terça-feira, 30 de abril de 2019

[0645] Luís Árias Manzo, um antigo exilado chileno


Poeta chileno, nasceu em Melipilla em 1956. Teve que se exilar na França,em consequência da ditadura de Pinochet, regressando ao seu país em 1991. Fundador e secretário-geral do Movimento Poetas del Mundo e autor do Manifesto Universal dos Poetas del Mundo.


HACE CUÁNTO NACI?

Así de pronto me desperte, un dia

Una noche
De un sueño largo volvi a nacer
El tiempo cabagó mis llanuras vacias
Se me escapó de las manos
Se me fue entre los dedos desde la vida
y he vuelto a nacer junto a ti


AMOR ETERNO

Cada minuto es eterno
en e recuperación

de lo que no fue en el renacimiento
en cada hora que pases
en los instantes nuestros
en la grandeza de lo que fumos
en loque dejamos de hacer
en cada minuto tuyo y mio,
hemos crecido el uno en el outro
por nuestri amor eterno


UN DIA LARGO SIN TI

Hoy me quedé solo
senti llorar a los pájaros
y a las olas del mat
estrellarse contra las rocas.
La tierra muge en las cuchilas del arado
y los pasos el labrador se repiten em mis oídos.
Este es un dia en tu ausência
desde mi espácio triste busco tu voz
en el silencio inconmovible de la casa y de sus muros.
Hoy se destiñen los recuerdos viejos
há olvidado mi nombre
y el mundo que existe fuera de nosotros.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

[0644] Amarildo Anzolim, uma voz original


Nascido em Curitiba (Brasil) em 1970, Amarildo Anzolim é homem dos sete ofícios: radialista, revisor e produtor cultural,  compositor e roteirista, entre outras actividades.


PORTA

à minha frente
a porta
não sabe a que veio
espera que eu entre
eu, que ela saia?
o medo é o nosso meio
não espero sua resposta
sua memória é o meu horizonte
o vento bate a palavra certa:
porta-se

uma porta não espera por ninguém


MÁQUINA DE LAVAR

na máquina de lavar
as roupas se movem
sem gestos sem braços
sem pernas sem passos
não caminham
não se deitam
na lavagem
o suor a raiva a culpa o desejo
o amor
vai tudo embora
não sentem
mais nada
sem o corpo

sexta-feira, 26 de abril de 2019

[0643] Gisela Ramos Rosa, uma moçambicana em Lisboa


De seu nome completo Gisela Maria Gracias Ramos Rosa, nasceu em 1964 no Maputo, Moçambique. Licenciada em Relações Internacionais, antropóloga, ligada a grupos periféricos em sociedade. Vive em Portugal, perita forense no Ministério da Justiça. Foi galardoada com o Prémio Glória de Sant´Anna de 2014. 


SEM TÍTULO

Levem-me, digo às palavras que me acolhem
não esperem pelo pensamento que tolhe e conduz
a expressões reguladas e contraditórias. Abram-me
a porta do verso que é frente em simultâneo gesto.
Levem-me pelo verso até ao poema e suprimam
a gramática que corrige e diferencia. Escrevam-me
sem mapa sempre que puderem e sem que eu dê
conta desse imenso gesto


SEM TÍTULO

                    À minha mãe, a todas as mulheres da Terra

As raízes da Terra dançam na pele
do mundo, elas sobem descem, procriam
são prismas iluminados que desbravam
alimentam conciliam
Elas tocam o chão com pés de água
e não repousam na ambição
do húmus, em seus grãos prosseguem
já os troncos com asas de destino,
altas elevam-se num corpo de tesouro e mistério
As raízes da terra são espelhos de água
que atravessam os rios num leito de silêncio
são canoas com jacintos da estação
elas são a alegria côncava do mundo


SEM TÍTULO

Escrevo para sarar a asa ferida da origem
e num movimento de dança liberar o impulso
da imagem incompleta com afecto
venho a esta casa reconhecer o fogo onde
construo voos serenos que trago na percepção
dentro do espaço, um espelho de íntima sombra
na claridade de um instante
e porque à memória não devo o sacrilégio
do fogo roubado, encontro a flor inesperada
da montanha no momento em que tudo se toca
ainda que na outra asa surja a cumplicidade
dos pássaros embriagados pelo fogo da rota
as mãos abrem e sagram o invólucro branco
que me guarda
e volto ao entendimento da pele, em certos dias
em que o fogo irrompe em transparência e isso
bastará para abraçar com subtil afago todos
os signos da bondade

quinta-feira, 25 de abril de 2019

[0642] Óscar René Benítez, uma voz de El Salvador


Residente em Los Angeles, Estados Unidos, nasceu em El Salvador, poeta, jornalista e animador cultural, é vice-presidente do Movimento Poetas del Mundo, foi jornalista na Califórnia.


ASÍ

Como el ala de um pásaro muerto
abandonada y moviendose
acostumbrada al viento
como deseosa de alzar al vuelo

Coomo los viejos sapatos
acostubrados al caminho y a los pasos
se quedan solitários
cual dos navios naufragado,
ya sin el sonido de las piedras.
Así
persiste entre mi angustia la tristeza


MIENTRAS SUSPIRAS

Emerges del silencio vestida de nostalgia,
y del melancólico manto con que se cubre el tiempo
van desprendiéndose los instantes que juntos dibujamos.
¡Y eres tú! mujer de piel de luna llena
la que ahora acorta la distancia
invadiendo los sentidos.

Ahora me recordarás quizás mientras suspiras,
¡ay! pasaste del llanto a la añoranza,
de la añoranza a la esperanza y después
a la resignación como último recurso.
Pero no hubo espacio en tu corazón para el olvido.

En la densa niebla del tiempo transcurrido
aún se adivinan los atardeceres:
nosotros tomados de la mano,
un solo asiento en el autobús para los dos,
un solo plato para la cena,
tus ojos mirándome tiernamente,
y la pasión de una juventud que se nos escapó.

Muchas fueron tus lágrimas, mujer.
Y aunque me esperabas sabías que no volvería,
que aquel vacío que en tus brazos yo dejaba
como el tiempo y la distancia también era interminable.
Yo guardé las mías, las apretujé en mi corazón
y por las noches se escapaban en avalanchas de sollozos
que me hundían en un insomnio demente y lastimoso.

Como antes, hace tanto tiempo ya,
rompías mi silencio con un beso dulce y un suspiro,
ahora lo llenas con tu recuerdo
y aferrada vives aquí en mi corazón.


EL ÚLTIMO SUSPIRO

De modo que te tragó la distancia.
Es como goma de mascar, se estira,
mientras te envuelve un manto de nostalgia.
Y dejaste una mujer que suspira,
hijos con ojos llenos de esperanza.

No sabes cómo, pero estás despierto,
persiguiendo un sueño -o quizás dormido,
crees estarlo- al escuchar el gemido
de aquellos que mueren en el desierto
abatidos por la sed y por el hambre.

Entre el cactus -soldado traicionero-
y el sol inclemente, asfixiante y duro,
tumban tus sueños, trizan tu futuro.
En el juego el horizonte es primero,
huye, se esconde, se acerca, se aleja...

Y aparecen de pronto los delirios,
aleteando van y vienen, enjambre
graznando muerte, penas y martirio
en tus ojos velados por el hambre.

¡Del alma se te escapa un alarido!

Al partir todos te desearon suerte,
la mujercita entre llantos y los niños,
entre risas, haciéndote cariños;
no vieron los coqueteos de la muerte
ni escucharán hoy la agonía de tu queja.

Erróneamente hay muchos que te llaman
Mojado con odio y con desprecio,
adjetivo vano, palabra rota...
Tus labios buscan agua y ¡ni una gota
que sacie ya la sed en tu garganta!

Mojado te nombró algún hombre necio
mientras mueres de sed bajo una planta
sin sombra ni hojas, armada de espinas.

