quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

[0596] Ermelinda Pereira Xavier, o registo poético


Ermelinda dos Santos Pereira Xavier, nasceu no Lobito em 1931. Notária e poeta, pertenceu ao Movimento dos Jovens Intelectuais de Angola, criado em 1948. Veio para Portugal quando se formou em Coimbra.


CHORO

Ai barco que me levasse
a um Rio que me engolisse
donde eu não mais regressasse
p'ra que mais ninguém me visse!

Ai barco que me levasse
sem vela ou remos, nem leme
p'ra dentro de todo o olvido
onde não se ama nem teme.

Ai barco que me levasse
aos tesouros conquistados
por entre esquinas de perigos
dos mil caminhos trilhados.

Ai -- onde? -- que me levasse
bem dentro de um vendaval...
Barco berço, barco esquife
onde tudo fosse igual:

Ai barco que me levasse
toda estendida em seu fundo!
Nesga de céu a bastar-me
toda a saudade do mundo!

[0595] Manuel C. Amor, dos Açores para Angola



José Manuel Couto Amor, poeta luso-angolano nascido em 1946.


SEM TÍTULO

Pela encosta descendente regresso ao quotidiano granítico das paixões e traições.
Trago uma nitidez matinal e directa,
para, finalmente, construir a festa reinventada.
e não há jardim que me prenda
nem destino que me seja breve.
Até a minha própria face me é estranha e longínqua!
Sob o silente olhar das buganvílias e das brisas vagabundas, vindas do outro lado da /montanha
onde um mar desgarrado se perde no fim dos longínquos horizontes da noite...
a tua imagem, a tua presença, a tua voz
são pesadelo
ou coisas inventadas?


A MINHA PÁTRIA É LÁ
Onde se cruzam todos os ciclos
A morte precede a vida
O amor está sempre disponível


Onde batucam tambores
Os altos fogos
Lambem as leitosas noites de cacimbo

E as mulheres
sempre grávidas

compartilham a mesma dor colectiva
e
numa permanente dissaquela de kazola
invocam espíritos no vento dos cazumbis

A minha pátria é lá

Onde a chuva cai no serpentear dos rios antigos.

MULHER COR DE MAR
Avelulada
Mulher azul
Prenha de luar

Nuvem inconsistente
Fugidia miragem

Insónia
Mágica
Ritual

Verão
Ilusão de amor

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

[0594] 8.º Encuentro de Poetas em Cuba

Decorre em Cuba (Havana, Matanzas, Holguin, Guáimaro e Sancti Spititus), de 30 de Abril a 9 de Maio, o 8.º Encontro de Poetas em Cuba, “A Ilha nos Versos”. Organizado por Kiuda Yerro Torres e Yuricel Moreno Salivares, na continuação do Festival Internacional de Poesia desde 1912 e promovido pelas Romerias de Mayo, Casa de Iberoamérica, está aberto aos poetas que queiram inscrever-se.

[0593] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (21) Nuno Rebocho, a grande "revolução"


Foi uma verdadeira revolução na arte de poetar do autor. Chovia em Cascais (Rua dos Navegantes) e o poeta explodiu, Galego editou (“Non nova, sed nova”). A edição esgotou – 100 exemplares. Começou uma no fase do seu “poetando”.


SANTO APOLLINAIRE (meu santo)

chuva de cascais. a cabeçorra de apollinaire entra pelo tugúrio e dói-me as costas, dói-me a paciência & o piano que toca dentro um nocturno em si maior (paulo salgado). e dói-me o piano nos olhos de apollinaire, cabeçorra entrapada de branco. e dói-me o inverno que chega & a nudez das árvores. chove em cascais - é isso. não é em santiago (que se lixe santiago). chove aqui. caraças
chove
o
sentimento
dentro
da
casa
que
é
sala
chove
dentro
dos
ouvidos,
das
letras,
dos
números
paciência: cascais é o mar. cascais é o que está aqui por dentro da chuva. impermeável
mar apollinaire em algum lado possível
como peixe-porco em volta do anzol
e que só não é bom porque é temível
e só não é ronha porque é sol
meu santo, santo apollinaire apolíneo,
(entra na cabeça o som de palmas - o pianista ataca)
são guilherme circundante
(entra pelos ouvidos o convent garden - o pianista ataca)
ruivo de raiva & azulíneo,
(chopin distrai-me, distrai-me sempre - o pianista ataca)
amante de nenhum amor amante
(porquê chopin esta insistência nos agudos? o pianista ataca)

de onde basta o silêncio
algum castigo de viagem,
basta o que não basta
& já é bastante
que eu vou contigo,
apollinaire santo
hei-de ir de olhos fechados
mas com paisagem
e então
mordemo-nos com o cio dos lobos
e o usufruto da alcateia
cuidado: saltam à arena
os bobos se o mar
se afunda na areia
mar que dissolve os braços
desbragado. cuidado
consome verdes & azuis,
descuidado. cuidado
mar que arrebenta na boca,
desbocado. cuidado
mar que é merda e é vida,
desamordaçado. cuidado
desAMORdaçado
sacrifica o mar as algas na terra firme

- oceano guilherme, quem te redime?
eu não que de gripes não morro.
eu não que não me mancho nem me desmancho.
eu não que sonhos não percorro
sem bracque, sem jarry, sem socorro
ah, temos obrigações:
temos a obrigação de destruir a arte
para que os homens não tenham a falsa consciência da sua infelicidade
temos a obrigação de destruir a forma
para que os homens não tenham o falso sentimento da sua eventualidade
temos a obrigação de destruir o som
para que os homens não tenham o falso pressentimento da sua identidade
temos a obrigação de destruir o discurso
para que os homens não tenham a falsa inocência da sua imensidade
temos a obrigação de destruir o silêncio
para que os homens não tenham a falsa comoção da sua humanidade

somos humanos, xiça, e
neste mar de corpos construídos
como cheiros domesticados
me escondo eu preso pelos sentidos
mar por outros mares nunca navegado,
som à margem do rito dos ouvidos,
sons ganhos, sons perdidos, naufragados
ó grande acrobata. ó mestre das cantigas
num mundo construído de anversos
fica a realidade para além das lombrigas,
ficam povos para lá das conversas

queria dizer-te: como tu tivemos muitos
(já passaram, ninguém se lembra.
e quem se lembrará de nós meu santo?
quem se lembrará das nossas dores, dos nossos risos?
quem se lembrará de nós meu santo?
quem se lembrará de nós?
de nós no pó da história? de nós no pão da história?
que deus aí nos conserve
e te conserve a ti na mesma memória)

