quarta-feira, 31 de outubro de 2018

[0352] Vasco Martins, a poesia luso-cabo-verdiana
































Nascido em Portugal (Queluz) em 1956, é compositor, poeta, romancista, musicólogo e produtor cabo-verdiano. Reside na ilha de S. Vicente (em Calhau), recusa rotulações. Autodidata, no entanto estudou em Portugal e França


CÍRCULO MANDALA

neste mundo cada vez
mais duro
onde encontrar
o mandala supremo?

avancemos!

estremecida música
ali num milheiral seco


MANTRA

depois de ter apanhado cipreias
nas praias vulcânicas
esperei que anoitecesse

caminho agora na estrada leitosa
o mar calmo reflete Antares

do sul aproximam-se as nuvens
dramáticas
provavelmente carregadas de água tropical

despido das roupagens rotineiras da mente
recito um mantra inventado
Eicohummaheh

1>2>3 inspiro
1>2>3>4>5>6 contenho
1>2>3>4>5>6>7>8>9 expiro


DISCÍPULO DO UNIVERSO

arbusto do deserto
carinhosa interrogação juvenil
galáxias que se afastam do centro paradoxal

sombras dos montes ao fim da tarde
nuvens que passam e parecem eternas

anjali
taihatá


DESERTO

quem ousa dizer que as estrelas não existem?
quem ousa seguir os teus passos sem pedir a devida autorização?
porque no deserto quem domina é a água
e não saberás nem contar as estrelas para ninguém
nem mostrar o caminho a ninguém
enquanto não encontrares a fonte
uma simples fonte de água puré e fresca
debruçada nas dobras de uma duna ondulada
pelo vento
aquela que ocultamente está em todos
os nossos desertos interiores

[0351] Manuel Alegre, a voz da Liberdade

Manuel Alegre de Melo Duarte nasceu em Águeda em 1936. Escritor, poeta e político, foi militante do PCP de 1957 a 1968 e actor do Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra. Director da Revista “Briosa”, foi mobilizado para a guerra colonial em Angola, sendo preso pela PIDE em Luanda em 1963, punido com residência fixa em Coimbra à qual fugiu em 1964, exilando-se em Paris, depois em Argel. Menbro da Direcção da Frente Pariótica de Libertação Nacional, foi locutor de “A Voz da Liberdade”, a emitir desde Argel, aderindo à Acção Socialista, embrião do PS. Regressou a Portugal após a revolução de Abril de 1974, sendo um dos fundadores dos Centros Populares 25 de Abril. Deputado constituinte (depois deputado nacional, durante 34 anos) e dirigente socialista, foi Secretário de Estado da Comunicação Social e Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro para os Assuntos Políticos, vice-presidente da Assembleia da República e candidato à Presidência da República em 2006. Fundou o Movimento de Intervenção e Cidadania e foi eleito membro do Conselho de Estado. Os seus primeiros livros de poesia foram apreendidos pela censura salazarista. Recebeu o Grande Prémio da Poesia da APE de 1998, o Prémio da Crítica da AP de Críticos Literários de 1998, o Prémio Pessoa de 1999, o Prémio D. Dinis de 2007, o Grande Prémio Vida Literária de 2016, o Prémio de Consagração de Carreira da Soc. Port. de Autores, de 2016 e o Prémio Camões de 2017.


COMO ULISSES TE BUSCO E DESESPERO

Como Ulisses te busco e desespero
como Ulisses confio e desconfio
e como para o mar se vai um rio
para ti vou. Só não me canta Homero.

Mas como Ulisses passo mil perigos
escuto a sereia e a custo me sustenho
e embora tenha tudo nada tenho
que em te não tendo tudo são castigos.

Só não me canta Homero. Mas como U-
lisses vou com meu canto como um barco
ouvindo o teu chamar -- Pátria Sereia
Penélope que não te rendes -- tu

que esperas a tecer um tempo ideia
que de novo o teu povo empunhe o arco
como Ulisses por ti nesta Odisseia.


TROVA DO VENTO QUE PASSA

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de sevidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.


ABAIXO EL-REI SEBASTIÃO

É preciso enterrar el-rei Sebastião
é preciso dizer a toda a gente
que o Desejado já não pode vir.
É preciso quebrar na ideia e na canção
a guitarra fantástica e doente
que alguém trouxe de Alcácer Quibir.

Eu digo que está morto.
Deixai em paz el-rei Sebastião
deixai-o no desastre e na loucura.
Sem precisarmos de sair o porto
temos aqui à mão
a terra da aventura.

Vós que trazeis por dentro
de cada gesto
uma cansada humilhação
deixai falar na vossa voz a voz do vento
cantai em tom de grito e de protesto
matai dentro de vós el-rei Sebastião.

Quem vai tocar a rebate
os sinos de Portugal?
Poeta: é tempo de um punhal
por dentro da canção.
Que é preciso bater em quem nos bate
é preciso enterrar el-rei Sebastião.

[0350]

[0349] Ricardo Domeneck, as ousadias das performances


Vivendo na Alemanha, Ricardo Domeneck nasceu em Bebedouro (Brasil, Estado de S. Paulo) em 1977. Escritor, poeta, artista visual, videomaker, editor da revista de poesia “Modo de Usar & Co.” e da revista electrónica “Hilda Magazine”. Foi um dos criadores na literatura brasileira da videoarte e um dos animadores da poesia sonora,


SEMPRE O EXÍLIO

                    a Roberto Borges

a.
              surpreso a quanta terra
              não me pertence, que
              engraçado descobrir (mais
              uma vez) que trocar de país
              não significa trocar de corpo
              e a mudança
              de língua
              é acompanhada pela permanência
da produção da
mesma saliva.

b.
              esta ilegalidade do meu corpo
desaloja-me a comida no
estômago
que permanece em ângulo
suspeito, a boca
arqueia-se, tesa –
e o barbante frouxo dos braços
a nenhum peito estreita-me,
esta pele estrangeira,
este cheiro novo.

c.
              a certeza finalmente
              de que a mão é incapaz
              da linha reta,
os ouvidos mais atentos,
as pontas dos dedos
mais ativas, despertas,
os ombros caídos, menos
por cansaço que por pesos
acumulados ao longo
de outros sonos;
quando as noções
de segurança
e cidadania
desaparecem e resta-nos
a condição.


O PLANETA DO MUNDO

De longe todo azul, de muito perto
terá outra cor, mas não a esmo. Reações
de átomos, essas coisas pequenas.
É a certa meia-distância (mas entre
o que e o quê?) que as cores
multiplicam-se. O palco
que está dentro do teatro sem o ser.
Quem me dera ver o mundo a partir
da Lua, ver o planeta de dentro
da estação de metrô da Consolação.
Na Muralha da China ver a Estação
Espacial Internacional e desta,
a Muralha da China. É que já não sei
distinguir entre as árvores
que morreram para doar a madeira
ao palco dos atores e às cadeiras
da plateia. Todos corpos, as árvores
dos assentos e as do tablado, das vigas
que suportam o teto sobre a gente
da performance e do público.
Esses corpos a esmo. Que escolhem
onde sentar-se para melhor
ver o espetáculo ou para estar ao lado
de um corpo que foi eleito a melhor festa
da cidade. Colisões. Coalizões.
Que não seja uma guerra, é só
o que pedimos. Interagir sem interferir.
A equidistância ideal e por ideal jamais
com sua própria estação ferroviária.
Sinto falta é dos lanterninhas dos cinemas.
Do sinal de ternura dos cães-guia.
De ler uma história para que durma
o ainda-não-alfabetizado. Avante, infante!
Façamos dinheiro então para hospitais
e rodas-gigantes se há o necessário
e há o imprescindível, ninguém
quer escolher entre o pão e o circo.
Nada é causa e tudo é consequência,
e acontece o que acontece quando acontece:
o pôr-do-sol na Praça do Pôr-Do-Sol
e os cânceres no Instituto do Câncer.
Até as células enlouquecem sozinhas,
decidem desviar-se de seu manual de instruções.
Por que não eu que as chamo de minhas?
Não foi a erros de cópia que devemos
esses pássaros de cores loucas,
esses mamíferos d’água como se peixes,
esses primatas pelados que amamos na cama
a cada cama, acarinhando seus pelos
restantes e finos? Somos tão peludos
quanto chimpanzés e bonobos,
essa primaiada toda, querido, são
apenas menores e mais frágeis as fibras
dessa roupa nossa nascida e dada
à qual acrescentamos o necessário, o imprescindível.
O mundo no planeta e o planeta fora do mundo,
mas não acaba a peça
se queima até o chão o teatro?
Não se ilumina por diligência as saídas de emergência?
Quantas mortes não ocorrem em cena.
Todas. Nenhuma. Esse mundo, que mundo,
que planeta ocorrível e aconteçoso,
esse vulcão que não se extingue até que se extinga,
esse mar que martela a praia constante,
mais abaixo, mais acima, como quem apalpa
o que dói, para dizer: ‘Aqui dói. Dói aqui.’
Dizer ah! e oh!, como uma criança
dizer a alguém que é protetor e progenitor:
‘óia eu! óia eu!’, essas vogais da descoberta
de si e do outro, a alegria
de que alguns de nós já nasçam
sem os dentes do ciso, sem marfim
já nasçam elefantes. Tudo é causa
e nada é consequência, e pede-se apenas
que se assista ao circo e que se assista o pão.
Que se ilumine o corredor
para os que chegam agora ao filme
que é trailer do trailer do curta-metragem
sobre um pôr-do-sol e um câncer.
Agasalhe-se, é por vezes inclemente o clima.
Acordou, querido? Acorde, querido.
Está com sede o cão-guia.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

