domingo, 30 de dezembro de 2018

[0527] Eduardo Guerra Carneiro, a poesia quotinocturna



Nasceu em Chaves em 1942 e faleceu em Lisboa em 2004. Jornalista, escritor, cronista, tradutor, argumentista e poeta, cofundador da revista “Setentrião”, cujo movimento integrou. Foi ainda cooperante na Guiné-Bissau.


AUTO-RETRATO

Quantas horas não choras a pensar
em ti - quando ando, desando,
neste viver sem mim.
Quantos anos sem tino. De mim
este cantar desencantado - assim.
Embora os dias me afastem já de ti
procuro saber do teu espaço,
nas casas brancas onde o azul desmaia. Sinal
de outro tempo em que ainda rias,
espaço meu. Afinal alteras, aterras, ó desenterrado.
Finges, desarmas, com teu gosto azedo. Procuras,
já vives, nas verdes veredas. Mas não sabes
nem queres, do teu ao meu, essa coisa
chamada amor.


AFINAL ACABO SEMPRE POR FALAR DE TI

Aqui de novo estou, cantiga, neste
lugar de eleição onde retomo a escrita.
É um vagar premeditado, no regresso ao corpo,
em demorado gosto de bebida dupla. Reparo: a carga
das palavras, canga difícil para quem
deste modo quer fazer o mosto. A poesia
já regressa, por entre cortinados e veludos
e o quarto, a sala, os corredores, o vão
da escada, ressoam com seus passos,
afinal tão leves - a neve no soalho,
difícil no silêncio. Dizia no regresso; assim
desfaço os nós do medo: floresta e engano,
areal distante. Sorris e tudo é novo.
Sim: acabo sempre por falar de ti.


O CAROÇO DO REMORSO

«Ele estava cada vez mais cansado e lá fora as maçãs caíam das árvores»
Peter Handke
)

Voltava-lhe outra vez aquele remorso:
a maçã de Adão não lhe cabia
na camisa. Mais do que o medo era
esse tal remorso: o ter deixado a meio
qualquer coisa que podia ter feito.
Procurava razões e nem bolsos tinha
onde as encontrar; fingia esquecer
e outra vez, anda, o remorso batia
no seu cansado peito. Não falemos
de sentidas dores, mágoas, mesmo
da sentimental lágrima: o sentido
é outro. Assim: remoía o caroço.
Mas estava cada vez mais cansado
e lá fora as maçãs caíam das árvores.
 

Sem comentários:

Enviar um comentário