tu és ilustre, tu és soberbo,
(agora o piano castiga a fantasia húngara, cansado dos oboés. & eu cansado. piano, piano, flauta doce, címbalos, contrabaixos, piano, maestro de tudo, que fazes aí? piano, piano, a tarde avança, quase noite, cigarros, bênçãos, piano, fagote, neura, computador, cadeira, som, objectos, horas, oras, horas, tempo, tarde, noite, piano, cigarros,
apolinére mastiga as palavras sem chuígame - turva-lhe a imaginação
e lá está o piano, o piano, o piano, o piano
tutítitutitutitutitutitutututututu vralllálálalá alguém tosse
prrilipriliprliprlitutátutátutátutáprláprláprláTIITITITITI
oh dentro da cabeça, dentro da cabeça, dentro da cabeça
meu santo)
ó grande desamado
tu és poeta, tu és soldado
(que raiva, que raiva)
tão soberbo como o mar do outro lado,
tão soberbo como as rochas incapazes
neste estádio, sem mais, a aparição de santo apollinaire aos três sons,
a GRANDE REVELAÇÃO, assim mesmo em caixa alta. e disse o santo:

a chuva que cai em cascais, já é esta diferente desta como é outra diferente
esta chuva que cai já não é esta chuva que cai
a chuva de cascais não é a chuva de birre, não é a chuva de juso
o agora não é o antes nem o depois nem o agora
o agora só é uma parte do agora, a micronésima parte.
aprendei que tudo é efémero e o efémero mais que tudo.
é preciso construir o efémero. com minúcia. com sabedoria.
sobretudo aprendei a destruí-lo

estremunhei:
pescador de baleias
vai-te embora
vai-te embora, rapaz, fazemos as pazes,
ó ilusionista, ó artista de circo,
ó corno, meu cantor de sentimentos
faz uma pirueta de adeus,
dá um salto em frente, mas deixa-me por amor de deus.
já tenho o que me baste,
pra quê mais tormentos?
desconto vidas,
mais curtas outras, umas mais compridas
nem lhes meto dentro o sal,
mar salgado,
que quanto é melindre está começado
que quanto já é carne está sentido,
que quanto já é sangue faz sentido

uma brisa aconchega-me o ouvido
e tu surges quando a tarde apodrece
porque apollinaire, meu santo, acontece
a baba da tarde não tem perdão.
o mundo talvez. eu não

(GRANDE FINAL: TCHAC. meu santo apollinaire
           meu compère)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

[592] Adriano Botelho de Vasconcelos, o jeito angolano de poetar


Adriano Botelho de Vasconcelos nasceu em Malange em 1955. Secretário-geral da União de Escritores Angolanos, político (deputado), escritor e poeta.


SEM TÍTULO

A morte da música pode ser lisa entre o início de um verão
e a direção que faz o silêncio. A surdez levanta a imagem
que a sombra distraidamente enterrara a cinco
palmos do chão. Para o coração se salvam as gaivotas
que levaram os mares para bem perto do sol que se despe
com o jeito das mulheres. A cicatriz é delicada
como se tivéssemos que olhar para a memória
com uma outra escolha astúcia. Hesita-se mas sabemos
que no ombro se fazem as glórias muito breves
e à deriva do coração. Cada erro persegue o espírito
que faz o teatro dourar mais que uma lágrima, um longo
cenário acaba por disfarçar-nos perante
o que nunca fomos. Faz-se um corte no dedo indicador
quando se perde a aurora para que a terra
fique mais perto da insónia. Vemos o abandono da juventude
vindo agora de nós uma interpretação
sem chamas. Por isso as palavras vão compondo
numa só estrofe o que a vida mesmo atenta não pode
consagrar.


POEMA

Um cabelo longo com o resto de túmulo aberto numa rua
principal da cidade. O Tiba abriria em cada uma das letras
dos poemas a sua aurora
com tintas há muito afinadas no número de portas
que não se abriram. O sol na taça partida pela lebre agora sobe
o umbral da janela onde a ninfa está perto do meu poema,
descalça e pronta para pedir uma lua
mais aberta que resgatasse o último namorado
que com a cintura tirou um quarto de hotel que sem lâmpadas caiu
do último andar da noite : os polícias vieram à paisana, pretendiam
escrever o melhor romance de um crime que não podiam
testemunhar. Uma noite por este postigo não faz o crime.
Chamem um carcereiro cubano distante da sua terra natal
para dizer se uma utopia tirada de um contentor
pode salvar um país quando Fidel
está acordado sobre o sono
que Lenine prefere passear com duas
algemas.


SEM TÍTULO

Uma ilusão levanta-se de um escombro mas não se apanha
o poeta que por ela mais a ensaiou num percurso e palco
que nunca fora estranho a Deus. Um cágado não pode passar
limpo e com estilo pela cinza porque não viu
como mais à frente se salvou uma lavra. Salva-se algo
como a primeira escolha
apesar de todos não terem para onde se virar senão
para a fé da palavra que nos pede
um momento
de vaidade.

[0591] Feliz Zau, vadiando mundos


Nasceu em Lisboa em 1950, de ascendência cabo-verdiana. Historiador, investigador, professor, músico, escritor e porta, em 1975 naturalizou-se angolano 


UM DIA

A minha pele é escura como a noite.
Traz cicatrizes do açoite
e marcas do tráfico negreiro.
A minha cor escura não ilude
a intolerância e a inquietude:
sou africano, podia ser antilhano,
afro-brasileiro ou afro-americano.
A minha pele é escura como a noite
e para que não haja engano,
não sou cigano, nem indiano.
Sou africano por cultura e opção.
Poderia ser mouro, antilhano,
afro-brasileiro ou afro-americano.
Em qualquer dos casos
Serei o teu ás, o teu campeão,
aquele que tanto procuras
para a vitória da tua equipa
ou, até mesmo, da tua selecção.
A minha pele é escura como a noite
e o sangue azul a que pertences
é tão vermelho como o meu.
Provéns de árabe, de berbere,
ou talvez de um negro escravo qualquer
que, para a serventia da Coroa,
entrou por Lagos ou por Lisboa...
Depois de alforriado,
lá para os lados de Alfama,
Serias um bailador de fado
em casas rotuladas pela má fama.
A minha pele é escura como a noite.
Agora por conveniência,
sinto vontade de te dizer,
que encontrei num nobre europeu
parte da minha ascendência.
A outra a que pertenço
tem séculos de humilhação
e décadas de independência...
Perdoa a minha indignação,
mas entende a minha pertinência
nesta nossa conversação.
Só os burros não mudam...
e um dia... um dia, meu caro,
aprenderás a julgar os homens
apenas pelo seu valor moral e ético.
Basta, tão somente, que te revelem
o segredo do teu código genético.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