[0348] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (4) Nuno Rebocho, a invasão do corpo


O habitual poema das terças-feiras de Nuno Rebocho: vadio de mundos (assim ele se chama), é, à sua maneira, um camaleão – absorve a cultura do ambiente que o rodeia. Assim aconteceu em Portugal, em Espanha, em Marrocos, na Córsega, em Cabo Verde. Tenta fazer jus à máxima: em Roma, sê romano.


EM CASA DE GARCÍA

fui a tua casa, Federico García. mas tu não estavas,
nem o Horto era o que então havia.
a porta fechada escondia lendas
vendidas com sobranceria.

tu não estavas, García, só o cicerone
da casa que não tiveste enquanto vagueavas
em busca da tua morte, mesmo a que não querias.
a tua casa, Federico, não é a tua casa:
é uma porta por onde se entra para um vão de escada
e uma escada por onde se trepa até aos silêncios.

granada nada sabe dos sortilégios
nem por onde rumam rotos de mortes,
nem por onde sonham despidos de mágoas.
a tua casa, García, já é branca e os curiosos
enfilam-se à porta com senhas nas mãos:
matam-te todos os dias, salvo nos de descanso.
e às cinco da tarde respeitam-te.

valem outras balas estas bulas de ironia
a cem pélas por visita, Federico García.
e os touros que então havia
e matavam como lhes cabia
são agora mansos ou embolados ou enojados.

crescem no Horto nem nardos, nem cardos
- só flores sem fantasia.
fui a tua casa, Federico García. mas tu não estavas.
os cicerones levavam-te para outra morte
em grupos de cinco. e cobravam a entrada.

[0347] Ana Maria Marques, a jovem poesia mineira

Ana Martins Marques nasceu em Belo Horizonte (Minas Gerais, Brasil) , em 1977. Professora e poeta, ganhou o Prémio Cidade de Belo Horizonte de 2007 e de 2008 e o Prémio Alphonsus de Guimarães de 2012.


DARDO 

Existe o corpo,
o eixo dos joelhos, as dobras,
a força teatral dos membros, o gosto acre,
o extremo silêncio,
as mão pendentes.
Existe o mundo,
as savanas e o iceberg,
as horas velozes, o falcão,
o crescimento secreto
das plantas, o repouso dos objetos
que envelhecem no uso, sem dor.
Existe o poema,
um dardo atirado a coisas mínimas,
à noite, às cicatrizes.
Um secreto amor os une,
as mãos na água, a memória do verão,
o poema ao sol.


TRADUÇÃO 

Este poema
em outra língua
seria outro poema

um relógio atrasado
que marca a hora certa
de algum outro lugar

uma criança que inventa
uma língua só para falar
com outra criança

uma casa de montanha
reconstruída sobre a praia
corroída pouco a pouco pela presença do mar

o importante é que
num determinado ponto
os poemas fiquem emparelhados

como em certos problemas de física
de velhos livros escolares


EM BRANCO 

Dizem que Cézanne
quando certa vez pintou um quadro
deixando inacabada parte de uma maçã
 pintou apenas a parte da maçã
que compreendia.

É por isso
meu amor
que eu dedico a você
este poema
em branco.


REGADOR

Num canto do jardim
onde alguém o esqueceu
pronto, ereto, o regador
aponta para o sol

embaraçadas por dentro
flores rápidas ou lentas
florem
findam

[0346] Valter Hugo Mãe

De seu verdadeiro nome Valter Hugo Lemos, nasceu em Angola (Henrique de Carvalho, hoje Saurimo) em 1971. Romancista, editor, artista plástico e poeta português, cofundador da Quasi Edições e fundador da editora Objecto Cardíaco, foi codirector da revista “Apeadeiro”. Recebeu o Prémio Almeida Garrett de 1969.


SE O VENTO É A IGNIÇÃO

se o vento é a ignição
das árvores venha o
temporal, elas ateadas sobre
as nossas cabeças, desmembradas
da terra como voadores desajeitados, meu pai
já conheço o vão da tua fome, peço-te,
faz de mim uma colher
divina


MODO DE AMAR

prometo ser-te fiel se mo fores
também, não é certo que mo venhas a
ser. por isso, já to perdoo

prefiro partir assim para o resto da
vida. assim, com os olhos abertos à
frustração e talvez à vulnerabilidade

não prevejo nada em concreto, acredita,
não tenho olhos para outras moças,
só o digo assim por ser verdade

que tarde ou cedo havemos de encontrar
nos outros motivos de inusitado
interesse, e depois, pergunto,

vale mais que acordemos um amor
sobreposto ao futuro, um amor agora
que tenha conhecimento do futuro

e não esperar mais nada senão
a verdade. a decadente verdade que
chega já depois dos primeiros beijos


A CAPITALIZAÇÃO DO AMOR

não escondemos que aprendemos a
capitalizar o amor, entregando
amplamente os nossos melhores
momentos às raparigas mais carentes.
o amor, sabemos bem, é o caminho directo
para a inutilidade, e nós procuramos as
raparigas que mais rapidamente se
inutilizem perante as coisas clássicas
da vida. não nos queremos atarefar com
a vulgaridade, e gostaríamos até de
impregnar cada gesto com características
alienígenas, mas o tempo escapa-se e o
dinheiro também e, se só pensamos no amor,
não temos como fazer de outro modo
senão vendê-lo entusiasticamente, como
fontes de trovões bonitos jorrando nas
praças mais movimentadas das cidades. e
as raparigas correm para nós urgentes
e cheias de vida, férteis de tudo quanto o
amor se abate sobre elas, uma alegria rica
de se ver, e nós a balançar os braços para
chamar a atenção de mais e mais e
já nem sabemos como parar, como forças
incontroladas, à semelhança de mecanismos
ferozes da natureza, e só sairemos daqui
quando desfalecermos de amor até
pelas raparigas mais feias

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

[0345] Ainda o último livro de Nuno Rebocho




[0344] José Luís Hopffer Almada, o longo fôlego da poesia cabo-verdiana


José Luís Hopffer Almada nasceu em Pombal (Santa Catarina de Santiago, Cabo Verde) em 1960. Usa também os nomes literários de Nzé di Santy Águ, Alfa Dofer Catarino e Erasmo Cabral de Almada. Formado em Leipzig, reside em Lisboa. É poeta, escritor, ensaísta, crítico literário, e animador cultural. Foi director do Gabinete de Assuntos Jurídicos do Governo da Praia, director da revista “Fragmentos”, co-fundador da Spleen-Edições, dirigente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos e coordenador cultural da Associação Caboverdeana de Lisboa