Deja tus sueños, que te cubra el manto
de la noche profunda y aniñada.
Tus ojos se quedan ¡ay! sin más llanto
y el norte se hizo polvo, se hizo nada.

Pero duérmete en paz, hermano iluso,
lejos del suplicio de las esquinas,
la discriminación y del abuso,
del gringo explotador y la miseria.

Yo pido que duermas en paz hermano
desde mi oscuro porvenir incierto
pues tu último suspiro en el desierto
ya se quedó apretado aquí en mi mano.

[0641] Mercado da Língua Portuguesa em Cascais

O Mercado da Língua Portuguesa, no Mercado da Vila em Cascais, decorre de 3 (a partir das 18h00) a 5 de Maio, e homenageia a língua portuguesa e a união das várias culturas pelo mundo, divulga o artesanato, a dança, a literatura, a música e os sabores de todos os continentes. É numa iniciativa da UCCLA em parceria com a Câmara Municipal de Cascais.

Programa:

No dia de abertura haverá Dança do Leão - Clube Kung Fu Hong Long (Macau), música por Djumbai Djazz (Guiné-Bissau), danças e músicas tradicionais Batucadeiras FinKa-Pé (Cabo Verde) e terminará com música de Piki Pereira (Timor-Leste). 

A 4 de Maio, Gaitas de Foles pelos Gaiteiros da Xuventude de Galicia (Galiza) e Kung Fu pelo Clube Kung Fu Hong Long (Macau), Afro Mandinga por Mamadú Baio e convidados (Guiné-Bissau), Cante Alentejano pelo Grupo Coral os Vindimadores (Portugal), Semba e Kazucuta por Chalo Correia e os bailarinos Pawel & Marly (Angola), Guitarra Portuguesa por Carlos Sanches (Portugal), BOSSA & Outras Novas por Sílvia Nazário e Cláudio Kumar (Brasil), Fado com Filipa Maltieiro e David Ventura acompanhados à guitarra por Armando Figueiredo e Nuno Siqueira e à viola baixo por Luís Morais (Portugal), semba com Luiana Abrantes (Angola); coladeras, mornas e funaná por Zezé Barbosa (Cabo Verde) e dexa, rumba, socopé e outras músicas com Tonecas Prazeres (São Tomé e Príncipe). 

A 5 de Maio, dança e música pelo Grupo Evkat (Goa) e a Fado pelo Modus de Fado (Portugal), uma tertúlia literária moderada por José Fanha, com o tema “Os Falares da Língua Portuguesa: Um Contrabando de Afetos”, Celina Veiga de Oliveira (Macau), Emerson Sousa (Angola), Goretti Pina (São Tomé e Príncipe), Júlio Meirinhos (Portugal - mirandês), Maria Luísa Timóteo (Malaca), Tatiana Levy (Brasil) e Valentino Viegas (Goa), Brais Fernández (Galiza), Fátima Guterres (Timor-Leste), Filinto Elíseo (Cabo Verde), Ricardo Araújo Pereira (Portugal), Sheila Khan (Moçambique) e Tony Tcheka (Guiné-Bissau), actuação da Cultura Makonde por Malenga (Moçambique) e Viva o Samba (Brasil).



[0640]

quarta-feira, 24 de abril de 2019

[0639] Magy Gomez Sepúlveda, uma voz vinda da Colômbia



Nascida na Colômbia, em Bucaramanga, Santander, em 1968, professora de Psicologia e subsecretária-geral do Movimento Poetas del Mundo. Vive no Chile. Participou em vários Encontros de Poesia na Colômbia, Chie, Perú, Brasil, Cuba e Taiwan.


AROMA DE PIEL

Por mi piel, tu piel
por mi cuerpo las huellas
en tus dedos

Por mis ansias, los latidos
de tu corazon
Por mi miente la libertad
de entender lo que es amar


MI SECRETO

Nuestro secreto la inspiración
del alma soñadora,
deslimbrada, oscura y amante

Mi secreto,
nuestro secreto
el sussurro del amanhecer
con miedo,
sin miedo
y en la almohada
el calor de nuestros deseos
y en mis caderas
la energia fluente de la vitalidade
en movimento.

[0638] N.º 5 da revista "Nervo"

O nº 5 da revista “Nervo”, correspondente ao quadrimestre de Maio a Agosto de 2019, está disponível a partir de 2 de Maio e contará com as seguintes participações: Ana Paula Inácio,  David F. Rodrigues, Edgardo Xavier, Eduarda Chiote, Emanuel Matos-Drago, Francisca Camelo, Jesús Jiménez Domínguez (Espanha), João-Paulo Esteves da Silva, Luis Muñoz (Espanha), Miguel Filipe Mochila, Paulo José Costa, Pedro Mexia, Pedro Seabra, Zetho Cunha Gonçalves. As ilustrações e a capa são do artista plástico Emerenciano Rodrigues.

terça-feira, 23 de abril de 2019

[0637] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (25) Nuno Rebocho, o inquiridor


Rebocho perscruta-se sem remorso, num constante mergulhar na sua intimidade, sem desculpas se desnuda, expondo-se com insistência. È exemplo este poema de “Canto Finissecular”


O CADÁVER ADIADO

tarde de sexta-feira: aberto vinte e quatro horas, como quem mastiga rusticidades, com o mundo da moda esquecido na rua dos possíveis. convido-te. vamos construir.

Há um som de trompete aqui perto e
as escalas funcionam a partir do dó. O
trompete (o som) salta para a rua desde
uma janela na berma de uma casa. Está
lá dentro: é suposto. O som inaugura-se
a quem passa dentro dos ouvidos: adivinho
do lado íntimo da parede o objecto trompete
e adivinho mãos e lábios, isto é, o prenúncio
de um corpo. O som é a pegada do invisível
e o trompete o seu pretexto.

Assim se constroem as coisas com as mãos dos ouvidos.

A casa é o bolor da atenção. Dentro da casa
escolhemos os sabores e o teatro
faz-se de ressonâncias. Aqui me dispo. Um
pardal seduz-me desde a rua na berma
da janela. É um som que marca a presença
do exterior e bole com a intimidade alcançada
e impede de dar ouvidos ao que o sangue diz.

As paredes definem o espaço e limitam o eu:
estou na piscina dos meus pensamentos.

Assim se constroem as coisas com as mãos dos olhos.

Portanto escrevo. Cada caracter tem o carácter
dos sons e agarra os átomos da sensação: o murex
desenha-se a partir do manto e logo se expõe. Fibra
a fibra a carne desmancha-se sobre o papel
e os ossos aceitam-lhe a forma e logo a linfa
adeja como um sopro. A atenção dispersa-se
no labirinto e só as letras inauguram
o acontecimento de escrever.

Assim se constroem as coisas com as mãos das mãos.

          Meu caro: perguntas o que é a arte e tens medo
  do vento quente. Se a vida é o diverso e
  o contrário, porque limitas o acontecimento?
  Vive e não te escandalizes: se uma pedra
  cair de baixo para cima, acontece porque pode
  e não te mandes ao mar se alguma vez.
  Vai ao mar se queres, não te justifiques: o mar
  não precisa das tuas razões.

manhã de sábado: um anjo do senhor anuncia que o nevoeiro se dissolve e posso aligeirar as pernas pelas alamedas da alegria. não importa que os castanheiros se despejem das folhas. a manhã há-de clarear pela vontade dos olhos e o sol denuncia-te em parte incerta. convido-te. vamos destruir.

Há um som de um cão aqui perto e
a paisagem assusta-se. O canídeo é o trânsito
único na única rua de eu estar sentado a ouvir. Surge
depois a mentira de um canto de canário. Subversivo
o trinado que não respeita a gaiola e incomoda
o ladrar do cão que assusta a rua. Sentado a ouvir
sou cúmplice do canto que sai da gaiola e do
canário. E sou cúmplice do canídeo. O outro lado
das ausências (o da intimidade) mora
na explicação dos sons.

Assim se destroem as coisas com as mãos dos ouvidos.