[0590] Novos corpos gerentes do P.E.N. Clube Português

Tomaram posse, a 21 de Fevereiro, os novos corpos gerentes (eleitos em Assembleia Geral) do P.E.N. Clube Português:  
Mesa da Assembleia Geral: - Ernesto Rodrigues (Presidente); Nuno Camarneiro (1º Secretário) e Fernando Venâncio (2º Secretário)
Direcção: Teresa Martins Marques (Presidente); José Viale Moutinho (Vice-Presidente e Tesoureiro); Paulo José Miranda (Secretário); Fernando Pinto do Amaral e João Rasteiro (Vogais); Francisco Belard e Inês Lourenço (Suplentes)
Conselho Fiscal: Cristina Carvalho (Presidente); Rui Miguel Mesquita (Vogal); Carlos Nogueira Fino (Vogal); Ana Paula Coutinho e Victor Oliveira Mateus (Suplentes)

[0589] Novo livro de poesia de Manuel A. Domingos

Edição da “Volta d’Mar”, será apesentado por Ana Isabel Soares a 9 de Março, na livraria Poesia Incompleta (Rua de S. Ciro, 26, Lisboa) o novo livro de poesia de Manuel A. Domingos, intitulado “Aprendiz”.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

[0588] Yelisa Visimilo, a poesia em gestão


De seu nome Beleza da Conceição Virgílio usa o pseudónimo de Yelisa Visimilo, nasceu no Huambo em 1979. Ex-professora primária, gestora de hotelaria, auditora, formadora, enfermeira e poeta, membro da Brigada Jovem de Literatura do Huambo. 


RIMAS DE ENCANTAR 

Cada letra escrita
É uma explosão de paixão
Cada palavra dita
É um momento de reflexão

A brisa saborosa
Suscita inspiração
E em atitude devota
A palavra invade o coração

Tamanha invasão
Embala a alma
Que sem indecisão
Troveja com calma

Rimas de encantar
Ao sabor do vento manhoso
Que sem vacilar
As espalha talentoso


LEITURA 

A leitura é como o tapete rolante
Com ela subimos na vida
Viajamos em diferentes mundos
Sem passaporte nem visto
Aprendemos a ser e saber
Vivemos momentos ímpares
Tocamos o inimaginável

Dela brota favas de sabedoria
Que servem de barras de direcção para a vida
A leitura ilumina a mente
Desvenda mistérios...
 Com a velocidade de um raio
Permite-nos atingir grandes alturas
No saber fazer

 A leitura
Não impõe fronteiras
Combate a ferro e fogo
A ignorância
É o tesouro mais fácil de ter
Ela enriquece e simplifica a vida
Enobrece e dá prazer

A leitura faz uma mente
Culta e símplice
É o baluarte dos fortes
Que fazem do trabalho
Uma razão para viver
É uma lamparina que ilumina
No momento do eclipse

[0587] Zé da Luz, a poesia de cordel


Nome artístico de Severino de Andrade Silva, poeta popular brasileiro nascido em Itabaiana, na Paraíba, em 1904, e falecido no Rio de Janeiro em 1965. Alfaiate de profissão e poeta popular, publicava suas obras em forma de literatura de cordel.


A CACIMBA

Tá vendo aquela cacimba
Lá na bêra do riacho,
Im riba da ribancêra,
Qui fica, assim, pru dibaxo
De um pé de tamarinêra?
Pois, um magote de môça
Quage toda menhanzinha,
Foima, assim, aquela tuia,
Na bêra da cacimbinha
Tomando banho de cuia!
Eu não sei pru quê razão,
As águas dessa nacente,
As águas qui alí se vê,
Tem um gosto deferente
Das cacimba de bêbê…
As águas da cacimbinha
Tem um gôsto mais mió.
Nem sargada, nem insôça…
Tem um gostim do suó
Dos suvaco déssas môça…
Quando eu vejo essa cacimba,
Qui inspio a minha cara
E a cara torno a inspiá,
Naquelas águas quilara,
Pego logo a desejá…
…Desejo, pra que negá?
Desejo ser um caçote,
Cum dois óio desse tamanho!
Pra vê, aquele magóte
De môça tumando banho!


AS FLÔ DE PUXINANà                  
                           
                              (paródia de 'As Flô de Gerematáia', de Napoleão Menezes)

Três muié ou três irmã,
Três cachorra da molesta,
Eu vi num dia de festa,
No lugar Puxinanã.
A mais véia, a mais robusta
Era mesmo uma tentação!
Mimosa flô do sertão
Que o povo chamava Ogusta.
A segunda, a Guléimina,
Tinha uns ói que ô! maldição!
Matava qualquer cristão
Os oiá dessa menina.
Os ói dela parecia
Duas estrela tremendo,
Se apagando e se acendendo
Em noite de ventania.
A terceira, era Maroca.
Com um corpo muito malfeito.
Mas porém, tinha nos peito
Dois cuzcuz de mandioca.
Dois cuzcuz que, por capricho,
Quando ela passou por eu,
Minhas venta se acendeu
Com o cheiro vindo dos bicho.
Eu inté me atrapaiava,
Sem saber das três irmã
Que eu vi em Puxinanã,
Qual era a que me agradava.
Escolhendo a minha cruz
Pra sair desse embaraço,
Desejei morrer nos braços,
Da dona dos dois cuzcuz!


A TERRA CAIU NO CHÃO

Visitando o meu sertão
Que tanta grandeza encerra,
Trouxe um punhado de terra
Com a maior satisfação.
Fiz isso na intenção,
Como fez Pedro Segundo,
De quando eu deixasse o mundo
Levá-lo no meu caixão.
Chegando ao Rio, pensei
Guardá-lo só para mim
E num saquinho de brim
Essa relíquia encerrei!
Com carinho e com cuidado
Numa ripa do telhado,
O saquinho pendurei…
Uma doença apanhei
E vendo bem próxima a morte
Lembrando as terras do norte
Do saquinho me lembrei.
Que cruel desilusão!
As traças, sem coração
Meterem os dentes no saco,
Fizeram um grande buraco
E a terra caiu no chão.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

[0586] O regresso de Nicolau Saião ao IM (veja outros posts do poeta na coluna das etiquetas, ali à direita)


Sempre bem-vindo a Ibn Mucana, Nicolau Saião regressa com um poema "pedestre"...