POEMAS DA CHUVA

I
Os meus horizontes são fugazes
porque do arco-íris construídos
do escarlate e do azul
lilases se extinguindo
sob os céus da Cidade Velha

Também o vulto de Cristo
crucificado
entre a nudez da palavra
e a inanição da ribeira

II 
a palavra.
a morte à cabeceira do sonho:
santiago ou nho nacho

oh! o insondável martírio
do verbo
entre as ervas das ribeiras

III
A bruma
húmida e só
cobre o dia

Um relâmpago
risca rápido
o meu coração

Uma ribeira
corre em catarata
na minha alma

A chuva cai
desvairada
sobre a apodrecida espiga
da minha boca

IV
A hidropisia da cidade
cobriu-se de fuligem

É agora a idade
dos grilos e de outros insectos
hílares como cítaras na noite

                                                               
São deveras memoráveis
estes tempos setembrinos

A chuva
promíscua
dorme
com os políticos
um sono sem pesadelos

VI
Os vegetais
como as éguas
esganiçam
com as primeiras águas

VII
Recolhem-se as baga-bagas
às luzes da noite

Encolhemo-nos nós
mais os gafanhotos
na sombra dos dias


ASSOMADA NOCTURNA

          À Vila que me viu crescer
          Aos meninos com quem cresci

Lembras-te, Digho
Das noites longas de Assomada
Feitas Far-West
E dos rios de fodjadas
Sob os nossos pés ritmando
de crianças
em loucas correrias verdes?

Todos nós éramos índios
Negros brancos e mulatos
Todos éramos pele-vermelhas
De escalpes crioulos

Lembras-te, Tchikosa
Das noites longas de assomada
Das varandas debruçadas sobre Assomada
E dos pardieiros feitos castelos
Riba Kontra Baxu Kutelu Kontra Somada
Nas noites longas de Assomada?

Todos nós éramos
Nhagar de coração
Plenos de Natal
Plenos de Assomada

Lembras-te, Djinhu
Dos bolos do Lito
Dos bolos da Miséria
Nas ruas feitas praias
E dos nossos corpos piratas estendidos
Nas noites longas de Assomada?

Todos nós éramos destinos de pés descalços
Plantas dos pés do Destino
Folhas podres do Destino

Lembras-te, Manú
Do corpo longo dos karapatis floridos
Do corpo longo das canções de crepúsculo
Do redemoinho de vento e do diabo
Nos campinhos de Achada Riba?

Todos nós éramos bolas velozes
Circulares de beleza
Rodopiando faca aos infernos

Todos éramos alegres espectros
Ardendo vegetalmente ante o mistério das plantas

Ai noites de Assomada
do longínquo rumor dos poilões
e da branca mensagem envolvendo
o voo das garças e dos milhafres
sobre Santiago de Caboverde e o rude verde das lemba-lembas

Ai noites de Assomada
da densa nocturnidade
velejando no vogar da memória
dos vermelhos rochedos
insertos
e Cruz dos Picos

Ai noites de Assomada
da ventania e da amnésia
erigidas sobre os olhares
como monumentos
à miséria

Lembras-te, Calú
das piscinas pútridas de vermes
onde íamos lavar
o olor das tristezas
e o odor do moribundo vento
doudo de dor
nas noites longas de Assomada?

Ai noites de Assomada
de adivinhas e presságios
inaudíveis
na noite de vivos guerreiros
de lobos e raposas imaginários
de polícias e ladrões
em acrobacias
de braços pernas
e pedras baças
esbracejando
lívidas

Ai noites de Assomada
Do suor escorrendo sob a fonte das estórias
Do medo dos pálidos deuses decapitados
Nas noites longas de Assomada

Lembras-te, Norberto
das vozes áfonas
loucamente  áfonas
sob os auscultadores do silêncio
sobre o corpo afómico
das buganvílhas de lábios vermelhos
nascendo
nas noites longas de Assomada?

Todos nós éramos pedras sentadas
sondando os destinos deste nosso Destino
destinos inertes destinos pétreos

Todos éramos almas de cinzas
e prenúncios de espumas
carregando as sombras da noite
a amargura da fome
nos cabelos crespos
e no cerne do coração

Todos éramos pesadelos de maremotos
e sonhos de Encantadas
nos regaços de Senhora-Mãe
prendendo as cheias
prendendo o céu
com o salitre da alma
com  as mãos estendidas
sobre o mar cizento
e as noites longas de Assomada

Lembras-te, Kuskus
das lanternas
noites sem lua
das lanternas
noites sem fôlego
das lanternas
nos rumores dos coqueiros
gemendo a música
das viúvas
no eco de Assomada?

Noites de Assomada
Noites deslizando
nas canções de Djungu longínquo
na superfície
nos lábios
das nossas vidas
Noites tropeçando
Nas armadilhas da Noite

Noites de olhos vendados
Noites de amor
Noites de desespero de tanta Noite
Noites nos ramos das velhas lemba-lembas
Noites na árvore saheliana
no nervo saheliano
Na frescura-nervo
De outros hemisférios

Pedras várias Suores vários
no breu de Gil-Bispo
em Santiago
Noites em marcha
durante a Noite infalivelmente violada
orgasmo de pés orgasmo de violas
orgasmo no ritmo no grito da mulher

viúva de risos viúvos da alegria
viúva dos caminhos
viúvos de caminhantes
da noite viúva
na noite solitária do cemitério dos prazeres
Noite espantada
Na mudez das vozes paradas
Proscritas perscrutando mais além

Noites horizontalmente esticadas
no silêncio dos castiçais
de pavio enorme
multiplicando
as explosões de luz

Noite clara
Noite visível n madrugada
No canto alegre do galo
Estridente
Ridente
De repente em manhãs verdes

Lembras-te,  Benny irmão
Lembram-se, mosinhus
lembram-se, ainda
das Noites de assomada
de Assomada

Noites longas
E sua nocturna e diária
Esperança
No cantar explosivo
- explosão de sóis –
e nas esporas guerreiramente
diurnas
do Galo di nha Somada?

Lembras-te ainda, Dhigo?

domingo, 28 de outubro de 2018

[0343] MÚSICA PARA O DOMINGO (6). Hoje, "Fala do velho do Restelo ao astronauta". Manuel Freire canta poema de José Saramago



FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti nem eu sei que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal soletramos, de olhos tensos, 
Maravilhas de espaço e de vertigem:
Salgados oceanos que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
(E as bombas de napalme são brinquedos),
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,

[0342] Carlos Alberto Machado, na crista da mensagem

Nascido em Lisboa em 1954, Carlos Alberto Machado é professor, escritor, poeta, actor e encenador, além de produtor cultural. Foi assessor do Ministério da Cultura e co-director da revista “Magma”. Viveu largos anos nos Açores (ilha do Pico).


POEMA

São três horas da madrugada
o comboio galga quilómetros
diz-se
as metáforas são o que são
e isso
sente-se
sobretudo nas curvas
mais apertadas
metaforicamente
chiando e chispando
de cada vez que a metáfora
galopante galopando cada quilómetro
entra numa dessas curvas de forma
friccionantemente indelicada
(violenta?) felizmente
tudo isto não passa
de uma ilusão é uma metáfora
demasiado arriscada para tão pouco
e velho comboio
ele que só gosta de deslizar
como um cisne
em largo e calmo
verde lago
metonímico.


"HÁ NA VERDADE"

Há na verdade
e na habitação
um raro problema
de ocasião.


SEM TÍTULO

Herdo de ti o que nunca tiveste
nunca eu to pediria se o houvesse
assim está tudo bem como as mágoas
essas não preciso que as deixes e
os rancores ficam para outros talvez
a passagem se faça sem sobressaltos
a escuridão dizias veio para ficar

[0341] Teixeira de Pascoaes, o saudosismo português


De seu verdadeiro nome Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, Teixeira de Pascoaes nasceu em Amarante em 1877 e faleceu em Gatão em 1952. Advogado e juiz, proprietário, escritor e poeta. Com infância introvertida, o misticismo marcou a sua vida. Foi um dos fundadores da revista “Águia” e um dos líderes da chamada Renascença Portuguesa.  


