor.

O lamento substantivo
Sem ponto de exclamação:
Diverso do rito antigo,
Une a aridez ao fervor,

Recordando que soubeste
Defrontar a morte seca
Vinda no gume certeiro
Da espada silenciosa
Fazendo irromper o jacto

De vermelho: cor do mito
Criado com a força humana
Em que sonho e realidade
Ajustam seu contraponto.

Consolo-me da tua morte.
Que ela nos elucidou
Tua linguagem corporal
Onde el duende é alimentado
Pelo sal da inteligência,
Onde Espanha é calculada
Em número, peso e medida.


MURILOGRAMA PARA MALLARMÉ 

No oblíquo exílio que te aplaca
Manténs o báculo da palavra

Signo especioso do Livro
Inabolível teu & da tribo

A qual designas, idêntica
Vitoriosamente à semântica

Os dados lançando súbito
Já tu indígete em decúbito

Na incólume glória te assume
MALLARMÉ sibilino nome

sábado, 15 de dezembro de 2018

[0497] MÚSICA PARA O DOMINGO (12) Hoje, "Tão bom que foi o Natal", de Chico Buarque)



CANÇÃO DE NATAL
Chico Buarque

Tão bom
Tão bom
Tão bom
Tão bom
Tão bom que foi o Natal
Ah quem me dera fosse o ano inteiro igual

Tão bom
Tão bom
Tão bom
Tão bom
Tão bom que foi o Natal
Ah quem me dera fosse o ano inteiro igual

Olha a cidade que linda
Até parece deserta 
A meninada dormindo 
De janela aberta

Papai Noel completa toda colecão
Boneca, bicicleta, bola, bala e balão