O PÉ

Em todos os lugares, é
sempre pé: pé de mundo
pé de mando, pé de mar. Sem par
é pé de coxo. Pé
parado. Morto em pé.
Por vezes
os pés desaparecem
durante anos: esconderam-nos
em claustros, chaminés, prisões.

O pé no fundo
é estranho: de noite
parece um ser solar. Um pé
sem perna já foi mais frequente do que pensam.
Um pé de casa é uma vírgula posta
entre o campo e as estrelas. Um pé arabesco
é um pé a cavalo. E um pé que se preza
ama a liberdade. De contrário é pé chato
pé de planeta aziago.
Um pé sem suor é pé desafinado.
Lagosta, pé carregado
O pé costuma ver (o pé tem sorte)
o começo da vida, ou o fim do corpo:
ir de pés para a frente
fazendo finca-pé
à própria morte.

O pé de flor vive em todo o lado.
Planta de pé é um silêncio vegetal.
Pé de cabra é bom na magia oculta.
O pé de cão tem horror aos polícias.
O pé de amor é um bicho esquisito: mede
os outros pelo seu tamanho – pé universal

Pé ou mão? Doce animal
dentro do coração.


[0585] Novo livro de Kaká Barbosa


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

[0584] Fernando Sabino, o consulado poético


Fernando Tavares Sabino nasceu em Belo Horizonte, em 1923 e faleceu no Rio de Janeiro, em 2004. Foi escritor, jornalista, nadador, cineasta e poeta, integrou o grupo Etienne. Viveu episodicamente em Nova Iorque e depois em Londres, onde exerceu a função de adido junto da Embaixada brasileira. Fundador da Editora do Autor e da Editora Sabiá.


CERTEZA

De tudo ficaram três coisas:
A certeza de que estamos começando,
A certeza de que é preciso continuar e
A certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar
Fazer da interrupção um caminho novo,
Fazer da queda um passo de dança,
Do medo uma escola,
Do sonho uma ponte,
Da procura um encontro,
E assim terá valido a pena existir!

[0583] José Batista de Queiroz, a arma da poesia


Natural de Patrocínio, Minas Gerais, Brasil. Militar de carreira, general e instrutor do Exército nos Estados Unidos, economista e poeta.


DE ONDE VENHO…

Venho de uma terra,
onde nos campos canta a seriema,
nas capoeiras pia o inhambu,
onde as montanhas são onduladas,
os vales cobertos de névoas.

Venho de uma terra,
onde o céu é mais azul,
o sol mais radiante,
a noite mais fagueira,
a lua mais graciosa.

Venho de uma terra,
onde a aurora é mais bela,
o crepúsculo mais dourado,
o arco-íris mais colorido,
os passarinhos mais cantantes.

Venho de uma terra,
dos doces e das quitandas,
do queijo com goiabada,
do berrante e das boiadas,
dos tropeiros nas estradas.
Venho de uma terra,
onde a dança é a catira,
o violão é a viola,
o fandango é o pagode,
a bebida é a pinga.

Venho de uma terra,
onde o povo diz uai e sô,
a prosa tem seu lugar,
as igrejas são centenárias,
as orações cheias de fé.

Venho de uma terra,
onde nasceu o paraíso,
onde o mar quis morar,
onde o céu tem estrelas,
a vida felicidade.

Eu venho das Minas Gerais,
uma terra sagrada,
que levo para onde vou,
dentro da alma  e do coração.


POEMA SER MINEIRO

Ser Mineiro é não dizer o que faz, nem o que vai fazer,
é fingir que não sabe aquilo que sabe,
é falar pouco e escutar muito,
é passar por bobo e ser inteligente,
é vender queijos e possuir bancos.
Um bom Mineiro não laça boi com imbira,
não dá rasteira no vento,
não pisa no escuro,
não anda no molhado,
não estica conversa com estranho,
só acredita na fumaça quando vê o fogo,
só arrisca quando tem certeza,
não troca um pássaro na mão por dois voando.
Ser Mineiro é dizer “uai”, é ser diferente,
é ter marca registrada,
é ter história.
Ser Mineiro é ter simplicidade e pureza,
humildade e modéstia,
coragem e bravura,
fidalguia e elegância.
Ser Mineiro é ver o nascer do Sol
e o brilhar da Lua,
é ouvir o canto dos pássaros
e o mugir do gado,
é sentir o despertar do tempo
e o amanhecer da vida.
Ser Mineiro é ser religioso e conservador,
é cultivar as letras e artes,
é ser poeta e literato,
é gostar de política e amar a liberdade,
é viver nas montanhas,
é ter vida interior,
é ser gente.


MEU SONHO

Meu sonho é ser
A brisa que acaricia seu rosto,
O vento que solta seus cabelos,
O mar que molha seu corpo,
A água que banha seus pés.

Meu sonho é ser
A luz que brilha em seus olhos,
O sol que queima a sua pele,
A lua que ilumina o seu sorriso.
A flor que perfuma a sua alma.
Meu sonho é ser
O jardim que você vê,
A rosa que você colhe,
O corpo que você toca,
A relva que você pisa.

Meu sonho é ser
O perfume que você usa,
A pétala que você beija,
A música que você ouve,
A oração que você reza.
 Meu sonho é ser
Um pingo de orvalho em suas mãos,
Um raio de luar em seus olhos,
Um grão de areia em seus pés,
Um instante de vida em sua vida.
Meu sonho é ser
Um sorriso em seus lábios,
Um sonho em seus sonhos,
Um amor em seu coração,
Uma eternidade em sua vida.

Meu sonho é ter a sua beleza, a sua meiguice, o seu coração, a sua alma.
Meu sonho é ser apenas um pedacinho de você, para sempre.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

[0582] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (20) Nuno Rebocho, as palavras necessárias


No “Discurso do Método” do seu poetar, o autor debate-se com o esquecimento que alguns bem desejam que um triste passado faculte, desafiando “o lugar sagrado dos testemunhos”. Quis sempre passar ao “outro lado das paredes da vida”, dilatando os momentos já vividos (e nunca esquecidos). O poeta o afirma: “a escrita é um risco, um assalto, um crime” onde há um cadáver em cada verso e um mistério à espera de decifração”.