ENCANTAMENTO

Quantas vezes, ficava a olhar, a olhar
A tua doce e angelica Figura,
Esquecido, embebido num luar,
Num enlevo perfeito e graça pura!

E á força de sorrir, de me encantar,
Diante de ti, mimosa Criatura,
Suavemente sentia-me apagar...
E eu era sombra apenas e ternura.

Que inocência! que aurora! que alegria!
Tua figura de Anjo radiava!
Sob os teus pés a terra florescia,

E até meu próprio espirito cantava!
Nessas horas divinas, quem diria
A sorte que já Deus te destinava!


LXVII

Que saudades eu sinto desta flor,
Que vai murchar!
E desta gota de água e de esplendor,
Um pequenino mundo que é só mar.
E desta imagem que por mim passou
Misteriosamente.
E desta folha pálida e tremente
Que tombou...
Da voz do vento que me deixa mudo,
E deste meu espanto de criança.
Que saudades de tudo eu sinto, porque tudo
É feito de lembrança...


NO CREPÚSCULO

Nasce a luz do luar dos derradeiros,
Ermos, soturnos píncaros sozinhos...
Andam sombras no ar e murmurinhos
E vagidos de luz... e os Pegureiros
Descem, cantando, a encosta dos outeiros...

Tangendo amenas frautas amorosas,
Seus vultos, no crepúsculo, desmaiam
E assim como os seus cânticos, se espraiam
Em ondas de emoção. As fragorosas
Quebradas que o luar beija, misteriosas
Furnas, bocas de terra, murmurantes,
Arvoredos extáticos orando,
Rochedos, na penumbra, meditando,
Desfeitos em ternura, esvoaçantes,
Pairam também no espaço comovido,
Das primeiras estrelas já ferido,
Todo em luar e sombra amortalhado...

E eu choro sobre um monte abandonado...

E o Fantasma divino da Criança,
Sombra de Anjinho em flor,
Nos longes dos meus olhos aparece,
Como se, por ventura, ele nascesse
Da minha incerta e trémula esperança,
E não da minha firme e eterna dor!

E choro; e além das lagrimas, eu vejo
Aquele doce Vulto pequenino,
Em seu leito de morte e sofrimento;
Jesus martirizado, inda Menino...
E é como cinza morte o meu desejo
E como extinta luz meu pensamento!

Depois, a sua Imagem sofredora
Regressa á Vida, veste-se de aurora;
Os seus lábios sorriem para mim...
E aqueles verdes olhos cristalinos
Abrem-se radiosos e divinos,
E vejo-o então brincar no meu jardim!

Vejo-o como ele foi, como ele existe
No coração da Mãe por toda a vida!
Anjinho tutelar da nossa casa!
A divina Esperança florescida,
Brilhando além de tudo quanto é triste...
Longínquo Alivio, protetora Asa!

Mas de que serve? Eu choro sem descanso,
No meio da tristeza indiferente
Das Cousas que têm a alma sempre ausente...

Só eu na minha dôr nunca me canço.

Ó bruteza das Cousas! No infinito
E gélido silêncio, eu ouço um grito!
Na funda solidão que me rodeia,
Um ser apenas, tétrico, vagueia...

Quem grita? O meu espirito. E que importa?
É ele a errar no mundo solitário,
Sem principio nem fim, sem pai nem mãe!

Ó céu indiferente! Ó terra morta!
Ó grito de Jesus sobre o Calvário,
A subir no Infinito, cada vez
Mais cercado de trágica mudez,
Mas aflito, mais alto, mais além!...

Cousas que já fizestes companhia
A este espirito meu que, em vós, se via,
Porque me abandonastes? Ermo Vento,
Insónia do ar correndo o Firmamento,
Só vejo, em ti, loucura inanimada,
Revolta inconsciência destruidora!

Alta estrela, na noite, incendiada,
Passarinhos do céu, cantos da aurora,
Já não palpita em vós meu coração...
Sois o silêncio, a treva, a solidão.

Além de mim já nada avisto. As cousas,
Árvores, nuvens, serras pedregosas,
São penumbras que á luz do meu olhar
Se dissipam, de súbito, no ar.

De tal forma meu ser se concentrou
Na visão da Criança, que além d'ela,
Não vejo flor ou ave ou luz de estrela,
Límpido céu azul, verde paisagem!
Dir-se-á que o seu Espectro reencarnou
Em mim, - que não sou mais que a sua Imagem!

[0340]


sábado, 27 de outubro de 2018

[0339] No rescaldo do recente lançamento em Lisboa do último livro de Nuno Rebocho: "Histórias da História de Santiago" (Cabo Verde)

A sair na próxima edição de "O Tabuense", a 1.11.2018

[0338] Gomes Leal, o decadentismo anti-clerical


António Duarte Gomes Leal nasceu em Lisboa em 1848 e faleceu também em Lisboa em 1921. Poeta e crítico literário, escrevente de notário, teve juventude de miséria, na qual se fez vagabundo. Foi um dos fundadores do jornal “O Espectro de Juvenal”. Um dos decadentistas portugueses, caracterizadamente anticlerical, o que o aproximou das ideias socialistas de Antero de Quental. 


AOS VENCEDORES

Visto que tudo passa e as épicas memorias
Dos fortes, dos heróis, se vão cada vez mais,
Que tudo é luto e pó! ó vós que triunfais
Não turbeis a razão nos vinhos das vãs glorias!

Não ergais alto a taça, à hora dos gemidos,
Esquecidos talvez nos gozos, nos regalos;
E não façais jamais pastar vossos cavalos
Na erva que cobrir os ossos dos vencidos!

Não celebreis jamais as festas dos noivados,
Não encontreis na volta os lúgubres cortejos!
- E se amardes, olhai que ao som dos vossos beijos
Não respondam da praça os ais dos fuzilados!

Sim! - se venceste enfim, folgai todas as horas,
Mas deixai lastimar-se os órfãos, as amantes,
Nem façais, junto a nós, altivos, triunfantes,
Pelas ruas demais tinir vossas esporas!

Pois toda a glória é pó! toda a fortuna vã
- E nós lassos enfim dos prantos dolorosos
Regámos já demais a terra –ó gloriosos
Vencedores! talvez – vencidos d’amanhã!


SONETO

Outr’ora, outr’ora, em épocas passadas,
Tive uma santa Mãe de ideias maneiras,
Um recto Pai de barbas prateadas,
Tive prédios, jardins, fontes, roseiras.

Nos colégios, nas aulas, nas bancadas,
Não quebrei bancos, não parti carteiras;
Fiz bons exames, contas, tabuadas,
Mais tarde amei patrícias feiticeiras.

Fui amigo do Eça e do Ramalho,
João de Deus, mais do excêntrico Fialho,
E tive que emigrar para o estrangeiro.

Chorei, gemi! Qual Dante nas estradas!
E ao regressar, por causas avançadas,
 fui por três vezes parar ao Limoeiro.


ACUSAÇÃO À CRUZ

Há muito, ó lenho triste e consagrado!
Desfeita podridão, velho madeiro!
Que tens avassalado o mundo inteiro,
Como um pendão de luto levantado.

Se o que foi nos teus braços cravejado
Foi realmente a Hóstia, o Verdadeiro,
Ele está mais ferido que um guerreiro
Para livrar das flexas do Pecado.

H muito já que espalhas a tristeza,
Que lutas contra a alegre Natureza,
E vences ó Cruz triste! Cruz escura!

Chega-te o inverno, símbolo tremendo!
Queremos Vida e Ação- Fica-te sendo
Um emblema de morte e sepultura!


A SENHORA DE BRABANTE

Tem um leque de plumas gloriosas,
na sua mão macia e cintilante,
de anéis de pedras finas preciosas
a Senhora Duquesa de Brabante.

Numa cadeira de espaldar dourado,
Escuta os galanteios dos barões.
— É noite: e, sob o azul morno e calado,
concebem os jasmins e os corações.

Recorda o senhor Bispo acções passadas.
Falam damas de joias e cetins.
Tratam barões de festas e caçadas
à moda goda: — aos toques dos clarins!