A casa é de onde se parte. Está fora da estrada. Está
fora de onde os sons vêm e não se vêem. A casa impede
a visibilidade e por isso se diz que é opaca e por isso
me dispo para lobrigar o interior de mim mesmo. E me
refastelo. São horas de aparições e aborreço-me
que outras danças apaguem o horror
de esgrimir as sombras. Aborreço-me porque quero
ser exacto. Sobretudo aborreço-me dos porquês quando
descubro que as paredes são a pele da minha ausência.

Assim se destroem as coisas com as mãos da pele.

Portanto escrevo. As palavras são o vício
e substituem o sofrimento: dizemos o receio sem vírgulas
e atascamos onde as palavras implodem as lamas
do esquecimento. Escorregamos até ao aconchego
das imperícias para nos rasgarmos - esse é o prazer
das carícias. Nunca as mãos libertam
já que são elas que constroem as redomas: temos
o nojo da liberdade e escrevemos para ser exactos.
E dizemos.

Assim se destroem as coisas com as mãos da boca.

Meu caro: se não gostas de me
ler, não discutas. A minha eternidade
dispensa-te. Fecha o livro que te amarga
e escolhe outro pois essa é a tua razão.
As palavras minhas não se obrigam
a deleitar-te. Preferem adormecer no tempo
até que alguém algures num outro calendário
as maneje num monstruário de curiosidades.
Saberei nesse tempo da minha eternidade.

tarde de sábado: de súbito o trovão destrói a ilusão de quietude. as ameaças arrastam os pés com o reumático das descobertas e alinham-se para o golpe dos cheiros inacabados como as formigas teimam no transporte dos restos. convido-te. vamos reconstruir.

Há um cheiro de quem chega ao limite e a casa
esfarela-se enquanto o telefone toca.
Uma palavra inscreve-se
no tutano da tarde: ansiedade. Mas nada de perguntas.
Graças a deus protegemo-nos porque não temos
a ubiquidade e conservamos os porquês na algibeira
das retóricas. Está decidido: limpo a casa. O aspirador
desfaz o pó do meu estar. O detergente apaga-me as
pegadas. Quando me separo dos aromas as superfícies
brilham sem as manchas do meu convívio.

Assim se reconstroem as coisas com as mãos dos hábitos.

E há um quadro que é uma cana de pesca. E
há um copo que é uma guilhotina.
E há um sapato desbraguilhado.
E há uma cadeira que é uma roda. E a capa de um livro. E
um candeeiro sem olhos: o que as coisas podem ser
despidas do outro lado enquanto me visto de conveniências.
E me revisto de sorrisos que outrem atraem
ao mel das circunstâncias. Estamos encadernados
nas prateleiras do dia a dia dos outros.

Assim se reconstroem as coisas com as mãos das normas.

Por isso digo e escrevo: porque me defendo. O rabo de
um porquê salta do esconso da imensidão
e fere o totalitarismo das companhias. Aqui não há
desculpas: há que ser assim. O templo está alugado
à hora para o deus que primeiro chegar
ao espaço que sobeja. Depois amanhamo-nos
de preces necessárias e de beatitudes
escolhidas no prontuário das felicidades. Amanhã
é outro dia e estaremos prontos para a sequência.

Assim reconstruímos as coisas com as mãos do zelo.

Meu caro: não retenhas as urinas à higiene
da solidão. Deixa-te envolver como as árvores
obedecem ao curso das estações. Desiste do
convencimento das tuas lágrimas que pesam
como chumbo e resguarda-te e sobrevive. Hão
de transcorrer os dias sobre os edemas e tu
serás flor. Outra vez flor com a morte aquecida

segunda-feira, 22 de abril de 2019

[0636] 3 de Maio, dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP

Decorre no dia 3 de Maio (uma sexta-feira), no auditório da CPLP em Lisboa (R. de São Mamede 21), sob o lema “A Cultura e a aproximação dos Povos da CPLP – realidades, desafios e perspectivas futuras”, a celebração do Dia 5 de Maio, Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP.

[0635] Tertúlias Poéticas do Casino: homenagem a Timor-Leste

As Tertúlias Poéticas do Casino, uma projeto cultural da Associação de Moradores e Empresários do Parque das Nações, em conjunto com as Embaixadas dos países lusófonos da CPLP, do Casino de Lisboa  (Alameda dos Oceanos 45) e da UCCLA, homenageia a 30 de Abril (uma terça-feira), às 21H30, o poeta timorense Francisco Borja da Costa, com apresentação do irmão Luís Costa e da Encarregada de Negócios da Embaixada, Maria Lourdes de Sousa.

[0634] Bienal de Culturas Lusófonas em Odivelas

Odivelas volta a ser a Capital da Lusofonia, de 2 de Maio e 1 de Junho: a sua Câmara Municipal promove a VII Bienal de Culturas Lusófonas oferecendo um conjunto de iniciativas dedicadas, em exclusivo, à língua que nos une e enriquece a multiculturalidade e a interculturalidade que caracterizam e identificam o concelho:  Feira do Livro de Autores Lusófonos, exposições diversas, Feira Multicultural, o Fórum Lusofonia, o Desfile Multicultural e o Encontro de Escritores.

[0633] Novo livro de Mário Galego

Será no Salão Mar-Alto, Biblioteca da Nazaré, a 4 de Maio, às 17h30.o lançamento do livro “Era uma Classe - biografia de Silvino Marques Pais da Silva”, da autoria de Mário Galego e edição da Biblioteca da Nazaré e da Volta d’Mar.. Convidados: Carlos Cavalheiro, Joaquim Talhadas e Rute Pais da Silva, com projecção de filme por Joaquim José Batalha, música por Altino Borda d'Água, Carlos Cavalheiro, Luís Russo, Mário João, Raquel Pais da Silva, Vitó e outros.



[0632] VIII Encontro Triplov

Acontece a 25 de Maio, a partir das 14h00, o Oitavo Encontro TriploV no Convento de São Domingos de Benfica (Rua João de Freitas Branco, 12, Lisboa, com um Programa do Encontro (temas: Os portugueses em África | Livre), aberto por Maria José Camecelha, com uma Ronda de Poesia (Maria Azenha, Rui Grácio, Manuel Santos, Francisco Nunes,.Paulo Brito e Abreu, Filipe de Fiúza, que fará o| Lançamento de Arum)  e Ronda de Ensaio (com Manuel Rodrigues Vaz, Jorge Caseirão, Rui Sousa sobre “Surrealismo”, Marcia Kupstas, que fará o lançamento de  “Balada dos Rockeiros Mortos e Anjos Caído” e Maria José Camecelha). Encerrado por Maria Estela Guedes e Manuela Jardim Maria Estela Guedes fará ainda o  lançamento de “Aqui, África e Clitóris, Clítoris”

[0631] Ana Rüsche, a poesia que nos chega de São Paulo, Brasil


Escritora e poeta brasileira nasceu em S. Paulo, em 1979. Foi Prémio ProAC, 2010. É apresentadora de poesia na Rádio Sens.


O CORPO É UM CORPO

o corpo é um campo
de batalha
se diz faca diz faça
se diz toque diz toca
esconde encolhe esconde

meu campo é um campo
de batalha
de apanhadores
e quando se dirá
amanhecer flauta
águas-vivas líquens
piratas areia quente
cavalos grávidos de mar?

: mais que nada se dirá
quando
um corpo for um corpo
um corpo for um corpo
um corpo é um corpo
um corpo é um corpo


AMA COMO A ESTRADA COMEÇA

bruxo,
me dê um arpão
e trague todo o mar, pois
hoje eu mudo de nome.
feiticeira,
me dá o que não se pode nomear,
pois hoje estou somente água descarnada de tinta e papel
e agora é a hora.
me dá tudo,
pois o destino está adentro
e a estrada não tarda.
a queimar, água-viva de caminhos, me inundo.