A CELEBRAÇÃO DO ESQUECIMENTO


estilhaçam-se as ravinas dos segredos quando as vozes atravessam
o calcário da intimidade: o sagrado lugar dos testemunhos
onde as presenças cheiram. é aí que o esquecimento dói e eu passo
ao outro lado das paredes da vida coada do salitre
desvendando os lugares. sempre queremos
a dilatação dos momentos ou as palavras mudas e murchas
como baterias de mortes (as mortes que vão acontecendo dentro
dos dias); as palavras mudas como plantas adormecidas
nas águas paradas; as palavras mudas das retaliações e dos tratados
como arames farpados nas fronteiras existentes; as palavras mudas
que se mudam nos núcleos cerebrais e deixam o rasto.
no calcário da intimidade desbravamos as loucuras e passamos
(como eu passo) ao lado das paredes para desvendar os lugares.

fecho os portais para a necessária pudicícia
de me buscar: a escrita é um risco um assalto um crime.
como podem saber que há um cadáver em cada verso
e um mistério à espera de decifração? e que fariam
aqui as polícias quase incólumes à corrupção do tempo?
é desnudo que escrevo como faço amor
e depois me liberto do sangue e dos vestígios: o crime
perfeito com bacanais de interrogações e de buscas.
deixo que a penumbra feche o quarto este quarto
dos meus segredos por onde os papéis navegam
e os dedos se perdem na procura das dúvidas.
se os meus senhorios soubessem destas poucas vergonhas
davam-me ordem de despejo e perdia o lugar de me esquecer.

é na claridade que as coisas se confundem: as coisas
são indefiníveis e múltiplas porquanto a unidade é o esquecimento
por onde a luz entra pelas janelas a indicar-nos as rotas onde
as coisas se fazem objectos e pessoas onde os lugares
se definem no breve momento da memória. tudo é disperso
e o esquecimento constrói-se como um traço de união
com a eternidade (seja ela qual seja) por onde a luz
é apenas a velocidade do possível (seja ele qual seja).
é na claridade que as coisas se destroem e se definem
e se preparam para o estonteante. na claridade
preparamos a memória para o esquecimento.

[0581] Djami Sezostre, o neo-experimentalismo brasileiro biossonoro


Djami Sezostre, nasceu no Rio Paranaíba, Minas Gerais, Brasil, em 1971, Criador da Poesia Biossonora e da Ecoperformance, espetáculos apresentados no Brasil e América, Europa e África. É criador/curador do projeto de pesquisa de poesia de língua portuguesa Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética e também criador/curador do Encontro Internacional de Leitura, Vivência e Memória de Poesia Terças Poéticas (Belo Horizonte/Brasil). Editor da Anome Livros. Ensaísta e poeta. Está pela segunda vez em Ibn Mucana.


MENINO JESUS É REI 

Alvez eu screva um oema epois do atal
E alvez eu screva um oema epois da assagem
E ode ser que o oema ale de uzes e ão de rzes
E do eregrino que asceu na strebaria e ndou
Luminado elo undo de elém e epois

Orreu na ruz ara alvar os omens Alvez
Eu screva um oema que ale de az Alvez
A az eja um írculo de strelas adentes
Aindo ozinhas ao éu huviscam a oite
Que é iva e ediviva de aga-umes

Leluia, enino esus é ei-
É ei, É ei, Ér Rei.


SUDÁRIO 

çim jeuss csrito ivev edntro de mmi
eel drome em mniha csaa em mniha cmaa
eu eo ajno de lux msorto os ohlos de lúzifer
e jeuss bieja mniha bcoa os libáos cehios de erestlas
eu o ajno de luaz vvio de parzser vvio e fmoe

fmoe e sdee de sxeo jeuss um

jeuss de ohlos mohlados
ohlando osm e usohlos mohlados
eu o ajno de luz com a sdee do mnudo
a sdee em mniha línuga

o
ajno de luz teprdao na curz
o sbulime o ajno ridevvio de lu

z
abra

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

[0580] Hellman Pardo, a jovem poesia colombiana


Nascido em Bogotá, Colômbia, em 1978, Herman Prado, contista e poeta, Prémio Eduardo Carranza em 2010; Casa Silva em 2011, Prémio do Festival Internacional de Poesía de Medellín em 2014 e Prémio Nacional de Poesia Eduardo Cote Lámus. Membro fundador da “Revista Latinoamericana de Poesía La Raíz Invertida” .


EL COJO BARRIOS, GUARDAGUJAS

El comisario de caminos dice que soy el empleado
                                               que ajusta los desvíos del ferrocarril.
La afirmación es vaga.
Es cierto que enlazo las bifurcaciones del día,
                                               las cargas que arrastran la ceniza de los torturados,
sin embargo,
prefiero que las buenas gentes me recuerden
como un anacoreta del olvido.
Lo destruido se ahúma en cada aguja removida.
Encarrilo los compartimentos que temen inclinarse
                                               por el peso de carbones recién extraídos en la desgracia.
Es tarde. El tren dejó de anunciarse hace cinco meses.
Aún espero sus vagones sonámbulos
                                                       en la línea que traza la distancia.


LORENZO CERCAS HIJO, POSADERO

Hace algún tiempo,
cuando la penumbra aún invadía los arrecifes,
llegó a mi posada un fabricante de camafeos.
                             
                Traía siete arcones cargados de piedras.
Malaquitas de Benín, ámbares de Letonia, obsidianas de Mozambique.
Al soplarlos,
según instrucciones precisas del comerciante,
                             
                los relieves de esas piedras
                             
             adquirían los rostros de antiguos emperadores.
Una María Estuardo tristísima,
más triste que el artesano,
tenía en la mirada una esquirla de oscuridad
                             
                 propia de los reyes decapitados.
     La barba del cónsul Lucio apenas se asomaba en una flor de mármol.

Sobre la cabeza de Erzsébet Báthory
                             
pendía una tiara hecha con la piel de sus sirvientas.
Los arcones del fabricante de camafeos
quedaron vaciados,
                             menos uno.
El séptimo, decía,
contenía los ajuares de Ana Bolena,
               sus seis dedos que tallaron las rocas de una isla.


LA LLORONA

En las Guerras del llanto
               solo persiste la sal en la lágrima.
Toda aldea conserva sus espantos,
               su manera de preguntarse
                              si lo irreal es también posible.
En Catalpa,
por ejemplo,
                              se oye el torpe rastro de La Llorona,
un ronroneo en los matorrales prohibidos
                                                   de lo lejano.
Por su espalda
       desciende el cabello
              como cascada de árboles,
tálamos de siemprevivas
                      que agitan los ángulos del río.
Un escapulario ampara
                              sus huesos húmedos.
Sumida en la vergüenza,
                              se envuelve con la túnica del arrepentimiento.
La Llorona tiende a chapolear el agua,
          a enlodarla con su grito culpable.
Cuando la medianoche se enmusga en el tiempo,
                                                             el llanto salta la planicie,
sus altas quejas profanando
                                              el tímpano de los durmientes.