Mas a Duquesa é triste. — Oculta mágoa
vela seu rosto de um solene véu.
— Ao luar, sobre os tanques chora a água...
— Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

Dizem as lendas que Satã vestido
de uma armadura feita de um brilhante,
ousou falar do seu amor florido
à Senhora Duquesa de Brabante.

Dizem que o ouviram ao luar nas águas,
mais louro do que o sol, marmóreo e lindo,
tirar de uma viola estranhas mágoas,
pelas noites que os cravos vêm abrindo...

Dizem mais que na seda das varetas
do seu leque ducal de mil matizes...
Satã cantara as suas tranças pretas,
— e os seus olhos mais fundos que as raízes!

Mas a Duquesa é triste. — Oculta mágoa
vela o seu rosto de um solene véu.
— Ao luar, sobre os tanques chora a água...
— Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

O que é certo é que a pálida Senhora,
a transcendente dama de Brabante,
tem um filho horroroso... e de quem cora
o pai, no escuro, passeando errante.

É um filho horroroso e jamais visto! —
Raquítico, enfezado, excepcional,
todo disforme, excêntrico, malquisto,
— pelos de fera e uivos de animal!

Parece irmão dos cerdos ou dos ursos,
aborto e horror da brava Natureza...
— Em vão tentam barões, com mil discursos,
desenrugar a fronte da Duquesa.

Sempre a Duquesa é triste. — Oculta mágoa
vela seu rosto de um solene véu.
— Ao luar, sobre os tanques chora a água...
— Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

Ora o monstro morreu. — Pelas arcadas
do palácio retinem festas, hinos.
Riem nobres, vilões, pelas estradas.
O próprio pai se ri, ouvindo os sinos...

Riem-se os monges pelo claustro antigo.
Riem-se vilões trigueiros das charruas.
Riem-se os padres junto ao seu jazigo.
Riem-se nobres e peões nas ruas.

Riem-se aias, barões, erguendo os braços.
Riem, nos pátios, os truões também.
Passeia o duque, rindo, nos terraços.
— Só chora o monstro, em alto choro, a mãe!...

Só, sobre o esquife do disforme morto,
chora, sem trégua, a mísera mulher.
Chama os nomes mais ternos ao aborto...
— Mesmo assim feio, a triste mãe o quer!

Só ela chora pelo morto!... A mágoa
lhe arranca gritos que a ninguém mais deu!
— Ao luar, sobre os tanques chora a água...
— Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

[0337] Luís Pimentel, poeta galego do abismo interior

De nome completo Luís Benigno Vázquez Fernández-Pimentel, nasceu em Lugo em 1895 e faleceu na mesma cidade em 1958. 

Médico e destacado poeta galego da Geração de 27, foi também artista plástico e músico. 

A sua escassa obra editada, considerada fundamental para a literatura galega contemporânea, tem traços que a podem identificar com o modernismo então em voga.

São de sua autoria os livros "Triscos" (1950) e "Sombra do Aire na Herba (1959, em língua galega).


ENTERRO DO NENO POBRE

Punteiros de gaita
acompañabano.
O pai de negro;
no mar, unha vela
branca.

Os amiguiños levabano.
Non pesaba nada.
Abaixo, o mar;
o camiño no aire
a mañá.

Il iba de camisa limpa
e zoquiñas brancas.
Os amiguiños levabano.
Non pesaba nada.


CUNETAS

¡Outra vez, outra vez o terror!
Un dia e outro dia,
en campás, sen protesta.
Galicia ametrallada nas cunetas
dos seus camiños.
Chéganos outro berro.
Señor ¿que fixemos?
-Non fales en voz alta-
¿Ata cando durará este gran enterro?
-Non chores que poden escoitarte.
Hoxe non choran mais que os que aman a Galicia-
¡Os milleiros de horas, de séculos,
que fixeron falta
para facer un home!
Teñen que encher ainda
as cunetas
con sangue de mestres e de obreiros
Lama, sangue e bágoas nos sulcos
son semente.

Docemente chove.
Enviso, arrodeame unha eterna noite.
Xa non terei palabras pra os meus versos.

Desvelado, pola mañá cedo
Baixo por un camiño.
Nos pazos onde se trama o crime
Ondean bandeiras pingando anilina.
Hai un aire de pombas mortas.
Tremo outra vez de medo.
Señor, isto é o home.
Todas as portas están pechadas.
Con ninguen podes trocar teu sorriso.
Nos arrabais
bandeiras batidas e esfarrapadas.
Deixa atrás a vila.
Ti sabes que todos os dias
hai un home morto na cuneta
que ninguén coñece ainda
Unha muller sobre o cadaver do seu home
Chora.
Chove.
¡Negra sombra, negra sombra!
Eu ben sei que hai un misterio na nosa terra,
Mais alá da neboa,
Mais alá do mar,
Mais alá da chuvia,
Mais alá do bosque


¿RECORDÁIS?

Hace tiempo ya,
he tirado la carga de libros
de falsos poetas.
Dos libros llevaba
para el regreso del sueño.
No os diré
quiénes eran los poetas.
Dos poetas esperaban
Temblorosos mi regreso

[0336] Pedro Tamen, poesia a roçar o clássico

Pedro Mário de Alves Tamen nasceu em Lisboa em 1934. Tradutor e poeta, foi um dos fundadores do Centro Cultural de Cinema, director da Moraes Editora e Presidente do Pen Clube Português e administrador da Fundação Calouste Gulbenkian. Recebeu o Prémio D. Dinis de 1981, o Grande Prémio INAPA da Poesia de 1991, o Prémio Bordalo de Literatura da Casa da Imprensa de 2000, o Prémio P.E.N. Clube Português de Poesia de 2001, o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava de 2006, o Grande Prémio de Poesia APE/CTT de 2010 e o Prémio Literário Casino da Póvoa de 2011.


TROCO-ME POR TI

Troco-me por ti
Na brasa da fogueira mal ardida
renovo o fogo que perdi,
acendo, ascendo, ao lume, ao leme, à vida.

E só trocado, parece, por não ser
na verdade conjugo o velho verbo
e sou, remido esquartejado,
o retrato perfeito em que exacerbo
os passos recolhidos pelo tempo andado


SEM TÍTULO

Acocorado como estava o escriba,
só não escrevendo, mas escravo sou
da matéria animal que do distante campo
veio curtida com ecos de verdura
e de tão lenta, infinda paciência.
Como ele cumpro destino de invenção,
de leve e não sabida descoberta
do mundo incompleto.
Mundo incompleto, e certo,
esse que preenche a minha cave
e lhe rasga as paredes.


O PONTO

Não dizer, não ditar,
não fazer, não ser,
não ser destino ou presciência,
estar mais escuro que o escuro,
nulo, coisa nada.
Não ponto nem desponto,
não há caixa onde o vazio caiba.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

[0335] Prémios do Pen Clube Português para obras publicadas em 2017

Com o apoio da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), o PEN Clube Português atribui os tradicionais Prémios a obras de autores portugueses publicadas em 2017. Com um júri composto por três elementos e decisões tomadas por unanimidade, foram distinguidos: POESIA - António Cabrita, “Anatomia comparada dos animais selvagens”, editado por Coisas de Ler (júri: Helena Barbas, Francisco Belard, Paulo José Miranda); ENSAIO - Maria Filomena Molder, “Dia Alegre, Dia Pensante, Dias Fatais”, editado por Relógio d’ Água (júri: Teresa Salema, Teresa Martins Marques, Rui Miguel Mesquita); NARRATIVA - Alexandre Andrade, “Descrição Guerreira e Amorosa da Cidade de Lisboa”, edição da Relógio d’ Água (júri: Maria João Cantinho, Fernando Pinto do Amaral, Pedro Eiras); PRIMEIRA OBRA - João Oliveira Duarte, “Uma Biblioteca contra o Inferno. Cosmos, a forma que Bento de Jesus Caraça encontrou para responder a um dos períodos mais negros da história do século XX”, editado pela Ego Editora. A sessão de entrega dos prémios terá lugar na Sociedade Portuguesa de Autores, a 29 de Novembro.