DEPOIS DA DOUTRINA DO CHOQUE

agora que os céus caem
agora que os demônios são meus olhos
agora que 16h20 é alta madrugada
agora que 666 é um número de crianças
agora que o céu cai
e que nada pode ficar
e que nada pode ficar
e que nada pode ficar


talvez você tenha que começar a correr

[0630]


[0629] Caio Camacho, um agitador cultural


Caio Gonçalves Brugioni nasceu em S. Paulo e mora em Piracicaba. Aditador cultural, organizador da “Picareta Cultural”, é um dos curadores da OFF FLIP.


DEFINIÇÕES

eu sou o tiranossauro contemporâneo
rei do braço curto
tentando abraçar com as pernas
o que me cai das mãos
eu sou um pirocóptero
em estado de garça
voando além da asa
do possível e do impossível
eu sou o atendente de telemarketing
que ousou falar verdades
e não durou uma semana no novo
emprego
eu sou:
o post que ninguém curtiu
um pé seco de romã
a grávida de taubaté depois da fama
o brigadista covarde na hora do fogo
o limite estourado do cartão de crédito
enfim
eu sou o atraso da humanidade
e todas as suas manifestações


ESSÊNCIA

empurro o carrinho
de bebê
ao som estridente das cigarras
que em coro tentam
acasalar
e penso que
maior que o instinto de sobrevivência
que as leva a cantar
é a necessidade
de arranhar o ar
com sua singularidade
as cigarras não têm alma
mas cantam
elza soares tem alma
e canta
deve existir algum grau
de parentesco
entre as cigarras e elza soares
que cantam o fim do mundo
dentro do fim da tarde


EPIFANIA

ônibus com ar-
condicionado de manhã
tem cheiro de vidas passadas
é como abrir uma lata
vencida de biscoitos
amanteigados
é como se esconder
no armário da avó
até darem por sua falta
é como cheirar as calcinhas
recém-lavadas de sua mãe
no varal
é como entrar na caixa de pandora
e fechá-la por dentro
é como viver sem esperanças

terça-feira, 16 de abril de 2019

[0628] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (25) Rebocho, a luta de gerações


Por vezes, a luta geracional ressalta como tema de Rebocho, como o mostra este poema publicado em “Canto Finissecular”
 

CANTO FINISSECULAR

começamos pelo começo: são agiotas os deuses
e pagamos as suas dádivas com língua de palma e meio. desafiamos
os preconceitos divinos quando jogamos na dívida e logo
os juros.
o que tem um milénio que outro não tenha?
de modo assumido:
o que do assobio do tempo me fica no ouvido?
cada ano perdemos e ganhamos. o que perdemos?
o que ganhamos? em cada século perdemos e ganhamos.
o que perdemos? o que ganhamos?
perdemos e ganhamos em cada milénio.
o que ganhamos? o que perdemos?
esta a contabilidade das dificuldades
e nela perdemos a cabeça.
quanto a mim
não me preocupa o futuro que me é ausente
ou disso me convenço; cá dentro há uma fezada de que o mundo
não acaba
- é uma fezada quase certeza de dúvidas e insistências: não acaba
não acaba. mas que mundo?

se já torrentes
nadei e delas me enxaguei,
aterro-me das enxurradas por que não passei
ou me entropeço nesse alvoroço que quisera recolher no peito
e ser todo o mar. amargos de boca de quem sabe que tudo
é só o possível e é defeito.
não me exijam ou isto ou aquilo que eu passo ao lado
porque escolher é perder. o troço é o jeito de ir até onde
recusar regressar ou ficar a ver a onda a enrolar o desejo
inesgotado na praia: quanto deste tempo me fica no ouvido?
e o que sobra deste tempo? que plásticos sobrevivem na água?
que lixos sobrepesam os dias?
canso-me do milénio que não dormirei quando as almofadas
ajeitam o passado e tentarei ir com os ventos
sobre o negrume das marés: contarei os mortos.
esses são os números do porvir os números
inalterados das gerações das certezas. recolherei os sismos
e os estragos: contarei os mortos. esses são os números inalterados
das gerações das dúvidas. oh, sim, deixem-me coçar o milénio que chega
e cheirar o começado mesmo
com os olhos adornados na praia enquanto a lua aquece alucinações.

deixem-me. sei lá o que sobra para o outro milénio
e o que dirão as más línguas os críticos os historiadores
(meto-os na mesma molhada). sobrará alguma coisa?
o meu nome? a minha foto? um papel? uma memória? um osso?
quero convencer-me de que me estou nas tintas
para o que possam pensar da minha poesia que afinal
são os meus dias e desassossegos. estou-me nas tintas
para o que possam pensar ou dispensar de pensar
porque nenhum poeta é poeta, apenas é oráculo
dos silêncios e das vozes e do círculo. e que pensem
que isto é profundo ou é ridículo: estou-me nas tintas.
o que virá virá a seu tempo. eu cá sei o que me leva a pensar
por estes neurónios e não por outros e os pontos cerebrais
das minhas melancolias e se o futuro os autopsiar
muito me hei-de rir: analisem então as gargalhadas
que dos meus poemas, se um dia lhes buscarem os originais
só encontram as águas poluídas nos canais.

mas hoje, quase ao virar de século, na leveza
dos meus sessenta anos, não vou mentir. confesso: detesto a forma,
a poesia engravatada. prefiro investigar, minuciosamente investigar, à lupa, com bisturi, chafurdar no absurdo se for preciso, investigar
mesmo que chegue a nada. abaixo as regras, auden, os tratados,
essas coisas todas. sento-me no sentimento vestido
com a minha pele (escrevo nu), sento-me no pensamento
e vou pelos meus dedos em busca de um horizonte qualquer
nas minhas artérias. eu sei porque vejo:
o horizonte são os barcos - e a viagem? abaixo as regras: quero falar alto se me apetecer, mijar se me apetecer, tirar macacos do nariz se me
apetecer ou se me apetecer mergulhar em qualquer arte menor
desde que me dê gozo. a regra é esta, só esta, única:
estar vivo enquanto estiver e ter o gozo todo
que na poesia couber. e desobedecer.

e se, num golpe de rins, eu dissesse: milénio novo, agarro-te
pelos tomates?

e se eu, de pelo na venta, lhe exigisse a imortalidade?
se há por aí planetas e coisas e maquinetas e remédios e conjunções
e laboratórios e investigações e invenções porque há-de o milénio
passar sem mim? e porque hei-de eu passar? por fatalidade?
porra para a fatalidade! um vírus, um bacilo, valem mais do que homem?
e para quê a imortalidade? por dó, por pena, pelo amargo de boca
de não levar comigo a vida (não me envergonho de dizer que isso me arrefenta), para ver, para continuar a ver,
continuar a sentir com as minhas sensações e com elas ganhar a certeza,
a minha certeza, de que o mundo continua, continua sempre
porque continua comigo. e para quê? nem eu sei
se este solilóquio é poesia e que outra poesia possa haver
para além da dor de costas das nossas dúvidas
e da dor de barriga do nosso limite.
querem metáforas quando isto quando isto é tão simples?

pois é, meus caros, constrói-se o futuro com as mãos vazias
mas capazes de torcer os cornos da cor de esperança.
desfolham-se calendários e colocam-se memorandos nas páginas dos augúrios. assaltam-se as datas para contabilizar propósitos
(se ao menos o milénio fosse uma convenção)
e os nervos em franja adormecem nos silêncios como as moscas
estoiram nos infravermelhos: os séculos são a consciência
dos limites quando aprendemos, no dia a dia aprendemos
que vivemos de mortes, que não as dispensamos:
somos os cangalheiros das nossas ilusões
a apodrecer em certezas, a adubar as dúvidas.penso em mim
- onde está o corpo que tive, a dor de dentes de há dez anos,
o sangue que já correu para os lenços, onde estão as feridas,
as folhas que caíram das árvores? os meus filhos estão na idade
das paixões e das despaixões que já não tenho
 - são as coisas deles, não as minhas. dia virá em que repetirão
as perguntas e estarão maduros para outro século
enquanto os seus filhos terão paixões e despaixões próprias

que não serão deles. minhas muito menos que estarei
fora da contabilidade. tudo isto para vos dizer: chegais ao tempo
e a poesia merece a pena. Recusai os cartazes: proibida a entrada
a pessoas estranhas à obra. que sabemos capatazes?
que obra nos pode ser estranha? forçai a entrada - isso é poesia.
recusai as teorias: as palavras têm preceitos.
que sabemos teóricos? montai os cavalos das palavras
- isso é poesia. respirai - isso é poesia. comei - isso é poesia.
falai - isso é poesia. amai e odiai - isso é poesia.
vivam e morram - isso é poesia.
matai se for preciso - isso é poesia. desobedecei - isso é poesia.
nunca, nunca por nunca ser, aceiteis as marradas do touro do futuro:
agarrem-no pelos cornos
que eu, nos escombros do meu século, vos abençoo.