[0579] Héctor J. Freire, o cinema da poesia


Nascido em Buenos Aires, Argentina, em 1953, professor, crítico literário e de cinema, fundador da Escola Literária do Teatro IFT, membro do Conselho de Redacção da revista “Topia (Psicoanálisis, Sociedad y Cultura)”  e director da revista cultural “La Pecera”, Prémio Fondo Nacional de las Artes. Está em Ibn Mucana pela segunda vez.


NATURALEZA MUERTA  

                                        (Canasta con frutas, Caravaggio)

Nada hace prever en el color de las frutas
su muerte próxima.
Sueñan al borde de la mesa
donde se agitan suavemente
en las ramas más altas y flexibles.
Instauran la armonía de los cuerpos blandos:
-lo bello suele estar cerca de lo corrupto-
Unidas por un hilo de luz,
esas frutas no son más reales
de lo que pueden serlo en una pintura.
En esta “naturaleza muerta”,
una luminosa cortina amarilla se deja caer
más allá de la espesura de los años.
Al amanecer los simulados árboles
se volverán a mostrar tras las sombras de las hojas.
Y sin embargo, en esta canasta con frutas pintada
en 1596, por el violento y fugitivo Caravaggio,
un claro resplandor se seguirá esparciendo:
el silencio de una escena única que se precipita
sobre el dibujo animado del horizonte.
“Su valor radica en el hecho de estar aquí y no allí”.
Ahora, el sol proyecta su dedo de sombra
sobre el lienzo y rompe la permanencia
con que se disfraza: es una luz íntima
y este instante es perpetuo.


CAMINO A EPIDAURO
                                                  El Espíritu es una cosa que dura.
                                                                               Henri Bergson
                                                     
Cada pedazo de tierra es una construcción en ruinas
que no se repetirá nunca,
una escritura cifrada detrás de la cual
plantas y animales se encuentran por primera y última vez.
Sólo la abundancia verbal para el saber sin nombre de las piedras,
mientras los Tholos de Asklepios* son el primer reflejo
de la eternidad en la luz, el silencio como aura: color marfil y oro,
fruto abundante entre los dientes de Artemisa.
Impasibles, los insectos se han detenido en el follaje
y sólo los árboles parecen estar vivos:
“Dionisio ha sido domesticado por la mirada de Apolo”.
Ahora, la sombra disminuye y los mismos árboles
conforman un único punto ante el vacío ficticio
de las manchas de sol del otoño.
Brillan negros y blancuzcos,
a la vez son frágiles y ricos en movimientos
que apenas se perciben.
Ningún sonido revela la proximidad de una presencia,
y a su alrededor parece duplicarse el silencio del mediodía.
En ese instante de lamento sonriente, el porvenir es traicionado:
-“Grecia es un fósil saturado de sol”-
Ahora reluce la niebla y tiende un velo palpitante sobre la lejanía.
Hay cambio e intercambio; en Epidauro
nada permanece y nada desaparece por completo.
-“¿Y qué otra cosa necesita este paisaje?”-
Se disipó el día. Se escucha un sonido desde la oscuridad.
Es la hora en que “la vida paga el óbolo de la hoja de olivo”.**
A lo lejos, entre los cipreses y los almendros,
mujeres de negro parecen flotar inmóviles.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

[0577] Nuno Júdice, poesia nascida das palavras


De seu nome completo Nuno Manuel Gonçalves Júdice Glória, nasceu em Meixoeira Grande, Portimão, em 1949. Professor universitário, ensaísta, dramaturgo, escritor, tradutor e poeta. Ex Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Paris, onde também dirigiu a delegação do Instituto Camões, foi director da revista “Tabacaria”, editada pela Casa Fernando Pessoa, e dirige a revista da Fundação Calouste Gulbenkian “Colóquio-Letras”. Obteve o Prémio de Poesia Pablo Neruda, o Prémio do Pen Club de 1985, o Prémio D. Dinis da Fundação Mateus de 1990 e da Associação Portuguesa de Escritores de 1994, o Prémio de Poesia Ana Hatherly, em 2003, o Grande Prémio de Literatura de 2007; o Prémio Internacional de poesia Argana, em Marrocos (2014), o Prémio de poesía Poetas del Mundo Latino Victor Sandoval no México, também em 2014, o Prémio Literário António Gedeão em 2016, e o Prémio Internacional de Poesia Camaiore, em Itália,  em 2017.


RECEITA PARA FAZER O AZUL

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.


NUNCA SÃO AS COISAS MAIS SIMPLES

Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.


A ROSA COM SEDE

Sedenta a chuva, a rosa caída esperava
que a regasse naquela tarde em que
o calor abrasava a terra. Ergui-a e,
enquanto as suas pétalas s abriam

para que a água escorresse por entre
elas, passei a mão pelo caule sem
espinho, suave como a pele da mulher
amada, até chegar à flor que me

revelava a sua cor. Assim, a tarde
passou, e a rosa já saciada ergueu-se
do seu lençol de folhas, renascida

no seu canteiro como corpo que desperta
para a vida, e ofereceu-me o seu rubro
botão, húmido dessa tarde de verão.

[0576] Maria F. Roldão, compradora de metáforas


Alentejana, nascida em 1965, socióloga, professora e poeta, directora da revista “Nervo”


ANTES DE MORRER

Antes de morrer
é imperioso sossegar a brisa
e colher do céu retalhos de azul
para vedar a caixa das memórias

Deve libertar-se o som dos ossos
e enrolar um nome na última saliva

Por dentro do silêncio
cuspir o chão de uma estrela


CALIGRAFIA

As mãos procuram livrar-se
da pequena escrita
Soprar tinta para os olhos

Assuntos violentíssimos
submersos
na caligrafia

Impossível descrever o mundo
com uma caneta na mão.


PERCORRO-LHE O CORPO PEQUENO

Percorro-lhe o corpo pequeno
verificando as falhas
os excessos
Entro e saio inúmeras vezes
da loja das palavras
em busca de sinónimos
Compro metáforas
a peso de ouro

Fica caro o poema
– ruína do poeta.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

[0575] Ana Barbeiro, a psicologia da poesia


Investigadora e docente em Psicologia e Ciências Socias na Universidade de Lausana e poeta.