[0334] Um monumento, um poema (3) FLORBELA ESPANCA, Coimbra

Têm sido feitas diversas homenagens escultóricas públicas à poetisa alentejana de "Charneca em Flor", cuja biografia (ver AQUI) é por demais conhecida. Évora (a primeira), Vila Viçosa (sua terra natal), Oeiras, Matosinhos... e Coimbra, pela qual começamos. Trata-se de uma iniciativa do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, presidida então por Mário Nunes e foi erigido no Parque Dr. Manuel Braga, com inauguração a 8 de Dezembro (dia e mês do suicídio da poetisa) de 1994. Em pedra de Ançã, a peça é da autoria do escultor galego Armando Martinez (ver AQUI). O conjunto estilizado das duas figuras simboliza a poetisa e a sua obra.



TARDE NO MAR

A tarde é de oiro rútilo: esbraseia.
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Pousa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue o seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia,
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes...

[0333] Teresa Rita Lopes, a poesia em pessoa


Maria Teresa Rita Lopes nasceu em Faro em 1937. É professora, dramaturga, escritora, poeta e investigadora. Distinguida com prémios nas áreas de Teatro e de Ensino. Licenciou-se em Paris, tornando-se numa as principais investigadoras pessoanas. Foi directora do Instituto de Estudos sobre o Modernismo e foi fundadora da Universidade Nova de Lisboa.


AUTO-RETRATO

porque será que meus olhos tanto necessitam
de ver mar ao longe?
                             Ou pelo menos a água
de um rio
             para aí cheirar a sua raiz
Se calhar foi por tanto apetecer o azul
da água ao longe
                           que meus olhos são claros
e por tanto amar o mar
                           que meus desgostos
se tornaram destemidos e salgados
                                                      e têm
o voo a pique das gaivotas
                                         e o grito ácido
dos pássaros marinhos


AGORA QUE MORRESTE 

Agora que morreste Mãe

e só em mim te tenho

sou mais que o meu tamanho

porque sou tu também


Tuas mãos afagam minhas mãos

de quem são estes gestos esta pele?

Nunca me deste irmãos

só contigo reparto o meu farnel


de quotidianos fardos e alegrias

breves e desta brasa em chaga

que é tua ausência nos meus dias

órfãos mas sempre ao colo desta mágoa



de não te ter de te ter sido esquiva

de não te ter nunca aberto as portas

do meu ser de nunca te ter dado vivas

o que hoje já só são carícias mortas


A CADA UM O SEU NATAL

O aloés que vegeta num alcatruz de barro
na varanda
todos os anos dá flor por esta altura.
Por enquanto é só uma esguia pinha ponteaguda
prenhe de esperanças.
É homem mas está
de esperanças o meu cacto.
“Para ti será Natal em breve!
digo-lhe.
Mas só vejo um botão…
queixo-me.
É tudo o que este ano dás à luz?”
Ele ri-se,
doridamente:
“Também o Menino Jesus
é só um!
E desfecha-me:
Não vês que estou
a ficar velho?!”
Consolo-o:
“Também eu, amigo,
deixa lá!”
“Mas tu fazes versos!”
diz-me.
“E tu dás flor!”
respondo.


A ARRUMADORA

Era uma mulher que tinha sempre pressa e nem sabia bem de quê
Não podia estar parada
dizia
e por isso tinha que estar sempre a arrumar
tudo à sua volta.
Do que mais gostava era de pôr coisas no lixo.
Depois de arrumar o que já estava arrumado e ela desarrumara
para poder arrumar
punha no lixo tudo o que podia
e não podia:
toda a sua casa se queixava que lhe desapareciam coisas.
Morreu nova:
o deus que a criara imitou-a
e pô-la rapidamente
no lixo

[0332] António Nobre, a expressão do decadentismo


António Pereira Nobre nasceu no Porto em 1867 e faleceu também no Porto em 1900. Poeta decadentista, ultra-romântico, a tuberculose, que o vitimou, obrigou-o a percorrer sanatórios na Suíça, Nova Iorque, Madeira e Lisboa. De certa maneira foi um pré-modernista, rompendo (com a sua coloquialidade) com os cânones simbolistas


VOU SOBRE O OCEANO (O LUAR, DE DOCE, ENLEVA!)

Vou sobre o Oceano (o luar, de doce, enleva!)
Por este mar de Glória, em plena paz.
Terra da Pátria somem-se na treva,
Águas de Portugal ficam, atrás.

Onde vou eu? Meu fado onde me leva?
António, onde vais tu, doido rapaz?
Não sei. Mas o Vapor, quando se eleva,
Lembra o meu coração, na ânsia em que jaz.

Ó Lusitânia que te vais à vela!
Adeus! que eu parto (rezarei por ela)
Na minha Nau Catrineta, adeus!

Paquete, meu Paquete, anda ligeiro,
Sobe depressa à gávea, Marinheiro,
E grita, França! pelo amor de Deus!


VAIDADE, TUDO VAIDADE!

Vaidade, meu amor, tudo vaidade!
Ouve: quando eu, um dia, for alguém,
Tuas amigas ter-te-ão amizade,
(Se isso é amizade) mais do que, hoje, têm.

Vaidade é o luxo, a glória, a caridade,
Tudo vaidade! E, se pensares bem,
Verás, perdoa-me esta crueldade,
Que é uma vaidade o amor de tua mãe...

Vaidade! Um dia, foi-se-me a Fortuna
E eu vi-me só no mar com minha escuna,
E ninguém me valeu na tempestade!

Hoje, já voltam com seu ar composto,
Mas eu, vê lá! eu volto-lhes o rosto...
E isto em mim não será uma vaidade?


QUANDO CHEGAR A HORA

Quando eu, feliz! morrer, oiça, Sr. Abade,
    Oiça isto que lhe peço:
Mande-me abrir, ali, uma cova á vontade,
    Olhe: eu mesmo lh'a meço...

O coveiro é podão, fá-las sempre tão baixas...
    O cão pode lá ir:
Diga ao moço, que tem a prática das sachas,
    Que m'a venha ele abrir.

E o sineiro que, em vez de dobrar a finados,
    Que toque a Aleluia!
Não me diga orações, que eu não tenho pecados:
    A minha alma é dia!

Será meu confessor o vento, e a luz do raio
    A minha Extrema-Unção!
E as carvalhas (chorai o poeta, encomendai-o!)
    De padres farão.

Mas as aguias, um dia, em bando como astros,
    Virão devagarinho,
E hão-de exumar-me o corpo e leva-lo-ão de rastros,
    Em tiras, para o ninho!

E há-de ser um deboche, um pagode, o demónio,
    N'aquele dia, ai!
Aguias! sugai o sangue a vosso filho António,
    Sugai! sugai! sugai!

Raro têm de comer. A pobreza consome
    As aguias, coitadinhas!
Ao menos, n'esse dia, eu matarei a fome
    A essas desgraçadinhas...

De que serve, Sr. Abade! o nosso pacto:
    Não me lembrei, não vi
Que tinha feito com as aguias um contrato,
    No dia em que nasci.


OS FIGOS PRETOS

- Verdes figueiras soluçantes nos caminhos!
Vós sois odiadas desde os séculos avós:
Em vossos galhos nunca as aves fazem ninhos,
Os noivos fogem de se amar ao pé de vós!

    - Ó verdes figueiras! ó verdes figueiras
       Deixai-o falar!
    Á vossa sombrinha, nas tardes fagueiras,
       Que bom que é amar!

- O mundo odeia-vos. Ninguém nos quer, vos ama:
Os pais transmitem pelo sangue esse odio aos moços.
No sitio onde medrais, há quase sempre lama
E debruçais-vos sobre abismos, sobre poços.

    - Quando eu for defunta para os esqueletos,
       Ponde uma ao meu lado:
    Tristinha, chorando, dará figos pretos...
       De luto pesado!

- Os aldeões para evitar vosso perfume
Sua respiração suspendem, ao passar...
Com vossa lenha não se acende, á noite, o lume,
Os carpinteiros não vos querem aplainar.