[0627] In memoriam de Maria Alberta Meneres


MARIA ALBERTA MENÉRES, UMA PIONEIRA

De seu nome completo Maria Alberta Rovisco Garcia Menéres, nasceu em Mafamude, Vila Nova de Gaia, em 1930, e faleceu em Lisboa, em 2019. Professora, jornalista, escritora, dramaturga  e poeta, foi esposa de E. M. Melo e Castro e obteve o Prémio Internacional de Poesia Giacomo Leopardi em 1960. Dirigiu a revista “País”.


AS PEDRAS

As pedras falam? pois falam
mas não à nossa maneira,
que todas as coisas sabem
uma história que não calam.

Debaixo dos nossos pés
ou dentro da nossa mão
o que pensarão de nós?
O que de nós pensarão?

As pedras cantam nos lagos,
choram no meio da rua,
tremem de frio e de medo
quando a noite é fria e escura.

Riem nos muros ao sol,
no fundo do mar se esquecem.
Umas partem como aves
e nem mais tarde regressam.

Brilham quando a chuva cei.
Vestem-se de musgo verde
em casa velha ou fonte
que saiba matar a sede.

Foi de duas pedras duras
que a faísca rebentou:
uma germinou em flor
e outra nos céus voou.

As pedras falam? pois falam.
Só as entendem quem quer,
que todas as coisas têm
uma coisa para dizer.


CÂNTICO DE BARRO

Inquieta chuva, inquieta me dispersa,
esquecida a tradição e o cansado som.
Dentro e fora de mim tudo é deserto
como se as ervas fossem arrancadas
ou se esgotasse a dor por que se chora.

Na grande solidão me basta, e a contemplo
para o sonho interior que me resolve!
Tão fácil é esperar, que já nem me sinto
o que vem a dormir ou a morrer
na mesma angústia que o silêncio envolve.


PRETEXTO

Por que não cai a noite, de uma vez?
- Custa viver assim aos encontrões!
Já sei de cor os passos que me cercam,
o silêncio que pede pelas ruas,
e o desenho de todos os portões.

Por que não cai a noite, de uma vez?
- Irritam-me estas horas penduradas
como frutos maduros que não tombam

(E dentro em mim, ninguém vem desfazer
o novelo das tardes enroladas)

segunda-feira, 15 de abril de 2019

[0626] Emílio Adolpho Westphalen, o surrealismo peruano


Emilio Adolfo Westphalen Milano nasceu em Lima, no Peru, em 1911, e aí faleceu em  2001. Poeta e ensaísta  peruano, influenciado pelo movimento surrealista. Publicamos dois poemas traduzidos para português em 1980 por Nicolau Saião, com desenho do próprio tradutor.


POEMA

Amarrado à sua sombra o bosque
Abria caminho às pegadas ardentes
Os faunos carreavam os regatos
E nos cornos da Lua uma flauta trilava
A ninfa na encosta sobre o braço descansava
Estios de florais prestígios
Entreteciam desenredavam as brisas
Nas têmporas da bela adormecida
Como se dois meninos com ele folgassem
Tantas voltas dava o mundo
De mão em mão se via percorrido
De vermes com chapéu de copa e dignidade
Os rios não se atreviam
A tocar a orla das cidades
De longe as cantavam e em surdina
Para não quebrar a quietação das muralhas
Ou turvar no recinto
A clara canção dos menestréis
Ali aparecia a bela adormecida coberta de sóis
Os seus ardentes passos tanto mediam o solo
Como o firmamento
Uma sombra de oliveiras sob os olhos
Murmúrios de água para as mãos
No mar esses olhos flutuavam sempre
E esta rama de loureiro de horizonte a horizonte
Adorno dos sonhos pendentes do céu
Não viste um sorriso fiar uma paisagem
A moçoila rindo com o céu gotejando de suas mãos
Mais sombra me davam as pestanas dela
Que uma alameda sob o triplo peso
De folhas ventos e céus
Não viste entreabrir-se a alvorada
Sobre as neves como uma fronte
Alumiando o sol e as estrelas
E a mão mais clara que a água com seu rumor
Assim me atravessaram desde a manhã à noite
As músicas geladas os dedos de aço
Com cercaduras novas seu rosto não descansava
Já sobre a dália ou sobre a nevada
Já na brisa ou no próprio coração do inverno
E na outra mão o ceptro do estio
E no outro pé o sol do outono
Os olhares carregados de resplendores de oceanos ensolarados
Cruzando o Mediterrâneo os golfinhos saltavam
Nos ares quedavam-se as tartarugas
A moçoila não despertara ainda
A flor era a plenitude dos espaços.


POEMA

Tristemente descansei a minha cabeça
Na sombra que cai do ruído dos teus passos
Voltando à outra margem
Imponente como a noite para te negar
Abandonei as manhãs e as árvores cravadas na minha garganta
Deixei até a estrela que galopava entre os meus ossos
Larguei mesmo o meu corpo
Como o náufrago as barcas
Ou as lembranças quando as marés se vão
E espalham estranhos olhos sobre as orlas do mar
Abandonei o corpo
Como um cobertor para com a mão liberta
Apertar o cerne de uma estrela molhada
Não me ouves sou mais leve que as folhas
Porque me livrei de toda a ramaria
E o ar não consegue aprisionar-me
Nem as águas tampouco me detêm
Não me ouves chegar mais poderoso que a noite
E as portas que ao meu sopro não resistem
E as cidades quietas para que não note as suas presenças
E o bosque entreaberto como a madrugada
Que busca apertar o mundo entre os seus braços
Ave belíssima que no paraíso irá cair
A tua fuga derribou todas as tendas
E eis que os meus braços fecharam as muralhas
E até os ramos se inclinam para te impedir a passagem
Frágil corça deves temer a terra
E o ruído dos teus passos em cima do meu peito
Já se cerraram os cercos
E o peso da minha ansiedade far-te-á cair
Os teus olhos irão fechar-se sobre os meus
E a tua doçura brotará como os chifres novos
E a tua meiguice crescerá como a sombra que me envolve
A cabeça deixei que rodasse
O coração deixei que caísse
Já nada tenho que me assegure que irei alcançar-te
Pois que tens pressa e tremes como a noite
Talvez eu não atinja a outra margem
Porque não tenho mãos que abarquem o espaço
Entre o que está desperto e o que vai morrendo
Nem pés que pesem sobre o esquecimento
De tantos ossos e tantas flores mortas
Talvez eu não alcance a outra margem
Se a última folha já foi por nós lida
E a música entreteceu a luz em que hás-de cair
E os rios te impedem o caminho
E as flores te chamam mas com a minha voz
Rosa imensa chegou a hora de deter-te
O estio ressoa como degelo para os corações
E as madrugadas tremem como árvores ao acordar

Todas as saídas estão guardadas
Rosa imensa não irás tombar?

sexta-feira, 12 de abril de 2019

[0625] Gabriel Rosa, a jovem poesia angolana

Gabriel Jaime Neto Rosa nasceu em 1994 em Kilamba-Kiaxi, Luanda. Iniciou-se no mundo artístico ao mesmo tempo que exibia a veia de bailarino. Em 2010 ingressou ao movimento literário LEV'ARTE, Em Maio de 2012 conhece o Movimento Literário Vianense (actual LITERAGRIS).