AFERROLHAI

aferrolhai
as portas
aferrolhai

em duas
voltas
aferrolhais-vos


SEM TÍTULO

correndo
ao encontro
fujo
às arrecuas

lanço-me
em frente
se é para baixo
ou a sul do poente

descaio
e a estibordo
catapulto-me
ao sol

às vezes
em demasia
durmo


UM BICO DE GAIVOTA

um bico
de gaivota
com flores
no ninho

[0574] Rui Teixeira, a teologia da palavra


José Rui Teixeira nasceu no Porto, em 1974. Filósofo e poeta, é director e presidente do Conselho Científico da Cátedra Poesia e Transcendência [Sophia de Mello Breyner Andresen], na Universidade Católica Portuguesa no Porto. Membro da Asociación Latinoamericana de Literatura y Teología e da European Society for Catholic Theology.



SEM TÍTULO

Os filhos são insectos de alabastro
nas noites de insónia das mães
e os telhados deslizam para a parte
da frente das casas, anunciam a ruína.
Há dias em que os pressentimentos
perseguem-nos como cães, as noites
de verão, as prensas nos dedos,
os úteros dentro das mães.
Foi a tua morte que explicou a casa,
o modo como se dispõem geometricamente
as rosas sobre a terra.


DIÁSPORA

Houve um tempo em que eu desconhecia o medo.
Deus ainda amava os filhos dos homens
quando, anos mais tarde, parou de chover.
Caiu-te um livro nas mãos como um presságio.

É verdade que espero ainda o rumor branco
das planícies, a superfície da manhã,
a tua boca como o estio.


ÓBICE

O que fizeste, mãe. Pergunto
sobre o talude da infância.
Hoje escrevi três poemas.
Protesto, estrábico e ensimesmado.
Penso salmão velho contra as paredes.
Não é desolação, mãe. Na cama,
quando anoitece, é à erosão
que me aconchego, com a roupa
de rua. E fecho os olhos para ver.

[0573] Sessão de poesia na Associação Cabo-Verdiana de Lisboa

Decorre amanhã - dia 15 de Fevereiro, a partir das 18H30, na Associação Caboverdeana de Lisboa (ACV), Rua Duque de Palmela, nº 2, 8º andar- uma sessão de poesia com o mote “Por um Mundo sem Muros – Contra Todos os Muros, Erga-se a Poesia!”. Trata-se de uma iniciativa do Movimento Poético Mundial a decorrer este mês, em mais de cem países e nela participam Luís Carlos Patraquim, Zetho Gonçalves, Ana Paula Tavares, Mário Máximo, Filinto Elísio, Regina Correia, Ozias Filho, Carlota de Barros, José Luís Hopffer de Almada, Valéria Carvalho, Luísa Fresta e Carla Correia.


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

[0572] Novo livro de Jorge Carlos Fonseca

Publicado pela Rosa de Porcelana Edições, será divulgado no dia 18 de Fevereiro, pelas 17 horas na marina de Oeiras, em Portugal (restaurante Charkoal), o último livro do escrito Jorge Carlos Fonseca, Presidente da República de Cabo Verde: “A Sedutora Tinta de Minhas Noites”. 


[0571] Cristina Carvalho, quem sai aos seus...


De seu nome completo Maria Cristina Nunes da Gama Carvalho Meira da Cunha, é filha de António Gedeão e de Natália Nunes. Nasceu em Lisboa em 1949, é escritora e poeta


DESPREZO

De forma que, com o passar dos tempos
sem saber se os tempos se resumiram a anos, a dias, a momentos,
tudo se dissipou.
Ao olhar para aquele carro estacionado ali na encosta do passeio,
as ervas a crescer pelos interstício das jantes,
os vidros foscos, baça a carcaça, sem cor nenhuma e a culpa era do sol
da lua e do luz de todos os astros celestes,
não me revi nem consegui lembrar-me de como entrava, sacudida, leve, levíssima, /cigarro entre dentes, solta como uma música.
Já não me lembrava de nada que me ligasse a esse objecto,
o meu próprio carro.
E, no entanto, logo ao ver-te na mesma situação que eu em tempos tive, admirei-te e ao /admirar-te,
revi-me e ao rever-me,
lembrei-me e ao lembrar-me,
esqueci-me.

[0570] José Carlos Barros, a arquitectura do protesto


José Carlos Barros nascido em Boticas em 1963. É arquitecto paisagista, político (deputado) e poeta, recebeu o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2009. 


NÃO INVENTES

Não venhas cá com merdas. Não inventes.
Não olhes nos meus olhos. Sai apenas.
E poupa-me aos discursos eloquentes
e às farsas do adeus. Não faças cenas.

Não digas que lamentas ou que a vida
às vezes é assim: que tudo esquece;
que o mundo e o tempo curam qualquer ferida.
Repito, meu amor: desaparece.

E leva o que quiseres de tudo quanto
um dia suspeitámos partilhar:
os livros, as esculturas em pau-santo,
os discos, os retratos, o bilhar.

Não deixes endereços. Por favor:
eu quero é que te fodas, meu amor.


A INVENÇÃO DA BICICLETA

Tudo o que fizemos no domínio
dos transportes desde a invenção da bicicleta
só contribuiu para melhor compreendermos
como a bicicleta é útil e bela
e comovente. E é mais bela e útil
e comovente quanto mais
os corredores aéreos enchem os mapas
dos controladores de voo e quanto
mais os viadutos se cruzam
e sobrepõem para dar vazão às filas
de automóveis nas pontes
dos feriados. As crianças
conhecem os segredos do vento numa
roda pedaleira. As bicicletas
e os bosques abrem no verão em simultâneo
os pequenos açudes luminosos
da infância. Depois do vidro e da roda
a bicicleta foi uma das mais
belas e inúteis e comoventes
invenções da história do homem.


MAIO DE 1942

Nos braços erguidos de Stevan,
no seu olhar confiado, nas suas pernas
firmes pisando o cadafalso
de tábuas, a morte reduz-se
a uma insignificância vergonhosa.
Stevan Filipovic morrerá
alguns segundos depois. Ainda assim é
confiante que cerra os punhos e
grita em nome do azul da jugoslávia
que permanecerá para além do apertar
de uma corda em redor do seu pescoço
jovem. A pátria é muitas
vezes um lugar imenso onde só os
carrascos choram no instante do crime.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

[0569] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (19) Nuno Rebocho e a constante liberdade


Retirado em Cabo Verde, Nuno Rebocho manteve a constante sedução pela liberdade, ainda que a paisagem à sua volta parecesse ser pouco convidativa da não cansativa “sagrada esperança”: sempre a liberdade vadiava.