    - Oh cheiro de figos, melhor que o do incenso
       Que incensa o Senhor!
    Pudesse eu, quem dera! deitá-lo no lenço
       Para o meu amor...

- As outras arvores não são vossas amigas...
Mãos espalmadas, estendidas, suplicantes,
Com essas folhas, sois como velhas mendigas
N'uma estrada, pedindo esmola aos caminhantes!

    - Mendigas de estrada! mendigas de estrada!
       E cheias de figos!
    Os ricos lá passam e não vos dão nada,
       Vos dais aos mendigos...

- Ai de ti! ai de ti! ó figueiral gemente!
O goivo é mais feliz, todo amarelo, lá.
Ninguém te quer: tua madeira é unicamente
Utilizada para as forcas, onde as há...

    - Que más criaturas! que injustas sois todas
       Que injustas que sois!
    Será de figueira meu leito da bodas...
       E os berços, depois

- Trágicas, nuas, esqueléticas, sem pele,
Por traz de vós, a lua é bem uma caveira!...
Ó figos pretos, sois as lagrimas d'aquele
Que, em certo dia, se enforcou n'uma figueira!

    - Também era negro, de negro cegava
       O pranto, o rosário,
    Que, em certa tardinha, desfiava, desfiava,
       Alguém, no Calvário...

- E, assim, ao ver no outono uma figueira nua,
Se os figos caem de maduros, pelo chão:
Cuido que é a ossada do Traidor, à luz da lua,
A chorar, a chorar sua alta traição!

    - Ó minhas figueiras! ó minhas figueiras
       Deixai-o falar!
    Oh! vinde de aí ver-nos, a arder nas fogueiras
       Cantar e bailar...

[0331] Luz Pozo Garza, o feminismo na poesia galega


Nascida em Ribadeo, Lugo, em 1922, de seu verdadeiro nome Dolores Elvira Pozo Garza, é uma veterana das letras galegas. Professora e poeta bilingue. O pai, membro da Izquierda Republicana, foi preso pelos falangistas duante a Guerra Civil de Espanha e o irmão foi morto na frente de Jaca. Viveu durante algum tempo em Marrocos (Larache). Fundadora da revista “Nordés” e promotora da revista “Clave Orion”. Poemário marcadamente feminista.


ANXOS CON PATÍNS BRANCOS NA PRAZA DE O GROVE

Andei as rúas doutros anos na vila mariñeira
Os vieiros que circunvalan espacios misteriosos

Meditei na ponte veneciana
No camiño iniciático
que leva á illa do tesouro
inda por descubrir

Por debaixo pasaban as ondas coma a vida
musitaban as aves as puras letanías
dunha levitación non aprendida

En procura de ti
xurdía a cegadora presencia da Lanzada
en liñas sinuosas que se ofrecen intactas
coma unha harpa
que fire o corazón de emoción sideral
Mística

Soaban as palabras de amor e mais a morte
Non aprendín aínda a escoitalas sen pranto?

?pero ninguén me viu chorar
agás dúas meniñas na praza do concello
cando lía eu a prensa
na apoiatura dun bloque de granito tallado:

Viñeron xunta min
Con patíns brancos
Con palabras purísimas de rula
Con ollos de solsticio
Con esguince de arcanxos
Con azas a porfía?

Un Anxo iniciativo. Outro moderador
Preguntáronme o nome
Preguntáronme a tabla de multiplicar
Os ríos de España
As fontes de enerxía

(Non sei se me aprobaron)

Dixéronme que viñan onda min porque me vían igual ca/
rula solitaria: ?si no es la tortolica que está
viuda y con dolor?

Non sabían os anxos
que estou aprendendo a vivir?


AGORA QUE REGRESA A PRIMAVERA

Agora que regresa a primavera
por riba de Seivane nas terras de Abadín
e vai deixando sámago nos bimbios.

Agora que retornan as floracións antigas
e unha bris delicada fragmento de escritura
vai liberando a alma.

Agora me decato da presencia do amigo
cando as aves concertan o equinoccio celeste
e os bois en Lamanide
levan na cornamenta unha roda solar.

Atrás quedou a aldea
a páxina purísima escrita en neve
o principio da patria
a pureza inocente que respiran os nenos
e dá tempero a alma.

¿Lémbraste, meu amigo?
A luz deixaba formas de saudade
e a frescura das pedras
podía modular os ámbitos do río
lámina impresionista na mañá fuxidía.
Era o tempo
en que as rapazas novas apañaban nos fieitos.

Lembraraste ás vegadas da mudanza das follas
dos espacios marcados por unha chuvia límpida
da textura da frol rosada das silveiras
da imprecisa distancia que vai da vida á morte
aló por Vilarente.
O serán descendía coma un palio
sobre das terras de Mondoñedo
no tempo dos hexámetros latinos.

Era a consagración da primavera
na materia das árbores na ledicia do vértigo
na memoria das églogas:
Silvestrem tenui Musam meditaris avena.
Viña a palabra nova
na fábula do amor no principio da música
no esplendor imprevisto das maceiras.
Chegaría unha carta de Virxilio:
Sunt nobis mitia poma.

Fuxían as escuras peonías
lonxe do corazón adolescente:
Aínda non entraras nos palafitos da morte.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

[0330]

[0329] Antologia "Sete" apresentada em Lisboa

É já no dia 3, sábado da próxima semana, pelas 18h30, que é apresentada em Lisboa na Livraria Poesia Incompleta (Rua de S. Ciro, 26, à Estrela, tel. 215981935 – poesia.incompleta@gmail.com) a antologia “SETE” editada pela editora Volta d’Mar (voltad’mar@gmail.com). Amadeu Baptista, Ana Horta, António de Miranda, Carlos Alberto Machado, Henrique Manuel Bento Fialho, Inês Dias, Jaime Rocha, Jorge Vicente, m. parissy, Manuel de Freitas, Nuno Rebocho, Rui Almeida, Rui Tinoco e Sandra Costa são os poetas representados nesta antologia. É ilustrado por Alexandre Esgaio.



[0328]


[0327] Pedro Mexia, a jovem poesia portuguesa


De seu nome Pedro de Magalhães Mexia Bigotte Chorão, nasceu em Lisboa em 1972. Jornalista, escritor, poeta e crítico literário, formado em Direito. É consultor para a Cultura da Casa Civil do Presidente da República e vogal do Conselho Directivo da Fundação Centro Cultural de Belém 


LISBOA, CALÇADA DE S. FRANCISCO

Subindo pelas cinco horas a Calçada de S. Francisco,
em tarde de bruma e versos na Calçada de S. Francisco,
partindo do que não sei na Calçada de S. Francisco,
e sabendo onde não chego na Calçada de S. Francisco,
subindo na tarde deserta a Calçada de S. Francisco,
só eléctricos e pombas na Calçada de S. Francisco,
estranhando o que não estranho na Calçada de S. Francisco,
e pensando no que não penso na Calçada de S. Francisco,
subindo pelas cinco horas a Calçada de S. Francisco,
subindo e ninguém descendo a Calçada de S. Francisco,
sem eventos para as metáforas na Calçada de S. Francisco,
tiro do bolso a própria tarde.
Na Calçada de S. Francisco,
onde a realidade mudou e já nada acontece,
e já não é a Calçada de S. Francisco mas a Rua Ivens
ou outra rua do Chiado sem meditação ou moralidade.


PARÁFRASE

Este poema começa por te comparar
com as constelações,
com os seus nomes mágicos
e desenhos precisos,
e depois
um jogo de palavras indica
que sem ti a astronomia
é uma ciência infeliz.
Em seguida, duas metáforas
introduzem o tema da luz
e dos contrastes
petrarquistas que existem
na mulher amada,
no refúgio triste da imaginação.
A segunda estrofe sugere
que a diversidade de seres vivos
prova a existência
de Deus
e a tua, ao mesmo tempo
que toma um por um
os atributos
que participam da tua natureza
e do espaço criador
do teu silêncio.
Uma hipérbole, finalmente,
diz que me fazes muita falta.