COMBOIO DE INFÂNCIAS

Tosse o comboio da minha infância
Na passarela da memória
Vai desfilando sobre a cidade em convulsão
A esfaqueada infância
Na inocente culpabilidade da vida o ciclo
Comboiandando vai...
A alma zungando em colunas de nuvens
Deusificando mistérios
Entre a poesia das aves e o reumatismo
Da antiguidade
Tosse, tosse oh comboio da infância
Eis que faleceu o xarope da curadivindade
Sob o enterro do amor o cristal
E tu, oh comboio da infância
Vais tosserolando mortalidade
Na visão esfumada da memória


SUICÍDIO

É o lírio da voz
Na traseira da canoa
Do sonho
Que com a alma saboreio
Quando o céu risca
Das estrelas a fumaça
E sobre pés de pedra
Um frágil deus
Ante o poderio da forca


GRÁVIDO DE MIRAR

No golpe do inimigo
Cujo Marte cumpliciou
oiço...
Engaioladas canções
De liberdade
Num choro de cinzas
Mortas pelo vento
na mão do ouvido
Firo-me mar
Como a bala inútil
Que morre no poente
Ante a vergonha de ferir
A bexiga de deus
Eis-me tombado
No ventre d'uma terra
Anémica
Vêm transfusões
Internacionais
Para me erguer
Num Madagáscar
Cujas sombras
O sol engole
Grávido d'um quadro
Verde oceano
Eis-me cidadão do universo
Contra os abutres dos países
Que veneram os olhos
Do sol

[0624] Lina Peixoto apresenta livro em Cataguases

É hoje, dia 12, apresentado no Centro Cultural Humberto Mauro, de Cataguases (Brasil) o livro de poemas de Lina Tâmega Peixoto “Alinhavos do Tempo”. Com uma palestra sobre Cecília Meireles (“As projeções do barroco na poesia de Cecília Meireles), o lançamento deste livro repete igual apresentação havida na Casa do Brasil, em Lisboa, em Janeiro deste ano. 

quinta-feira, 11 de abril de 2019

[0623] CPLP. Seminário sobre a língua portuguesa


A CPLP leva a cabo na Fundação Oriente (Avenida de Brasília, Doca de Alcântara, Lisboa), a 2 de Maio próximo, a partir das 15h00, o seminário “A Importância da Língua Portuguesa para as Gerações Futuras”. O seminário faz parte das celebrações do Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP.

[0622] Arlindo Barbeitos, a força da poesia angolana


Nascido em Catete em 1940, estudou em Berlim Ocidental e foi professor universitário no Lubango. Entre 1961 e 1978 lutou pelo MPLA contra os portugueses, depois de ter fugido de Luanda.


AMANHECEU

amanheceu
quem diria
que inda agora hoje era ontem
e que cacos ao longe não iam ser olhos de bicho
quem diria
que patos-bravos mergulhando não eram jacarés
e que lagartos azuis iam a quatro patas
quem diria
que bosta de elefante não eram pedras
e que guerrilheiros antigos iam pisar a sua mina
quem diria
que o professor cismando não era surdo
e que os alunos não iam falar a sua língua
quem diria
que a moça do Muié
que inda agora era virgem logo já não é
quem diria
que inda hoje era ontem
amanheceu


SECAS

secas
as palavras despegam-se
das coisas e da gente
como pele de cobra
em tempo de muda
esvoaçando
ao de leve
elas se amontoam
nos escombros
que
a saudade
arruma
gélida e atónita
paira pelos corredores
do vazio
e solidão dos homens
secas
as palavras despegam-se
das coisas e da gente
como pele de cobra
em tempo de muda


SEM TÍTULO

no tempo
em que as pacaças entravam
pelos povoados
o vôo alvoraçado das perdizes
carregava sonhos
que
a mãozinha inerme de criança
feliz
agarrava ao lusco-fusco dos muxitos
no tempo
em que as pacaças entravam
pelos povoados

quarta-feira, 10 de abril de 2019

[0621] Filinto Elísio, de novo


Acaba de ser editado mais um livro do poeta cabo-verdiano Filinto Elísio (Filinto Elísio Correia da Silva), “Li Cores & Ad Vinhos”. Ibn Mucana, publicando três dos poemas deste livro, dá aos seus leitores um “cheirinho” da boa poética nele constante.  


MADRIGAL EM SONCENT

 Os galos que cantam na baía adormecida
\E as peixeiras aos pregões “cavala fresca”,
Levam a mesma métrica e a mesma clave,
Não se sabe se do dia ou da pura melodia.

Mas o que se conhece, não da madrugada,
Posto que arreda o amanhecer, é o solfejo
De haver, entre lua e sol, tal pejo de nada,
Como fosse nada a chave da idade do ser…

O resto, sendo sobras da cidade, a desdita
Dos burocratas e comandita, o estremecer
Das luzes e prenhe barro, esturro de tudo….

Esporo da rosa ou na ninfa, pólen ou boca,
Esta hora louca de também só entardecer,
Quando e contudo, a vida se revela pouca…


RADE

Plúmbeo céu
Cinza e cor de lago
Dos teus olhos…

Espelho que reflecte
Sendo a luz negra das horas
As brancas sombras dos lugares…

Cisnes e gansos
O vaivém dos barcos nas hordas
Estátua magenta – sejas tu…


AD VINHOS

andei por califórnias ródanos douros
sonhei ânforas do antanho
deusas eólicas taças de âmbar
poetei absintos versejei labirintos
naveguei pessoas & nerudas
tive orgasmos a imaginar borges
acordei diante de brancos secos
amei com os tintos  maduros
encorpados lambruscos
alentejos chãs
ad aeternum
ou aqui
agora…

terça-feira, 9 de abril de 2019

[0620] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (24) Nuno Rebocho, o viajante


Três poemas de “Canções Peripatéticas”, recordando velhas poéticas de quem sempre gostou de pôr em verso as suas peregrinações, neste caso Espanha.


A LIÇÃO DAS DORES

não desesperemos que sempre um tempo
precede outro tempo e uma sombra
oculta outra sombra. os desassombros
também murcham como as papoilas
e podem ser tão efémeros mas a chuva os resgata
: servem para isso as sementes adormecidas
nos torrões e as vespas que nos viços os sugaram.
até os silêncios servem mesmo quando são lágrimas
e as noites são cansaços. as trufas
também se acolhem onde os sobros choram
na lição das dores - que são mestras
e tecem os dias felizes
com os fios das saudades. são penélopes
entretendo os calendários dos úteros envilecidos.
são os regatos que no seu percurso serão mares
e ensinam às bocas a vontade de cantar.


EM CASA DE GARCIA

fui a tua casa, Federico Garcia. mas tu não estavas,
nem o Horto era o que então havia. a porta fechada
escondia lendas vendidas com sobranceria. tu não
estavas, Garcia, só o cicerone da casa que não tiveste
enquanto vagueavas em busca da tua morte, mesmo
a que não querias. a tua casa, Federico, não é a tua
casa: é uma porta por onde se entra para um vão de
escada e uma escada por onde se trepa até aos silêncios.
granada nada sabe dos sortilégios nem por onde rumam
rotos de mortes, nem por onde sonham despidos
de mágoas. a tua casa, Garcia, já é branca e os curiosos
enfilam-se à porta com senhas nas mãos: matam-te
todos os dias, salvo nos de descanso. e às cinco da tarde
respeitam-te. valem outras balas estas bulas de ironia
a cem pélas por visita, Federico Garcia. e os touros
que então havia e matavam como lhes cabia são agora
mansos ou embolados ou enojados. crescem no Horto
nem nardos, nem cardos - só flores sem fantasia.
fui a tua casa, Federico Garcia. mas tu não estavas.
os cicerones levavam-te para outra morte
em grupos de cinco. e cobravam a entrada.