ENTREMENTES

quando as acácias rugiam
aos alísios e as galinholas grasnavam
sua solidão por entre as ramagens
eu era feliz
apesar de exilado
era feliz

chamava pedra às pedras
enquanto o mar molhava esperanças
chamava vida à vida
enquanto roía as unhas de algumas mágoas

chocalhavam as agruras
onde a liberdade agoniava sedições
- a liberdade vadiava
mas não cansavam as emoções

antes voltasse ao que já foi
que sentir cair os dentes
e vomitar presentes

[0568] Adão Contreiras, um triturador de imagens


Nascido em Lagos em 1944, professor, artista plástico e poeta


PALAVRAS HIBERNADAS E EM CONTRA LUZ

Manhã      a manhã quente que devora os homens na superfície dos nomes
Voz      a voz que escreve nas ardósias o pulsar dos corações
Elástico      o elástico matinal onde o luar se esconde
Claustros      as abóbadas de ferro onde o som se torna denso
Realidade      a descrita realidade como uma pulga saltando do berço
Objecto      o objecto que não existe no lume de alguns diamantes
Sombra      a sombra das palavras negras inconstantes sem farmácias por perto
Sonora      a sonora manhã encostada às espigas dos homens com forquilhas /penteando os azedumes da palha


SEM TÍTULO

No grave socalco
embandeiram  as nobres flores
entre o ser e o seu nó côncavo
o amarelo limão oscila

adormecido na tristeza oca
embutido de raízes
velhas âncoras
o sólido degrau  cai

as pequenas hastes velejam
cântico balançado
loucura gracejando ao vento
de nervosa angústia de água

calculo a verdade do tempo limão
que me leva da raiz à flor
na aziaga nudez do fortuito amarelo

brinda a culminância das núpcias
o dorso da inquieta penetração da luz
o lume, o incêndio moço da vegetação
debruando  a orla das muitas pegadas

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

[0567] Vitor Oliveira Mateus, a poemasofia

Nascido em Lisboa, docente universitário e poeta, Prémio Eugénio de Andrade de 2013.


SEM TÍTULO

Nas cidades de onde venho
secam as árvores ao som das sirenes
e os pássaros, alucinados, buscam direcções
nas pupilas das crianças.
Nessas cidades tudo é pressa e desassossego,
enquanto os homens, imprudentes, desaprendem
a sublime auscultação da terra;
nem sequer o coração dos outros podem ler
ou o rumor inconsolável das águas
– para eles aquilo que apenas vêem!
E com um nó no peito desatado
pintam de harmonia um novo Caos


SEM TÍTULO

Querer-te é sentar-me na praça, logo de manhã,
só para te ver passar
Querer-te é os teus olhos, o teu sorriso cúmplice,
as tuas palavras
Querer-te é também não me veres, se por acaso
alguém está perto
Querer-te é haver sol e vento e estrelas. É o verde
das acácias e das palmeiras e as rosas de Jericó
alinhadas até à ponta das dunas
Querer-te é o castanho doce dos figos sobre a mesa,
as tâmaras, a voz da grande Kolthoum vinda de uma
janela num cântico apaixonado ao Nilo
Querer-te é haver noite - ah, sobretudo a noite! E é
o teu corpo nu, exausto, branco como um templo,
porque todos os corpos são um templo no solo
consagrado que há
Querer-te é o sorriso no rosto das crianças, o grácil
e dançante caminhar das mulheres, a fonte, as águas
Querer-te é tudo, até o meu desejo de te não querer


SEM TÍTULO 

Sobre esta terra me deito e digo sol
Digo-o na teimosia branda do casario, onde à noite as mulheres,
todas de esperança vestidas, enfeitam de pequenos búzios
a terrível margem do silêncio

Ah, ninguém já ousa semelhante Viagem!
Ou sequer um frágil aceno, como quem convoca, no rendilhado
das areias, a beleza de uma miragem; espécie de visão fulgurante
onde uma porta auspiciosa se firma


Sobre esta terra me deito e digo sol
Digo-o na teimosia branda do casario, onde à noite as mulheres,
todas de esperança vestidas, enfeitam de pequenos búzios
a terrível margem do silêncio

Ah, ninguém já ousa semelhante Viagem!
Ou sequer um frágil aceno, como quem convoca, no rendilhado

[0566] António Gonçalves, conselheiro poeta

António Domingos Gonçalves nasceu em Luanda em 1960. Durante cinco anos combateu nas guerras de Angola. Integrou a Brigada Jovem de Literatura. Foi Secretário-Geral da União de Escritores Angolanos. Engenheiro, docente e poeta, foi conselheiro cultural da Embaixada de Angola em Cuba e adido cultural na mesma Embaixada, desempenhando o cargo de Director Adjunto do Instituto Nacional das Indústrias Culturais, 


SOBRE ASAS E FIOS DE ROSA

Apesar dos abutres
e espinhos no sendeiro
construirei um castelo arfante
sobre o ar
A ser observado por formigas algemadas.
Sobre asas e fios de rosa
Sobre lentes de ovos combinados
Sobre cabos de mentes oblíquas
E...
Este não é poema
falta-me pontaria!


CÃO ENGORDADO A DEDO

Cão engordado a dedo
cospe no prato
que não só engoliu
como até espinhas
saboreou ao desbarato
durante anos e descaradamente.

Os novos vilões
são como capim
nascem com as primeiras chuvas!

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

[0564] Paulo José Miranda e a poesia surpreendente



Nasceu em Aldeia de Paio Pires em 1965. Escritor e poeta, Prémio Teixeira de Pascoaes em 1997 e Prémio SPA em 2014.


EXERCÍCIO 32

e um dia despertamos
há um inferno crescendo do estômago até à boca
as crianças gritam nas ruas
perseguindo uma bola e um sol pobre
que transforma as botas em vassoura

arrasta-se por todo o quarto uma dificuldade em respirar
os pássaros cantam
indo e vindo dos ninhos na varanda
e o homem procura uma janela dentro do seu corpo
abre uma parede
um pequeno corte na garganta

não há nem uma noite em que não adormeça com medo
não teme a morte senão ao despertar

arrastar uma enfermidade é alimentar um império


POEMA

Lembra a primeira noite do mundo
Aquela em que te abandonaram no escuro
Sequer a chama de uma vela
Para iluminar as coisas e o limite imposto
Não esqueças por favor a primeira noite do mundo
Não se saber nada e um choro profundo


SEM TÍTULO

Experimenta escrever uma linha
E depois dessa uma outra abaixo da primeira
Escreve ainda mais uma por debaixo da segunda já traçada
Com esforço faz agora a linha quatro ser maior do que qualquer das três primeiras
Continua a escrever sem parar nunca
Linha após linha após linha após linha
Até que te percas do número correspondente às linhas já traçadas
E não consigas sequer escrever nem mais um ponto
Depois de fazeres tudo isto
E talvez muito surpreendentemente
Podes ver que não acontece nada