AUTO-RETRATO COM VERSOS DE CAMÕES

Foi-me tão cedo a luz do dia escura
enquanto me enganava a esperança
que naquilo em que pus tamanho amor
errei todo o discurso de meus anos.


HÁ NOMES QUE FICAM

Há nomes que ficam, sem préstimo, nas agendas,
transitam de ano para ano por inerência
ou desleixo, por vezes o nome próprio
é uma referência obscura, e nunca houve apelido.
Os números, em poucos anos,
passam de mnemónicas a criptogramas,
indicam sem dúvida que nos cruzámos
com gente que se cruza connosco,
que trocámos telefones como se
trocássemos alguma coisa,
mas tudo muda, os conhecidos
tornam-se amigos e depois desconhecidos.
Estes nomes, posso riscá-los
como se fosse velho e eles mortos,
mas os números, como uma praga,
acumulam-se, escritos
com tintas diferentes
e por vezes nas letras erradas.
Não posso desfazer-me das agendas
nem começar uma todos os anos,
mas já não sou o mesmo:
os números observaram as minhas idades
e talvez pudesse agora marcar este
que não me diz nada
e contar tudo
a alguém que não se lembra de mim.

[0326] David Hpffer Almada canta Cabo Verde de esperança

De regresso a este portal (onde é sempre bem-vindo), David Hopffer Almada traz-nos o seu canto de esperança. O seu país, em construção, é como todo o mundo: feito de contradições. Mas um paraíso perdido no Oceano, dez pontinhos achados no vasto mar. 


NÃO À HIPOCRISIA

Quando morrer
Não me venham cantar loas
Os hipócritas!
Desses não quero flores
Nem pêsames
Não quero consolação
Nem orações!
Não o quero ver
Não os quero sentir!
Na morte
Como na vida
Nem longe
Nem perto de mim
Os quero ter!


LIBERDADI DI CRIASOM

Nhôs deixam canta
Sima nta xinti
Nhôs deixam pinta
Sima nta ôdja
Nhôs deixam scréni
Sima voz di nha alm ta flam!

Arti câ tem dono
Arti câ tem padron
Nem patron
Arti câ tem mondon!


FIRMEZA!

Há momentos na vida
Em que a vida se decide!

Há momentos na vida
Em que é preciso escancarar a boca
Para, claramente, dizer sim
Ou abanar a cabeça
Para, com veemência, dizer não!

Há momentos na vida
Em que não e sim
Não s dão as mãos
Nem se podem confundir com um talvez!

Há momentos na vida
Em que tudo vale mais que a vida…
Até a própria morte!

Há momentos na vida
Em que a vida não sabe a vida!

Pois é!
Por isso posso quebrar
Mas não vou torcer
Posso perder
Mas não ceder
Posso enfim morrer
Mas não me vou desanimar
Os meus ideais
Meus sonhos, meu destino
Não vou trair!


CABO VERDE DE ESPERANÇA
                    in memoriam de Norberto Tavares

Gerados
Em diversos Continentes
Nascidos
De várias Mães
Somos filhos
De todos os Povos!

Formatados
Por diversas culturas
Cultura própria
Criámos!
Partilhando
Com outros
A Lusa Língua
Herdada
Língua própria
Crioula
Inventámos!

Cantando
Música feita
De vários sons
E tons
Dançamos
Ao ritmo
De vários compassos!
De várias massas
É feito o pão
Que comemos!
De múltiplas fontes
Brota a água
Que bebemos!

Salpicados no Oceano
Vivemos
No meio do mar!
Fincados
No meio do mundo
A todos os Continentes
Se estendem
Os nossos braços!

Somos Filhos
Deste Arquipélago
Vizinho do Cabo
Verde de esperança
E de certeza
Terra
Por Norberto Tavares
Cantada!

[0325] Augusto Gil e a poesia de gazetilha


Augusto César Ferreira Gil nasceu em Lordelo de Ouro em 1873 e faleceu na Guarda em 1929. Advogado e poeta, foi Director-Geral das Belas Artes. Orientou-se por uma perspectiva neo-romântica e a sua poesia ganhou popularidade.


O EDITAL

Manuel era um petiz de palmo e meio
(ou pouco mais teria na verdade),
de rosto moreninho e olhar cheio
de inteligente e enérgica bondade.
Orgulhava-se dele o professor…
No porte e no saber era o primeiro.
Lia nos livros que nem um doutor,
fazia contas que nem um banqueiro…
Ora uma vez ia o Manuel passando
junto ao adro da igreja. Aproximou-se
e viu à porta principal um bando
de homens a olhar o quer que fosse.
Empurravam-se todos em tropel,
ansiosos por saberem, cada qual,
o que vinha a dizer certo papel
pregado com obreias no portal…
“Mais contribuições!” – supunha um.
“É pràs sortes, talvez” … outro volvia.
Quantas suposições! Porém, nenhum
sabia ao certo o que o papel dizia.
Nenhum (e eram vinte os assistentes)
sabia ler aqueles riscos pretos.
Vinte homens e talvez inteligentes,
mas todos – que tristeza analfabetos!…
Furou Manuel por entre aquela gente
ansiosa, comprimida, amalgamada,
como uma formiguinha diligente
por um maciço de erva emaranhada.
Furou, e conseguiu chegar adiante.
Ergueu-se nos pezitos para ver;
mas o edital estava tão distante,
lá tanto em cima, que o não pôde ler.
Um dos do bando agarrou-o então
e levantou-o com as mãos possantes
e calejadas de cavarem pão…
Houve um silêncio entre os circunstantes.
E numa clara voz melodiosa
a alegre e insinuante criancinha
pôs-se a dizer àquela gente ansiosa
correntemente o que o edital continha.
Regressava o abade do passal
a caminho da sua moradia.
Como era já idoso e via mal,
acercou-se para ver o que haveria…
E deparou com esse quadro lindo
duma criança a ler a homens feitos,
dum pequenino cérebro espargindo
luz naqueles cérebros imperfeitos…
Transpareceu no rosto ao bom abade
um doce e espiritual contentamento,
e a sua boca, fonte de verdade,
disse estas frases com um brando acento:
Olhai, amigos, quanto pode o ensino…
Alguns de vós são pais, outros avós,
pois só por saber ler, este menino
— É já maior do que nenhum de vós!


QUANDO AS ANDORINHAS PARTIAM...

A Cassianno Neves
Boca talhada em milagrosas linhas,
A luz aumenta com o seu falar.
Esta manhã um bando de andorinhas
Ia-se embora, atravessava o mar.
Chegou-lhes ás alturas, pela aragem,
Um adeus suave que ela lhes dissera,
--E suspenderam todas a viagem,
Julgando que voltara a primavera...


CANÇÃO DAS PERDIDAS
                    a Vianna da Motta

I
Quem por amor se perdeu
Não chore, não tenha pena.
Uma das santas do céu
- É Maria Magdalena...

II
Minha mãe foi o que eu sou.
Eu sou o que tantas são.
Que triste herança te dou,
Filha do meu coração!

III
Meu pai foi para o degredo
Era eu inda pequena.
Se não morresse tão cedo,
Morria agora – de pena...

IV
E há no mundo quem afronte
Uma mulher quando cai!
Nasce agua limpa na fonte,
Quem a suja é quem lá vai...

V
Aquele que me roubou
A virtude de donzela
Se outra honra lhe não dou,
-É porque só tive aquela!...

VI
Nós temos o mesmo fado,
Oh fonte d'agua cantante,
Quem te quer, pára um bocado.
Quem não quer, passa adiante...

VII
O meu amor, por amá-lo,
Pôs-me o peito numa chaga:
Deu-me facadas. Deixá-lo.
Mas ao menos não me paga!

VIII
Nem toda a agua do mar
Por estes olhos chorada
Daria bem a mostrar
O que eu sou de desgraçada!

IX
Como querem ver contente
Este pais desgraçado,
Se dão só livros á gente
Nas escolas do pecado...

X
Dormia o meu coração
Cansado de fingimento.
Bateste-me, e vai então
Acordou nesse momento.

XI
Se aquilo que a gente sente,
Cá dentro, tivesse voz,
Muita gente... toda a gente
Teria pena de nós!