EM NOME DE GOYA

pintava o Surdo o silêncio do sangue
(ah, charneca de amarelos touros)
e crestava a romaria em san isidro
mais uma chusma de arrolados mouros.
pintava o Surdo a tristeza do vidro.

- de zaragoza que cores alvorotaram para as searas?
de onde roçaram os aromas infantis em bregas de pele
e morderam o pó das apressadas feiras? que bandarilhas
desfraldaram as extremas para o vício dos combates?

pintava o Surdo o negrume das chamas
(ah, charneca de rubros touros)
e fuzilavam-se peitos sobre la moncloa
por onde se esvaíam dobras de tesouros.
pintava o Surdo o que o olhar não perdoa.

- que vim à sorte de cara lavada por lides de crestadura
que sobestava o que pimpilar se não podia. e em nome
do nome que o tempo dava, o tempo fazia a carne.
sortes de paleta nas muletas se escondiam. era em nome.

pintava o Surdo os dentes de saturno
(ah, charneca de azulíneos touros)
quando na arena se desconjuntavam muros
pelos disparates de sacrílegos louros.
pintava o Surdo os cornos do futuro.

[0619] Helder Jonas, a nova poesia angolana


Hélder Wimbo Jonas nasceu em 1987, em,  Maianga província de Luanda. Usa o pseudónimo de Pedro M. Araújo e Ukwakusima Jonas e em raras ocasiões como Hélder Jonas.


CHOREI QUANDO NASCI

Nasci, nasci sim!
Mas eu não pedi.
Mostrei-me triste logo que nasci.
Vi um mundo tão diferente do que sonhei.
Por isso não sorri, chorei.
Mostrei a minha insatisfação.
Se me tivessem tão somente avisado...!
Obviamente eu diria não ou então eu diria:
- Vão e deixem-me aqui!
Os homens são matricidas, parricidas, fratricidas, suicidas.
Os homens são loucos que fingem ser normais.
Apregoam a sanidade,
mas são insanos de verdade.
Quando nasci chorei porque vi:
à esquerda, celebrações do homem mais rico do mundo;
à direita, a fome trucidar e fazendo cruéis genocídios no
pseudo terceiro mundo.
Chorei porque vi ganância nos governantes,
políticos e religiosos comendo o pão
de homens justos e valorosos,
mulheres vestidas de nudez
e os valores morais de mudez.
Chorei porque vi homens prostrados.
A prostituição de jovens velhos bem vestidos de alcoolização,
com futuros amputados
e mãos vazias, sem sonhos.
Chorei pelos já partidos sonhos.


SEM TÍTULO

Passos lentos sobre um coração
Inocente, os tempos estão frios
Teu corpo subiu mais um degrau
Ganhou outro nome já não fica mais quente.
Falei com os meus amanhãs mas
Eles se recusam a ser os meus
Ontem, meu presente não gostou
Quando lhe implorei que fosse por
Uns segundos o meu passado, quero
De volta os beijos das minhas lindas
Lembranças deste rosto que nem vi
Vou separar os mares que nos separam
E passarei com pés enxutos, embriagar-se
Nas cachoeiras dos teus lábios entre os
Amores ocultos.
Serei o Moisés dos teus desejos
e pensamentos guiarei teu coração
Rumo as terras prometidas ante aos
Ventos e areias destes desertos.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

[0618] Miguel Ángel Ortiz, voz mexicana irredenta


Nascido em Durango (México) em 1984, é Prémio de Poesia Elias Nandino de 2005, Prémio de Poesia Carmen Alardin de 2007 e Prémio de Poesia Amado Nervo de 2008.


PIEDRAS

Bajar a la fondita por un café,
por un cigarro, pez
en cada auto que pasa.
Qué frío, dice alguien,
y ves caer sus palabras
hasta el fondo del barranco:

pasto, ballenas, tambor,
ventana de agua del cielo
justo al momento de abrirse.


SAN MATEO

El Aparecido
se ha sentado a desayunar.
Busca una orquídea entre sus ropas
y escribe con ella
sobre el mantel.
En su morral —musita—
los instrumentos para pintar
un paraíso
en las paredes de su iglesia.
Gira una parvada
entre los libros y los platos.
Una cuchara atraviesa
el sosegado
blancor de la leche.


VAHO

En la sierra, los caballos rompen el hielo que cubre los estanques. Golpean y golpean, meten su hocico y toman el agua enjaulada por el témpano.
Luego, el vapor sale de sus ollares y se vuelve otra vez nubes.
Yo soy un caballo que golpea contra el hielo de los meses, y busca tomar el agua para regalártela, para que el cielo completo te acompañe.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

[0617] Sandro Cohen, expressão mexicana vinda dos EUA


Nascido nos Estados Unidos, poeta no México. Poeta e editor.


HASTA LA ORILLA

Los años caen hasta lo azul del fondo.
Me gusta el hecho de que no te cuelgues 
de mi deseo deshilachado y simple.
Me ves como animal, lento y curioso, 
el mono ciego que ejecuta duetos 
de piano solo y cuello de botella, 
cual debe ser en meses de calor.
Estos días muy poco hay por delante, 
y todo se me cuelga por atrás, 
flácida piel y un hueso al aire puro: 
se secará muy pronto desde dentro.
Me da placer sentir tus ojos, ávidos 
y lejanos, tan cerca de mi piélago.
El horizonte está a muchos kilómetros.


LAS COSAS QUE ME RODEAN…

Las cosas que me rodean
—la taza de café, plumas
viejas, alguna inservible—
me dan la seguridad
de saber que aún estoy vivo.
Me gustan mis libros, aunque
sé que jamás los leeré
todos, tal vez unos cuantos.
Los pasaré a mis amigos
jóvenes que no conocen
la dicha de columbrar
los indicios de la meta
tras cuarenta y dos kilómetros,
varios hijos, dos esposas,
corazones incontables
que jamás quise romper.
Decir que soy imperfecto
es poco. Mucho me falta
por hacer, por dar, vivir,
aunque sean veinte minutos.
Esta taza de café
me permite estar en paz
con la idea, por demás
sencilla, de que la vida
es algo que por derecho
—sin excepción— pertenece
a cada ser que respira;
de que las cosas sagradas
nos rodean en todas partes.
Se rompen y se reparan,
tal como nosotros mismos,
por conservar el placer
tan simple, el enorme gusto
de inducir una sonrisa,
el brillo intenso en los ojos
de quienes han comprendido,
por fin, que el dolor no es todo,
que la mejor medicina
es saber que estamos todos
—y que siempre hemos estado—
cual carne de nuestro ser
desde el principio del viaje.


POR SI LO QUIERES

Alguna vez me descubrí pensando
—ya sabes que pensar es peligroso—
e imaginé tus labios en mis labios,
tus manos donde siempre las deseo
cuando cierro los ojos y me pongo
a olvidar el desastre que he creado.
Pero es, después de todo, un buen desastre,
esta maraña dulce en la cabeza,
a la cual vuelvo al menor descuido
solo para buscar a aquel que alguna
vez se creyó inmortal, tan bello y joven,
aunque haya sido en sueños y poesía.
La vida es buena, pues me ha dado tanto
que a veces de creerlo soy incapaz.
He sembrado, apuntado unas palabras
que luego olvido, pero engendran hijos
y lo recuerdo todo, con un peso
que resulta difícil de cargar.
E imaginé tus labios en mi cuerpo,
en todas partes de mi cuerpo laso,
en los trazos profundos del desastre
que reúno con celo y con amor.
Después de todo es un desastre bueno.
Y ahora es tuyo también, por si lo quieres.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

[0616] Sangwangongo Malaquias, o nativismo - ou um luxo de poesia angolana


Poeta, músico, escritor e dramaturgo angolano, não é conhecida a data e local do seu nascimento.


