sábado, 26 de fevereiro de 2022

[0759] "Livre", de Joaquim Saial

 

LIVRE


Livro que se lavre

e não seja livre…


Livra!...


[0758] Mais um poema de Luís Palma Gomes


DECRESCENS VITA

Sempre que me aflora o advérbio "talvez", há de certeza um esquecimento líquido correndo, espraiando-se pela vizinhança de mim mesmo. 

Enfrento os meus limites quando apenas posso pensar nas marinhas fortes de Esposende. Estático,  trago comigo as palavras e o seu ideal tão longínquo, quanto vertical, e tão próximo do sol como da profunda infância. 

O dia abre-se novo, mas previsível. As mulheres inauguram-no, parideiras agora sem  dor, lavando as cores serenas num rio que passava por aqui e — mesmo que os pássaros ainda nele falem — jamais voltará à presença determinada das árvores que estas ervas veneram sem saberem porquê - a habitual ausência de razão  para qualquer veneração, diria.

Levanto os olhos e reparo que os outros não escrevem poesia por agora. Talvez tenham escrito em casa ou a guardem para as férias grandes, ou tão-só não tenham lido Ruy Belo, como eu o fiz ontem à noite.

O dia decresce desde que nasce. E nós, rendidos pela nascença, aceitamos este crescimento da morte, banalmente,  como a um chamamento de pardais, ou  à forma arredondada das laranjas. 

Chamo tédio adocicado a este lapso que  interrompe as sonâmbulas viagens que faço para um destino comum e vulgar de pedras em queda até ao entendimento do poço. E sem caminho algum para regressar, caio.





sábado, 12 de fevereiro de 2022

[0757] Nicolau Saião, ataca de novo (com levantamento de rancho)


LEVANTAMENTO DE RANCHO


O meu sargento desculpe mas ali não havia sonhos

Nem sequer daquele arroz que a prima Maria fazia

Doce como os sonhos o meu sargento desculpe

Mas é tão estúpido tão escalabitano tão

A norte de Bafatá ou mesmo 

Castelo Branco o meu sargento é um nabo

Sonhos de ovos em castelo misturados na farinha

O meu coronel desculpe mas tive de o abater

O gajo não entendia que os sonhos eram os outros

Eu não ia gastar na tropa recordações de noites várias

E já agora também lhe digo que na bolanha entre as árvores

Há um ar em silencio extremamente melancólico

O meu capitão desculpe mas não chamei a amargura

De quando conheci a Domingas uma vez encontrei-a

Já havia muitos meses que me lavava a roupa

Junto ao mercado do Pixiguiti   chorava

Era sofrida como uma mulher

Doce e tão calada como um objecto partido

O meu capitão desculpe mas tive que o abater

É uma coisa que me chateia entrarem-me nos afectos

O que é que você sua besta sabia da ternura em comissão

De serviço   o senhor que olhava de alto os taratas e os mancarras

O meu major desculpe mas era chegada a hora 

Tantos anos depois ficaram todos em fila

A vingança é o que mais mora numa cabeça de soldado

Pensa-se nisso sempre quando se passa à peluda

De modo que foi assim   fiz levantamento de memórias

E o melhor de tudo foi que já não me podiam tocar

Eram nabos frios como o esparguete o arroz sensaborão

Ficaram todos em fila pois então

Mesmo que em sonhos   e agora estes não são

De ovos e farinha como almejava nesse tempo

Quando aguardava sem chegar uma encomenda familiar

Os olhos antigos tão fundos como o pego do rio Geba

E já agora que estamos com a mão na outra massa

Que é como quem diz com a pata na G3

O meu general vá à fava   palavra de civil tão sem galões

O meu general é um nabo como na caserna se dizia.



sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

[0756] Um poema "anunciativo", de Nicolau Saião



ANUNCIAÇÃO


As mulheres do vento   parado como um planeta extinto

as mulheres doentes   as mulheres que cantam com surpresa

o seu vestido estranho como uma renda   como uma absurda mancha

as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas

entre mim e o céu

Entram pela minha boca e censuram-me docemente

Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante

ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios

Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos

junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando

estremecendo como uma pétala sobre a água

Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis

escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza

Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval

mulheres de pernas como lírios rosados

andando ao longo duma estrada francesa

as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa

Job de rosto erguido amargo senhor das angústias

a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos

a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes

Dizei-me mulheres  onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou

na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra

Vós sois o sustento dos pontos cardeais

Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste

e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda

o fumo espalhado no parque abandonado

os olhos tranquilos frios

A rua solitariamente sob a noite de Junho

e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar

A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura

à luz frouxa da manhã   e o frio subindo até às portas como um animal 

a morrer.