CORAÇÃO ALADO

O teu amor, Nalola,
é vinho doce que magoa
garapa que me mata
colina de olhos verdes
eternamente aprisionada
ao feitiço do Cassai:
Quando todas as portas
eternamente ficarem abertas
no céu eu vou dormir
Muílo mungúia, Nalola!
Na pedra da tristeza
desenhem um coração alado
para depois da minha morte
ele voar desenfreado
até à margem do Lóvuawangongo Malaquias
onde se banha a preciosa Nalola
luar da aldeia Xaminhamina
paraíso de todos os mundos:
Quando todas as portas
ficarem escancaradas
no céu eu vou dormir
Muílo Munguía, Nalola! Muílo é hé!


SEM TÍTULO

1
Lancei os dados
no pano verde
de uma floresta
de bambus.
Aqui nem a chuva
tamborila
nem a zebra corre
por correr.
Há um rio sem margens
no caminho verdejante
onde os elefantes vão morrer.

2
Metemos o mundo
em trabalhos
só porque sonhámos
e fomos insubmissos.
Pusemos à lapela
os brilhos da lua cheia
nas facas longas
que degolaram a claridade.
Tenho na garganta um travo amargo a liberdade.

3
A cabeça virada
à cabeçada
e a voz das zaragatas.
Um semba vadio
grita gestos lancinantes
de ciúmes e facadas.

4
Se te perdi, meu amor,
encontro-te nos caminhos
onde me movi
apenas para me perder.
Quem perde os seus amores
colhe tempestades
de violinos e flores.

5
Ainda estou à tua espera
neste cemitério de navios,
na colina que o vento fustiga
às portas da foz do Bengo.
Espero por ti na lagoa
onde o sol faz ninho
e o mar se derrama em mangonha
no meu copo de vinho.
Estou à tua espera meu amor derradeiro…

quarta-feira, 3 de abril de 2019

[0615] Nuno Rebocho, o redespertar, em repetição de um poema sempre bom de relembrar

 
Nuno Rebocho e Guillaume Apollinaire

Foi um poema que renovou toda a sua poética, este “Santo Apollinaire (meu santo)”. Pode mesmo dizer-se que houve um antes e um depois.

SANTO  APOLLINAIRE (meu santo)

          chuva de cascais. a cabeçorra de apollinaire entra pelo tugúrio e dói-me as costas, dói-me a paciência & o piano que toca dentro um nocturno em si maior (paulo salgado). e dói-me o piano nos olhos de apollinaire, cabeçorra entrapada de branco. e dói-me o inverno que chega & a nudez das árvores. chove em cascais - é isso. não é em santiago (que se lixe santiago). chove aqui. caraças
          chove
o
sentimento
dentro
da
casa
que
é
sala
          chove
dentro
dos
ouvidos,
das
letras,
dos
números
          paciência: cascais é o mar. cascais é o que está aqui por dentro da chuva.
impermeável             
          mar apollinaire em algum lado possível
como peixe-porco em volta do anzol
e que só não é bom porque é temível
e só não é ronha porque é sol
          meu santo, santo apollinaire apolíneo,
(entra na cabeça o som de palmas - o pianista ataca)
são guilherme circundante
(entra pelos ouvidos o convent garden - o pianista ataca)
ruivo de raiva & azulíneo,
(chopin distrai-me, distrai-me sempre - o pianista ataca)
amante de nenhum amor amante
(porquê chopin esta insistência nos agudos? o pianista ataca)

          de onde basta o silêncio
algum castigo de viagem,
basta o que não basta
& já é bastante
          que eu vou contigo,
apollinaire santo
          hei-de ir de olhos fechados
mas com paisagem
          e então
mordemo-nos com o cio dos lobos
e o usufruto da alcateia
          cuidado: saltam à arena
os bobos se o mar
se afunda na areia
          mar que dissolve os braços
desbragado. cuidado
          consome verdes & azuis,
descuidado. cuidado
          mar que arrebenta na boca,
desbocado. cuidado
          mar que é merda e é vida,
desamordaçado. cuidado
          desAMORdaçado
          sacrifica o mar as algas na terra firme

- oceano guilherme, quem te redime?
eu não que de gripes não morro.
eu não que não me mancho nem me desmancho.
eu não que sonhos não percorro
sem bracque, sem jarry, sem socorro
          ah, temos obrigações:
temos a obrigação de destruir a arte
para que os homens não tenham a falsa consciência da sua infelicidade
          temos a obrigação de destruir a forma
para que os homens não tenham o falso sentimento da sua eventualidade
          temos a obrigação de destruir o som
para que os homens não tenham o falso pressentimento da sua identidade
          temos a obrigação de destruir o discurso
para que os homens não tenham a falsa inocência da sua imensidade
          temos a obrigação de destruir o silêncio
para que os homens não tenham a falsa comoção da sua humanidade

          somos humanos, xiça, e
neste mar de corpos construídos
como cheiros domesticados
me escondo eu preso pelos sentidos
          mar por outros mares nunca navegado,
som à margem do rito dos ouvidos,
sons ganhos, sons perdidos, naufragados
          ó grande acrobata. ó mestre das cantigas
          num mundo construído de anversos
fica a realidade para além das lombrigas,
ficam povos para lá das conversas

queria dizer-te: como tu tivemos muitos
(já passaram, ninguém se lembra.
e quem se lembrará de nós meu santo?
quem se lembrará das nossas dores, dos nossos risos?
quem se lembrará de nós meu santo?
quem se lembrará de nós?
de nós no pó da história? de nós no pão da história?
que deus aí nos conserve
e te conserve a ti na mesma memória)

          tu és ilustre, tu és soberbo,
          (agora o piano castiga a fantasia húngara, cansado dos oboés. & eu cansado. piano, piano, flauta doce, címbalos, contrabaixos, piano, maestro de tudo, que fazes aí? piano, piano, a tarde avança, quase noite, cigarros, bênçãos, piano, fagote, neura, computador, cadeira, som, objectos, horas, oras, horas, tempo, tarde, noite, piano, cigarros,
          apolinére mastiga as palavras sem chuígame - turva-lhe a imaginação
          e lá está o piano, o piano, o piano, o piano
          tutítitutitutitutitutitutututututu vralllálálalá alguém tosse
          prrilipriliprliprlitutátutátutátutáprláprláprláTIITITITITI
oh dentro da cabeça, dentro da cabeça, dentro da cabeça
          meu santo)
ó grande desamado
          tu és poeta, tu és soldado
(que raiva, que raiva)
tão soberbo como o mar do outro lado,
tão soberbo como as rochas incapazes
neste estádio, sem mais, a aparição de santo apollinaire aos três sons,
a GRANDE REVELAÇÃO, assim mesmo em caixa alta. e disse o santo:

          a chuva que cai em cascais, já é esta diferente desta como é outra diferente
          esta chuva que cai já não é esta chuva que cai
a chuva de cascais não é a chuva de birre, não é a chuva de juso
o agora não é o antes nem o depois nem o agora
o agora só é uma parte do agora, a micronésima parte.
aprendei que tudo é efémero e o efémero mais que tudo.
é preciso construir o efémero. com minúcia. com sabedoria.
sobretudo aprendei a destruí-lo

estremunhei:
          pescador de baleias
vai-te embora
          vai-te embora, rapaz, fazemos as pazes,
ó ilusionista, ó artista de circo,
ó corno, meu cantor de sentimentos
          faz uma pirueta de adeus,
dá um salto em frente, mas deixa-me por amor de deus.
já tenho o que me baste,
pra quê mais tormentos?
          desconto vidas,
mais curtas outras, umas mais compridas
nem lhes meto dentro o sal,
mar salgado,
que quanto é melindre está começado
que quanto já é carne está sentido,
que quanto já é sangue faz sentido

         uma brisa aconchega-me o ouvido
e tu surges quando a tarde apodrece
porque apollinaire, meu santo, acontece
a baba da tarde não tem perdão.
o mundo talvez. eu não
          (GRANDE FINAL: TCHAC. meu santo apollinaire
           meu compère)